Recordações da casa dos mortos

Depoimentos à CPI da Covid sobre procedimentos da Prevent Senior, que teria estreita ligação com o "gabinete paralelo" que influenciou o governo a promover o "tratamento precoce", chocam senadores. Por trás do atendimento estava, supostamente, a redução de custos

Correio Braziliense
postado em 07/10/2021 23:36
 (crédito: Edilson Rodrigues)
(crédito: Edilson Rodrigues)

A CPI da Covid avalia que deu um passo importante nas investigações sobre a Prevent Senior, após os depoimentos, ontem, do advogado Tadeu Frederico Andrade e do médico Walter Correa de Souza Neto — respectivamente, ex-beneficiário e ex-prestador de serviço da operadora de saúde voltados para a terceira idade. A empresa seria uma das molas mestras da difusão do chamado “tratamento precoce” — composto por medicamento sem eficácia contra a covid-19 —, por conta da ligação próxima com integrantes do chamado “gabinete paralelo”, que, supostamente, aconselhava o presidente Jair Bolsonaro e integrantes do governo. Para os senadores de oposição e independentes que compõem a comissão de inquérito, esse grupo estimulou a postura negacionista na pandemia e atuou para atrasar a compra das vacinas.


O relato de Tadeu Andrade, 65 anos, foi considerado pela maioria dos senadores como um dos mais impactantes tomados desde o início do inquérito parlamentar. Ele acusou a Prevent de “eliminar pacientes de alto custo”, de fraude documental e de outras irregularidades.
Para a cúpula da CPI, os depoentes confirmaram as informações prestadas pela advogada Bruna Morato, ouvida em 28 de setembro. Ela representa um grupo de 12 médicos que trabalharam na Prevent e elaboraram um dossiê com denúncias contra o plano de saúde.


Walter Souza Neto é um dos autores do dossiê, que está de posse da comissão. Ele confirmou aos senadores, por exemplo, que a direção da operadora obrigava os médicos a administrarem a pacientes com covid-19 um kit de medicamentos sem eficácia contra a doença. Segundo o depoente, quem não cumprisse as ordens corria o risco de demissão ou afastamento.
O relato do médico contradiz informações prestadas à CPI pelo diretor executivo da Prevent Senior, Pedro Benedito Batista Júnior, em depoimento no dia 22 de setembro. Na ocasião, o gestor disse que os médicos da operadora gozavam de total autonomia profissional.


Segundo Souza Neto, além de não terem autonomia, os médicos, no início da pandemia, foram proibidos de usar máscara de proteção contra a covid-19. Depois, segundo ele, a situação mudou, e a empresa providenciou estoques adequados de itens de proteção. “Tive que tirar a máscara e me expor ao risco. Não tinha o direito nem de me proteger. Acho que isso é o cúmulo da falta de autonomia”, disse aos senadores. Ele também contou que contraiu o novo coronavírus no final de outubro do ano passado.


O médico reafirmou também a denúncia de que a Prevent omitia a covid-19 de certidões de óbito de pacientes com covid-19. Segundo ele, o objetivo era não comprometer uma experiência que a operadora realizou com portadores da doença, utilizando medicamentos sem eficácia para essa finalidade. O suposto estudo não tinha autorização da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep).
Tadeu e Walter confirmaram, também, que a Prevent, com o

objetivo de reduzir custos e sem qualquer critério, retirava pacientes com covid-19 da UTI e os transferia para o setor de cuidados paliativos — destinado aos doentes sem chance de sobrevivência e que, entre outras medidas, fornece medicamentos para aliviar a dor no final da vida. O médico disse que muitas pessoas que morreram foram retiradas da UTI quando ainda tinham condições de sobrevivência.

Sobrevivente

Segundo Tadeu, se não fosse a intervenção da família, poderia ter sido uma dessas vítimas da redução de custos. Ele ficou 120 dias internado na Prevent, onde chegou a ser intubado. À CPI, relatou que a operadora lhe prescreveu cuidados paliativos sem autorização da família.


Disse, ainda, que a empresa fraudou seu prontuário médico. “A Dra. Daniela (de Aguiar Moreira da Silva) insere no meu prontuário início dos cuidados paliativos, sem autorização da família, e recomenda que não se faça mais hemodiálise, não se ministre mais antibiótico e também não faça ressuscitação. Ao final, ela diz o seguinte no prontuário, que está em mãos da CPI e do Ministério Público de São Paulo: ela escreve ‘em contato com a filha Maíra, a mesma entendeu e concorda’. Isso é mentira, minha família não concordou”, disse Tadeu.


Segundo o advogado, o prontuário traz informações que não condizem com o seu estado de saúde. Uma delas é de que ele tinha uma ponte de safena — procedimento cirúrgico adotado para transportar sangue desde a aorta até ao músculo cardíaco.


