Ontem, sem máscara, o presidente Jair Bolsonaro participou de mais um desfile de motos, desta vez em São Paulo, reunindo milhares de partidários motorizados que o apoiam. Na sexta-feira, em São Mateus (ES), Bolsonaro se referiu aos críticos como “os que buscam o poder pelo poder” e se definiu como “um presidente que acredita em Deus, que é leal ao seu povo, que acredita nos militares e que nunca jogou fora das quatro linhas da Constituição”. Na quinta-feira, havia recomendado ao ministro da Saúde, “um tal de (Marcelo) Queiroga”, que decretasse o fim do uso obrigatório de máscaras durante a pandemia, sem levar em conta que a média de óbitos por covid 19 continua altíssima.
A banalização das atitudes negacionistas e antidemocráticas divide o país. Uma parte da população endossa qualquer ato ou gesto do presidente da República e advoga uma ordem política na qual ele concentre todo o poder, ou seja, um Estado de exceção. Esse tipo de pensamento circula intensamente nos grupos de WhatsApp e outras redes sociais, enraizando comportamentos pautados pelo preconceito, pela excludência e pelo ódio. Em qualquer ambiente social, o clima político não é nada bom para o diálogo e a boa convivência.
A filósofa judia-alemã Hannah Arendt (1906-1975), após testemunhar o julgamento do criminoso nazista Adolph Eichmann, escreveu um livro (“Eichmann em Jerusalém”, Companhia das Letras) no qual sugere que o mal não provém necessariamente da malevolência ou do desejo de fazer o mal. Na década de 1960, Adolf Eichmann fora capturado na Argentina por agentes do Mossad, a polícia secreta de Israel, e transportado para Jerusalém, onde ocorreu o famoso julgamento do criminoso nazista. Eichmann era imaginado como um homem sanguinário, mas o julgamento mostrou um burocrata de carreira sem maior importância, que tinha por objetivo primordial vencer na vida a todo custo, cheio de esperanças, incapaz de refletir sobre as consequências de suas ações: mandar centenas de milhares de judeus para as câmaras de gás e crematórios.
Estado de exceção
Eichmann poderia frequentar qualquer ambiente social sem sequer ser notado. Foi com base na sua personalidade e no seu julgamento que Arendt elaborou sua teoria sobre a “banalidade do mal”. Para a filósofa, as pessoas agem de certa maneira por sucumbirem às falhas de seus próprios julgamentos e pensamentos. A recusa em ver as pessoas que cometem atos dessa natureza como “monstros”, como no caso de Eichmann, traz para o nosso cotidiano esse tipo de ação. Não se trata apenas de examinar as falhas de sistema político, devemos examinar também as falhas de julgamentos e pensamentos de cada um de nós. A ideia de que o mal é uma coisa banal não elimina os horrores de suas consequências, como a morte recente de uma jovem grávida no Lins de Vasconcelos, em mais uma operação policial no Rio de Janeiro.
Por que tanta gente apoia essas atitudes negativas de Bolsonaro, mesmo sabendo que muitas de suas ações têm consequências trágicas para a sociedade, como no caso da crise sanitária em que estamos vivendo? Porque o conservadorismo da sociedade é o berço das suas ideias mais reacionárias. Um empresário satisfeito com os próprios negócios na pandemia pode muito bem ignorar o que ocorre ao seu redor e achar que tudo vai muito bem, obrigado. Um militar austero que a vida inteira economizou para chegar ao fim do mês com as contas em dia não tem do que reclamar se ocupar um cargo comissionado que multiplicou sua renda mensal. Um caminhoneiro que abastece seu veículo com diesel subsidiado também não. O agricultor que se beneficia da alta do dólar na exportação de sua produção a mesma coisa. O problema é o que ronda tudo isso.
Um dos grandes críticos do liberalismo foi o jurista alemão Carl Schmitt (1988-1985). Segundo ele, os pressupostos do liberalismo não davam conta das situações excepcionais, nas quais alguém deveria ter a possibilidade de suspender as leis, ou seja, decidir quando a situação está normal ou excepcional. A vida estaria acima da lei, daí a possibilidade de ignorá-la para proteger o Estado e os cidadãos. Schmitt foi um ideólogo do Estado nazista, o que liquidou sua carreira após a II Guerra Mundial. Entretanto, alguns conceitos de Schmitt sobre a política, a distinção entre amigo e inimigo e a excepcionalidade foram exumados por conservadores e pensadores políticos de direita, principalmente depois dos atentados de 11 de setembro, nos Estados Unidos. Suas ideias também circulam no Brasil.
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