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'Resgatar o orgulho de ser brasileiro': o movimento para ressignificar o verde e amarelo antes da eleição e da Copa

O movimento se opõe ao uso da bandeira, do hino e até do uniforme da seleção brasileira de futebol por grupos de direita, em especial por apoiadores de Bolsonaro

BBC
Julia Braun - Da BBC News Brasil em São Paulo
postado em 29/09/2022 14:36 / atualizado em 29/09/2022 14:36
Apoiadores do presidente brasileiro Jair Bolsonaro em protesto em Brasília.

crédito: GETTY IMAGES

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Apoiadores do presidente brasileiro Jair Bolsonaro em protesto em Brasília. crédito: GETTY IMAGES -

Durante seu show no Rock in Rio 2022, a cantora Ludmilla vestiu uma camisa da seleção brasileira de futebol para apresentar seus sucessos mais antigos. Declarada apoiadora do ex-presidente e candidato à presidência Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a funkeira pediu para que os fãs fizessem o "L" e anunciou o início de um "baile de favela".

Em suas redes sociais, a cantora afirmou posteriormente que o gesto foi uma tentativa de "resgate da camisa do Brasil". "Bora resgatar com força o orgulho de ser brasileiro", escreveu no Twitter.

Antes de Ludmilla outros artistas já haviam se empenhado em movimentos similares. Em um festival em Belo Horizonte em abril, o rapper Djonga também vestiu a camisa brasileira, ao mesmo tempo em que puxou gritos contra o governo do presidente Jair Bolsonaro (PL). No dia seguinte, a cantora Anitta se apresentou no festival Coachella, na Califórnia, com um figurino verde e amarelo: "As cores pertencem ao Brasil", disse.

As manifestações fazem parte de um esforço que engloba não só a classe artística brasileira, mas também candidatos, partidos e marcas, para promover um uso mais universalizado dos símbolos nacionais e das cores da bandeira do Brasil antes das eleições de 2 de outubro e da Copa do Mundo de futebol.

Segundo especialistas consultados pela BBC News Brasil, o movimento se opõe ao uso da bandeira, do hino e até do uniforme da seleção brasileira de futebol por grupos de direita, em especial por apoiadores de Bolsonaro.

"As pessoas estão começando a entender a forte carga simbólica que o verde e amarelo carrega no nosso país e que essas cores não pertencem somente a um segmento", diz Edilson Márcio Almeida da Silva, professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) que estuda o tema.

"A ideia desse movimento é recuperar o direito do uso dos símbolos nacionais para além da polarização ideológica atual."

Anitta de verde e amarelo no festival de música Coachella, nos EUA
Kevin Winter / Getty Images
Anitta de verde e amarelo no festival de música Coachella, nos EUA

'A nossa bandeira jamais será vermelha'

Segundo o antropólogo e sociólogo, a associação desses símbolos a aliados e eleitores de Jair Bolsonaro aconteceu após as manifestações contra o governo da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) entre 2015 e 2016.

"A princípio as manifestações não tinham necessariamente uma identificação com a direita: eram pessoas que usavam o verde e amarelo como forma de dizer que eram brasileiras, mas não concordavam com aquele modelo de país", diz Almeida da Silva.

"Mas não tardou para que o uso de outras bandeiras, como de partidos ou até do movimento LGBTQ+, fosse abafado pelos manifestantes."

"É nesse momento que a direita começa a se associar ao verde e amarelo, à bandeira e ao hino nacional. E a partir daí começa uma disputa simbólica sobre quem realmente tem direito de usar aquelas cores", afirma o professor da UFF.

De acordo com Mateus Gamba Torres, professor do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB), o uso exacerbado do patriotismo e dos símbolos nacionais é ainda típico de momentos mais autoritários no Brasil.

"Principalmente em momentos ditatoriais da nossa história, como durante o Estado Novo ou a ditadura militar, as cores verde e amarela são trazidas para os governos, principalmente aqueles relacionados à extrema-direita e a um nacionalismo exacerbado", diz o historiador.

"Essas cores pertencem ao Estado brasileiro, que é algo permanente e diferente do governo. Mas líderes autoritários tendem a confundir propositalmente as duas coisas."