“Fui intubado. Período de UTI durou 30 dias. Quando uma das minhas filhas recebe um telefonema, da Dra. Daniela de Aguiar Moreira da Silva, informando que eu passaria a ter cuidados paliativos, ou seja, sairia da UTI iria para leito híbrido e lá teria, segundo as palavras da Dra. Daniela, maior dignidade e conforto, e meu óbito ocorreria em poucos dias. Seria ministrada uma bomba de morfina, e meus equipamentos de sobrevivência na UTI seriam desligados. Se eu tivesse alguma parada cardíaca, teria recomendação para não haver reanimação. Felizmente, minha filha não concordou”, acrescentou.


Tadeu disse aos senadores que quase foi vítima do que considera uma “trama macabra”. “Tive uma maravilhosa chance de ter sobrevivido. Por isso, não posso me omitir, tenho que denunciar. Minha família lutou contra essa poderosa corporação. Eles não aceitaram a imposição dos cuidados paliativos. Sou uma testemunha viva da política criminosa dessa corporação e de seus dirigentes”, acusou.


Em nota, a Prevent Senior negou ter iniciado os cuidados paliativos sem autorização da família do advogado. A operadora afirmou que a médica fez apenas uma sugestão, e não uma determinação. “O paciente recebeu e continua recebendo todo o suporte necessário para superar a doença e sequelas“, explicou a empresa.

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Conitec adia decisão sobre o kit covid

O órgão do Ministério da Saúde responsável pela análise técnica de novos medicamentos do Sistema Único de Saúde (SUS) adiou a decisão, prevista para ontem, que poderia barrar de vez o uso da hidroxicloroquina e da cloroquina como tratamento para pacientes com covid-19. Ambas comprovadamente não funcionam contra a doença, mas são promovidas pelo presidente Jair Bolsonaro e seus aliados como parte do chamado “tratamento precoce”.


A discussão foi retirada da pauta da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec) a pedido do coordenador do grupo, o médico Carlos Carvalho, da USP, escolhido pelo ministro Marcelo Queiroga. Carvalho, porém, disse que a decisão não foi influenciada por questões políticas. O médico afirmou que gostaria de levar para discussão do grupo de especialistas que elaboraram o protocolo um estudo publicado no fim de setembro, no The New English Medical Journal, sobre o remédio Regen-Cov.


A discussão sobre as diretrizes era o item 12 da pauta, mas foi retirado. A decisão da Conitec, que tem caráter consultivo, era esperada com preocupação pelo Palácio do Planalto por causa das potenciais consequências políticas e jurídicas. A recomendação indiscriminada de drogas que não funcionam em detrimento de medidas como incentivo à vacinação e ao distanciamento social é uma das frentes atacadas pela CPI.
O parecer dos técnicos que seria levado à votação reprovava fortemente o uso de remédios como a hidroxicloroquina, cloroquina e a azitromicina. O texto ressalta que, em tempos de pandemia, os recursos públicos devem ser empregados no que há mais certeza sobre a eficácia.

Queiroga terá de ir à comissão pela 3ª vez

O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, foi convocado pela terceira vez para depor na CPI da Covid. Dessa vez pesará contra ele a pressão que bolsonaristas fizeram para que a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec) retirasse da pauta a apresentação do parecer que condearia, definitivamente, o emprego dos medicamentos que compõe o chamado “tratamento precoce”. Além disso, ele será cobrado sobre a recusa em dizer se após duas semanas de quarentena em Nova York, infectado pela covid-19, tomou hidroxicloroquina no período.


Queiroga vem sendo criticado por setores da base bolsonarista e no governo. A ala ideológica critica o ministro por ter liberado a vacinação de adolescentes, por não agilizar um plano para desobrigar o uso de máscaras — como pretende o presidente Jair Bolsonaro — e por não atuar de forma mais contundente para barrar o “passaporte da vacina” — ele pessoalmente sugeriu o modelo, em abril. Apoiadores do governo criticam o documento por, no entendimento deles, ferir o direito de ir e vir.


A comissão é responsável por assessorar o ministério na decisão de quais medicamentos e tratamentos que serão utilizados pelo SUS. Uma decisão sobre os tratamentos medicamentosos para pacientes com covid deve ser conhecida até o dia 26. Em maio, a Conitec já havia reprovado o uso da cloroquina para pacientes hospitalizados.

"Capitã" faz BO contra chefe de gabinete

A secretária de Gestão do Trabalho e da Educação do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro — conhecida pelo apelido de “Capitã Cloroquina” por defender o chamado “tratamento precoce” —, registrou um boletim de ocorrência contra João Lopes de Araújo Júnior, chefe de gabinete do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga. No registro, ela afirmou que tem sido ameaçada e acusada de conspiração pelo funcionário. Nas mensagens, apresentadas como prova na Polícia Civil do Distrito Federal , Araújo Júnior acusa Mayra de atuar, em conjunto com o ministro do Trabalho e Previdência, Onyx Lorenzoni, pela demissão do ministro da Saúde. O chefe de gabinete de Queiroga diz, nas conversas, que a secretária está “cometendo um crime” e que “não tem qualquer lealdade ao ministro”.

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