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De olho nas eleições de 2022, Centrão volta a controlar recursos de emendas

Com mais de R$ 3 bi dos fundos partidário e eleitoral, caciques da "velha política" querem expurgar, no ano que vem, parte dos eleitos em 2018

Jorge Vasconcellos
postado em 17/10/2021 06:04
 (crédito: Divulgação/Senado Federal)
(crédito: Divulgação/Senado Federal)

Três anos após ser ameaçada de extinção pelo então candidato Jair Bolsonaro, a chamada “velha política” não só se mantém viva como já se estrutura para buscar um novo ciclo de poder nas eleições de 2022. O agrupamento de partidos conhecido como Centrão, historicamente associado à prática do “toma lá, dá cá”, hoje dá as cartas no governo, com o controle da máquina pública e da destinação de verbas de emendas parlamentares a redutos eleitorais de políticos aliados. Além disso, os caciques das principais siglas terão mais de R$ 3 bilhões dos fundos partidário e eleitoral para apoiar não só suas candidaturas como as de seus aliados mais próximos.

Diferentemente das promessas de campanha, Bolsonaro acabou se tornando refém do apoio de representantes da política tradicional, e essa condição se reforça à medida que seus índices de popularidade despencam e as chances de reeleição no ano que vem ficam mais distantes. Em retribuição, o presidente não tem economizado recursos públicos para manter os novos aliados por perto.

Os caciques da velha política, aos quais, agora, Bolsonaro presta reverência, querem dar o troco nas urnas no ano que vem. Não só pretendem expurgar parte dos parlamentares que se sagraram no pleito de 2018 como acreditam que a velha política será fundamental para dar sustentação ao próximo presidente, seja ele quem for. O “novo” pregado por Bolsonaro foi engolido pela realidade.

Na troca de favores, o governo tem lançado mão, principalmente, das emendas do relator-geral do Orçamento da União no Congresso, também chamadas de RP9. Ao contrário do que ocorre com as emendas parlamentares individuais e de bancada, nelas não há transparência sobre as indicações das verbas, e os acordos são firmados entre a cúpula do Congresso e o Executivo, privilegiando alguns parlamentares. Dessa forma, fica mais difícil fiscalizar se o dinheiro está sendo bem aplicado ou se houve barganha em troca de apoio político, por exemplo. O presidente da Câmara, Arthur Lira, é o maior expoente desse grupo.

Outro diferencial das emendas do relator em relação às demais é que elas não têm execução obrigatória. Mesmo assim, em plena crise econômica, a liberação desses recursos pelo governo está a todo vapor. Segundo dados do Siga Brasil, sistema de informações sobre o orçamento público federal, para 2021 foram autorizados R$ 16,8 bilhões de recursos de emendas RP9. Até 13 de setembro, dos R$ 5,2 bilhões que foram empenhados (reservados para pagamento), R$ 2,7 bilhões já haviam sido pagos.

Em junho, técnicos do Tribunal de Contas da União (TCU) concluíram, após uma auditoria, que o mecanismo usado para distribuir bilhões de reais das emendas de relator é incompatível com a Constituição. Os auditores apontaram falta de transparência, de critérios e de equidade no repasse dos recursos. A apuração foi realizada após o jornal O Estado de S. Paulo revelar que o Ministério do Desenvolvimento Regional destinou R$ 3 bilhões em emendas para políticos aliados e que parte dos recursos foi gasta na compra de tratores com preços até 259% acima dos valores de referência.

Também em junho, ao aprovarem as contas do governo de 2020, os ministros do TCU, ao contrário dos técnicos, não viram inconstitucionalidade na prática, mas recomendaram que o Executivo disponibilizasse informações transparentes sobre as emendas, em uma plataforma centralizada e de acesso público. Até hoje, porém, nenhuma providência foi tomada e ainda não é possível identificar os parlamentares beneficiados.

Controle

O senador Marcio Bittar (MDB-AC), aliado do Planalto, é o relator-geral do Orçamento de 2021. Já Arthur Lira, um dos principais caciques do Centrão, tem o controle sobre a distribuição de R$ 11 bilhões em emendas RP9 entre deputados. Os R$ 5,8 bilhões restantes dessa modalidade de emenda, destinados ao Senado, são distribuídos pelo ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira (PP), outro líder do bloco de partidos que dá sustentação ao governo. Ciro é um dos cotados para concorrer ao governo do Piauí em 2022, ao passo que Lira deve tentar a reeleição como deputado.

Para o deputado Ivan valente (PSol-SP), a “velha política voltou e ainda mais sofisticada”. “Bolsonaro está muito enfraquecido e precisa de um apoio grande no Congresso. Ele partiu direto para a compra de votos. Só que essa compra de votos está se dando por meio das emendas de relator”, ressalta. “É óbvio que isso tem nome: se chama toma lá, dá cá e se chama corrupção.”

Na opinião do deputado Áureo Ribeiro (Solidariedade-RJ), não há política velha ou nova. “O que houve foi que venderam uma narrativa de que, até então, tudo e todos não prestavam e que o grupo que se apresentara era dos mocinhos”, ressalta. “Na política, sempre existiram os que tiram proveito próprio e os que exercem, de fato, o papel de homens e mulheres públicas. Emenda não é sinal de corrupção. É uma ferramenta lícita para que os que conhecem suas bases levem o investimento certo para o lugar que precisa. Se usam como moeda de troca, o erro está em quem usa a caneta de maneira errada.”