Durante o Estado Novo (1937-1945), período ditatorial brasileiro sob o comando de Getúlio Vargas, por exemplo, um episódio marcante envolvendo a valorização dos símbolos nacionais foi a abolição em 1937 das bandeiras estaduais, para serem substituídas por uma só bandeira: a nacional.

Em novembro daquele ano, foi realizada ainda uma cerimônia na Praça Roosevelt no Rio de Janeiro (capital do Brasil àquela data), em que as bandeiras estaduais foram queimadas. O então ministro da Justiça, Francisco Campos, fez um discurso após a queima, afirmando que "não há lugar no coração dos brasileiros para outras flâmulas, outras bandeiras, outros símbolos".

Já durante o período da ditadura militar, uma lei sancionada em 1971 pelo então presidente, o general Emílio Garrastazu Médici, dispõe sobre a forma e a apresentação dos símbolos nacionais. Nos 13 capítulos da lei que tratam da bandeira nacional, as regras são claras: o símbolo deve ocupar lugar de honra entre todas as demais.

Eram comuns ainda propagandas do governo que valorizavam a bandeira, o hino e outros símbolos nacionais.

Jair Bolsonaro na rampa do Palácio do Planalto para acenar para seus apoiadores
Andressa Anholete / Getty Images
Jair Bolsonaro na rampa do Palácio do Planalto para acenar para seus apoiadores

Torres ressalta que diversos governos brasileiros democráticos e não identificados com a extrema-direita utilizaram o verde e amarelo em suas campanhas, mas de maneira mais sutil e menos frequente do que nesses dois momentos.

O especialista afirma ainda que as cores da bandeira foram utilizadas e propagandeadas por governos e movimentos organizados em contraposição ao que classificam como "ameaça vermelha".

"Essa ideia foi muito utilizada especialmente durante a ditadura militar e a Guerra Fria. Dizia-se que quem era comunista ou 'vermelho' não era brasileiro de verdade, pois estava a serviço do governo da União Soviética", explica Torres.

Mas, segundo o historiador, mesmo figuras que estavam do lado oposto do comunismo no espectro político, como alguns liberais, eram associadas à ideologia simplesmente por criticar o governo.

"Algo semelhante acontece no governo Bolsonaro e entre seus apoiadores, que se utilizam da mesma retórica para divulgar a ideia de que quem não concorda com seus ideais não é verdadeiramente brasileiro", diz.

De acordo com os especialistas ouvidos, o discurso fica evidente no bordão "a nossa bandeira jamais será vermelha", usado pelo atual presidente na campanha de 2018 e durante seu mandato.

"Na história do Brasil, toda vez que há a necessidade de confrontar o que ficou conhecido como perigo vermelho, há uma tendência de recuperar alguns símbolos também cromáticos que possam fazer frente ao vermelho", diz Edilson Almeida da Silva.

'O verde e amarelo é de todos nós'

O uso da bandeira nacional e das cores verde e amarelo pela campanha de Bolsonaro e seus apoiadores vem sendo questionado pelos principais adversários neste período pré-eleitoral.

Em uma propaganda veiculada pelo ex-presidente Lula antes do 7 de setembro, o candidato do PT afirma que a campanha de Bolsonaro usa "nossa bandeira para mentir, pregar o ódio e incentivar a venda de armas".

"O verde e amarelo é de todos nós", diz o vídeo.

Lula segura bandeira do Brasil durante comício em São Paulo
Alexandre Schneider/ Getty Images
Lula segura bandeira do Brasil durante comício em São Paulo

Nas suas redes sociais, o candidato do PDT, Ciro Gomes, adotou um discurso semelhante. "Nossa bandeira pertence ao povo brasileiro!", escreveu, acusando o atual presidente e candidato à reeleição de ser "um ladrão dos nossos símbolos nacionais".

A ideia também foi expressa por candidatos mais conservadores, como a representante do MDB na corrida pelo Planalto, Simone Tebet. "Esta bandeira não tem partido. Esta bandeira não tem dono. Ela é de todos nós", disse a senadora em uma propaganda eleitoral.

