Nas entrelinhas

"Representante da tradição autoritária brasileira, ou simplesmente um personagem que não está à altura da Presidência, Bolsonaro precisa, de imediato, ser enquadrado pelas instituições da República"

Carlos Alexandre de Souza
postado em 07/08/2021 00:43

A sorte está lançada?

Cautela é sempre recomendável quando se recorre a eventos do passado para explicar o presente. A História é uma professora erudita; sempre apresenta diferentes perspectivas sobre a evolução social, política e econômica das sociedades. Esse riquíssimo acervo da trajetória humana nos induz a estabelecer paralelos entre civilizações antigas e contemporâneas. Mas convém manter a prudência em relação a essas tentações, a fim de não incorrer em anacronismo. Feita a ressalva, peço licença para registrar considerações sobre a crise detonada esta semana por mais um arroubo de Jair Bolsonaro, com ataques frontais ao Poder Judiciário e ameaças à ordem democrática no país.

Uma das mais célebres teorias sobre a História partiu do filósofo alemão Karl Marx. Ao elaborar a crítica ao pensamento de um gigante da intelectualidade germânica, o jovem de 34 anos escreveu, em 1852: “Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda, como farsa”. Marx apresentou esse argumento ao comentar a ascensão de Napoleão III, sobrinho do general que, à esteira da Revolução de 1789, subjugou as monarquias europeias com sua Grande Armée e declarou-se imperador francês. Segundo Marx, Napoleão III nada mais era do que uma caricatura do tio, o pastiche de um personagem histórico que construiu as bases do Estado moderno francês, mas promoveu um dos maiores morticínios ocorridos no Velho Continente.

Seria a investida antidemocrática de Jair Bolsonaro uma farsa? Ou a repetição de um passado inglório, um sinal inequívoco de retrocesso nas conquistas democráticas desse sofrido e desigual Brasil?

A História também nos sugere pistas sobre a presente crise quando se resgata o episódio de Júlio César e o Rio Rubicão. Ao ultrapassar, com suas tropas, o limite natural estabelecido pelo fluxo de água e avançar sobre Roma, César infringiu a lei. Segundo as normas estabelecidas pelos magistrados no Senado, um general não podia adentrar nas colinas da Cidade Eterna com suas forças militares. Pois foi exatamente o que César fez, em um movimento decisivo para
derrotar adversários, concentrar o poder absoluto e se tornar a figura mítica de ditador. Segundo relatos históricos, foi na passagem do Rubicão que César teria dito uma de suas conhecidas frases: Alea jacta est. Ou “A sorte está lançada”.

É possível considerar que o presidente Jair Bolsonaro atravessou o Rubicão ao avisar, de forma explícita, que rasgará a Constituição para resolver suas diferenças com o Supremo Tribunal Federal ou adotar o voto impresso em 2022. A reação do ministro Luiz Fux, presidente da Corte, indica que a tolerância a ameaças e impropérios está cada vez menor. O repúdio de ministros do Supremo, de outros representantes do Poder Judiciário, do Senado Federal e da sociedade civil indicam que, passados pouco mais de dois anos, o personagem que representava o antídoto a tudo que ocorria até 2018 está disposto a aplicar o veneno do autoritarismo no país. Para uma parcela cada vez crescente da população, o “mito” tornou-se um pesadelo a atormentar a democracia brasileira.

Ao atacar representantes da mais alta Corte de Justiça e ameaçar uma ruptura institucional, Bolsonaro escreve uma lamentável página da História. Como estadista, montou um governo protagonista de uma farsa. Finge preocupar-se com os brasileiros na pandemia; finge ser liberal; finge respeitar a Constituição. E, a cada dia, sinaliza que pretende jogar todo escrúpulo às favas para impor um regime autocrático. Inflama seu grupo cada vez mais restrito de seguidores com mentiras e conspirações imaginárias. E não demonstra interesse em recuar um milímetro nas suas investidas.

A sorte está lançada? A ver. Representante do pior que a tradição autoritária brasileira já produziu, ou simplesmente um personagem que não está à altura da Presidência, Bolsonaro precisa, de imediato, ser enquadrado pelas instituições da República, para o bem da democracia brasileira. Após esse corretivo, o eleitor autorizará, em 2022, o início de um novo ciclo na História. Assim ocorreu nos Estados Unidos, mas em ordens diferentes. Primeiro o ocupante da Casa Branca foi derrotado nas urnas. Apesar disso, ele procurou levar a sanha autoritária às últimas consequências, ao conspirar uma insurreição em um dos Poderes da democracia norte-americana. Findo o pesadelo, em poucos meses, os EUA reencontraram o caminho da reconstrução. Eis uma lição que serve de alerta e esperança para o futuro das democracias.

 


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