Um Parlamento sem limites

Correio Braziliense
postado em 04/07/2022 00:01

O sistema proporcional de eleição dos deputados à Câmara Federal, entre outros inúmeros defeitos, frauda a vontade popular na formação do governo e faz do Parlamento e da Presidência da República duas entidades separadas e estranhas uma à outra, vivendo realidades paralelas. Não é difícil imaginar que isto torna quase impossível a tarefa de governar. A combinação deste sistema eleitoral esdrúxulo com a fragmentação partidária excessiva impede qualquer presidente eleito, mesmo com grande apoio popular, de conquistar uma maioria orgânica no Parlamento para cumprir os planos que o levaram a ser eleito.

Esse estado de coisas, embora sirva com perfeição aos que fazem da política uma profissão ou um negócio, significa governos impotentes e ausência de políticas públicas consistentes e de longo prazo nos campos que são próprios do setor público. Hoje, as relações entre governo e Congresso se resumem a barganhas de interesses e conveniências, passando ao largo do interesse público.

Invasão

Tudo isto vem de longe, mas, ultimamente, ganhou outro corpo com a invasão pelo Congresso de vários poderes próprios do Executivo e com a disposição dos parlamentares de ignorar regras tradicionais. As eleições de 2018 foram uma contundente manifestação de rejeição da política e produziu um Legislativo sem vínculos ou condicionamentos institucionais, em que lideranças e partidos perderam qualquer poder ou relevância política.

Pode-se dizer, sem muito exagero, que a Câmara dos Deputados é composta não por 513 deputados organizados em bancadas partidárias, mas por 513 bancadas particulares, sem nenhum sentido de pertencimento político. Esse corpo perdeu o contato com a sociedade e não a representa senão por uma ficção legal, criando um vazio que afeta este governo e pode perpetuar-se, na ausência de algum evento regenerador.

Os últimos movimentos do Congresso, particularmente, são de molde a esgotar as reservas de respeito que porventura ainda merece da sociedade. E dão razão a quem já considera inteiramente rompidos os laços que restam da representação política.

Todos acompanhamos, até com certa incredulidade, a invenção do chamado orçamento secreto, expediente pelo qual Câmara e Senado passaram a executar, segundo seus próprios critérios e conveniências, uma parte importante do Orçamento público.Tal extravagância despertou uma indignação natural na população e exigiu a intervenção da Supremo Tribunal Federal (STF) para que se levantasse pelo menos o segredo das operações, segredo que fere de morte o princípio universal de publicidade dos gastos de recursos públicos. Quando se esperava que o Parlamento se retratasse e desistisse do privilégio, surge agora a proposta que torna esse Orçamento não apenas permanente, mas impositivo — ou seja, executado em quaisquer circunstâncias, mesmo diante de uma calamidade fiscal.

A base elementar de qualquer democracia é o respeito às regras constitucionais. O Congresso, no entanto, parece se achar isento desses limites. Precisando distribuir benefícios para facilitar seu desempenho eleitoral, o que é expressamente proibido durante o período que antecede as eleições, o governo, mas principalmente o Parlamento, senhor da última palavra, uniram-se para transgredir a regra, fingindo que a obedeciam. Sem muita imaginação, decretaram que o país vive uma emergência devido à alta dos preços dos combustíveis e que nas emergências as regras da Constituição podem ser suspensas, pelo menos até o fim do ano e o término das eleições. Essa emergência não é uma emergência, nem as emergências verdadeiras têm prazo para terminar. Tudo é apenas uma farsa, a demonstrar que na democracia brasileira o que decide não são as regras, mas sim o poder.

O Parlamento brasileiro já mostrou que pode muita coisa. Entre estas coisas, infelizmente, não estão o desenvolvimento do país e a diminuição da pobreza e do sofrimento das pessoas. Restou do episódio o gesto solitário do senador José Serra (PSDB-SP), o único a dizer não, lembrança de um Parlamento que já existiu e não existe mais.

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