Movimentos organizados também têm dedicado certo esforço nessa campanha pela ressignificação dos símbolos. A União Nacional dos Estudantes (UNE), por exemplo, tem mobilizado a atual geração de estudantes a pintar os rostos de verde e amarelo em manifestações, em uma referência ao movimento dos caras pintadas, que culminou no impeachment de Fernando Color em 1992.

Em uma live em suas redes sociais, Bolsonaro rebateu as acusações contra sua campanha e disse que a esquerda "rasgava e sapateava" em cima do símbolo nacional. A declaração ocorreu durante transmissão de live por meio das redes sociais.

"Houve uma bronca aí que eu sequestrei a bandeira do Brasil para fins políticos. Pessoal, a esquerda, os 'partidecos' aí, esse pessoal rasgava a bandeira nacional, queimava, botava o pé em cima, sapateva em cima dela. Um ultraje à nossa bandeira, um símbolo nosso", alegou.

"E, hoje, o povo identifica a bandeira comigo, com os nossos candidatos pelo Brasil, com as pessoas de bem contra drogas, com aqueles que defendem a vida desde a concepção, que são contra as drogas, que são contra a ideologia de gênero, aqueles que defendem a propriedade privada sempre ameaçada pela esquerda", completou.

Bolsonaro emendou que a bandeira é de todos, mas que se a esquerda não a quer, continuará com seu governo.

De uniforme da direita a peça fashionista

Mas segundo os especialistas consultados pela BBC Brasil, para além de disputas políticas, a proximidade da Copa do Mundo de futebol, em dezembro, pode estar motivando também o movimento.

No lançamento da nova camisa da seleção brasileira em agosto, a CBF (Confederação Brasileira de Futebol) disse que a roupa "representa mais de 210 milhões de brasileiros".

Em uma outra propaganda, da marca de cerveja Brahma, o narrador Galvão Bueno chama o público a "lembrar do significado original da amarelinha"

Jogador Richarlison com a nova camisa da seleção
Anadolu Agency / Getty Images
Jogador Richarlison com a nova camisa da seleção

"Independente das nossas diferenças fora de campo, chegou a hora de lembrar o significado original da nossa camisa", diz a narração. "Tire a amarelinha do armário e vista a sua camisa, ela é sua, é minha e de toda a nossa torcida."

"A seleção brasileira de futebol também é motivo de orgulho nacional, assim como outros símbolos. E muitas pessoas deixaram de usar a camiseta do time nos últimos anos por receio de serem identificadas com um grupo político com o qual não concordam", diz Mateus Gamba Torres.

O novo modelo criado para a Copa de 2022, porém, esgotou rapidamente. Segundo o grupo SBF, dono das empresas Centauro e Fisia, distribuidora oficial da Nike no Brasil, nos dois primeiros dias do lançamento dos uniformes foram vendidas cerca de 10 vezes mais camisas, em comparação com 2018.

Há um terceiro impulso, porém, que também pode estar por trás da mudança de percepção em relação às cores brasileiras e que vem do mundo da moda.

Em meados deste ano, influencers, artistas e modelos internacionais começaram a postar fotos usando roupas verde e amarelas e até agasalhos e camisetas oficiais da seleção.

Conhecida como Brazilcore ou Brazilian Aesthetic, a tendência que faz referências à cultura brasileira ganhou ímpeto fora do país e entre a elite com a Copa.

Mas o uso de camisas da seleção brasileira, da bandeira e cores e de toda a estética do futebol sempre esteve presente nas periferias brasileiras. Por isso as críticas não demoraram muito a aparecer, com acusações de apropriação cultural.

A modelo americana Alex Consani com uma camiseta com
Reprodução / Instagram
A modelo americana Alex Consani, filha da designer brasileira Kennya Baldwin, é uma das celebridades que viralizou ao usar uma camiseta com "Brazil" escrito

Ainda assim, o "look" brasileiro viralizou nas redes sociais, principalmente no TikTok, onde a hashtag #brazilcore já tem mais de 17 milhões de visualizações, e se tornou assunto no mundo da moda, impulsionando o movimento de ressignificação que tenta afastar o uso das cores e da bandeira de motivos políticos - nesse caso, para transformá-los em símbolo fashion.

"O verde e amarelo têm um peso e uma carga simbólica muito grandes, mesmo fora do Brasil", resume o antropólogo Edilson Almeida da Silva.


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