Já o ministro da Cidadania, João Roma, condena o termo Centrão. “É uma palavra pejorativa. A política é formada por personagens da política, por políticos tradicionais que têm um espaço, uma legitimidade, uma vinculação com o povo brasileiro”, defende. “Vão ocupando espaço dentro da estrutura de poder justamente pelo histórico, pela acessibilidade.” (Colaborou Luana Patriolino)


Represália

Anteriormente, a destinação das verbas das emendas de relator para parlamentares do Senado era controlada pelo então presidente da Casa Davi Alcolumbre (DEM-AP). Ele perdeu esse poder depois que representantes do Centrão passaram a dar expediente no Palácio do Planalto. Comenta-se, nos bastidores, que essa é uma das razões para o político do Amapá, atual presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, resistir em marcar a sabatina do ex-advogado-geral da União André Mendonça, indicado por Bolsonaro para ocupar a cadeira vaga no Supremo Tribunal Federal (STF).

 

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Falta transparência em emendas

O economista Gil Castello Branco, secretário-geral da Associação Contas Abertas, considera que o uso político das emendas do relator é inconstitucional, por não atender critérios previstos no artigo 37 da Constituição, que trata da moralidade, publicidade e eficiência na administração pública. “Ali, não tem impessoalidade e não tem transparência. Essas emendas acabaram se constituindo, numa relação que sempre foi promíscua, mas que hoje se tornou ainda pior, entre o Legislativo e o Executivo”, ressalta o economista. “Essa relação, o idioma da conversa, sempre foi baseado nas emendas parlamentares. Isso piorou, ficou agravado, com o surgimento desses valores espantosos das emendas de relator.”

Ele destaca que as emendas do relator, ao contrário do que muitos imaginam, existem há muito tempo e que foi por meio delas que políticos conhecidos como “anões do orçamento”, na virada dos anos 1980 para os 1990, desviaram dinheiro público usando entidades sociais fantasmas e empreiteiras. Uma CPI que investigou o escândalo chegou a recomendar providências para adequar esse tipo de emenda ao interesse público.

Em 2006, uma Resolução da Câmara regulamentou as atividades da Comissão Mista do Orçamento e determinou que as emendas de relator seriam utilizadas apenas para a correção de erros e omissões, recomposição de dotações canceladas e atendimento às especificações do Parecer Preliminar — relatório prévio que o relator-geral apresenta e é votado no colegiado.

Castello Branco chama a atenção para o fato de, em 2007, as emendas de relator terem abrangido apenas três itens, um dos quais, o reajuste do salário mínimo. “O Parecer Prévio do Orçamento de 2020 compreendeu 28 itens. Com o presidente da República fragilizado, o preço do apoio político subiu”, frisa. Segundo ele, em 2020 e 2021, as emendas de relator aprovadas somavam R$ 30,1 bilhões e R$ 29,1 bilhões, respectivamente. Como esses valores inviabilizariam o Orçamento, retirando recursos até de benefícios previdenciários, o Executivo negociou, e essas cifras diminuíram em 2021, para R$ 16,8 bilhões.

O especialista destaca, ainda, que, além das emendas do relator, o governo tem lançado mão de um outro recurso orçamentário para agradar políticos aliados. São as chamadas transferências especiais, que agilizam os repasse de recursos para as unidades da Federação, mas reduzem a transparência e o controle social dos recursos do Orçamento da União.

Segundo Castello Branco, do total das emendas parlamentares no Orçamento da União deste ano, que é de R$ 33,8 bilhões, recursos da ordem de R$ 2 bilhões são repassados aos estados e municípios na forma de transferências especiais. “O valor passou de R$ 621,2 milhões em 2020 para R$ 2 bilhões em 2021. Como não há identificação da programação, não se conhece previamente a sua destinação no território brasileiro”, diz. (JV)

Vantagem na corrida eleitoral

Para a oposição, o uso político das emendas do relator permite que parlamentares aliados do governo recebam até 15 vezes mais recursos do que os demais. Na avaliação do deputado Ivan Valente (Psol-SP), com mais verbas para obras e outros investimentos nos redutos eleitorais, os apoiadores do Executivo disputarão as próximas eleições numa situação de vantagem em relação aos demais. “Isso tem um significado muito forte, porque é um direcionamento que acaba com a isonomia entre os parlamentares”, ressalta.

Valente diz que, recentemente, foi recebido pela ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF), relatora de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) protocolada pelo PSol contra o que os oposicionistas chamam de “orçamento secreto” do governo.

O deputado conta que conversou com a magistrada sobre novos fatos envolvendo o uso político das emendas do relator. Um deles foi a decisão do Tribunal de Contas da União (TCU) de determinar que a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Parnaíba (Codevasf) suspendesse oito licitações de compra de equipamentos e máquinas pesadas. A medida foi tomada depois que técnicos do órgão identificaram sobrepreços de R$ 11,1 milhões em pregões da companhia.

Outro caso envolvendo irregularidades com recursos provenientes das emendas RP9 foi constatado pela Controladoria-Geral da União (CGU), que apontou sobrepreço de R$ 130 milhões em uma licitação do Ministério do Desenvolvimento Regional para a aquisição de 6.240 máquinas pesadas de uso agrícola.

Além disso, no fim de setembro, a Procuradoria da República no Distrito Federal abriu uma apuração preliminar para avaliar se há indícios de que os ministros do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, e do Turismo, Gilson Machado, cometeram atos de improbidade administrativa.

O caso envolve supostas irregularidades na indicação, por parte de Marinho, de R$ 1,4 milhão em emendas do relator para a construção de um mirante turístico. A obra, em tese, beneficiaria o ministro, pois é perto de um terreno em que ele pretende lançar um condomínio, em Monte das Gameleiras (RN). No caso de Gilson Machado, os procuradores vão avaliar se houve omissão. (JV)

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