Entrevista | Vinicius Marques de Carvalho | ministro da CGU

"Transparência é a regra; sigilo, exceção", diz Vinicius de Carvalho, da CGU

Titular da pasta diz que a quantidade de documentos classificados como secretos pelo período de até 100 anos é reflexo da "banalização" do sistema de avaliação patrocinado pelo governo Bolsonaro

Vinicius Doria
postado em 19/02/2023 03:55
 (crédito: Carlos Vieira/CB/D.A.Press)
(crédito: Carlos Vieira/CB/D.A.Press)

Quando o ex-presidente do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) Vinicius Marques de Carvalho foi convidado para assumir o comando da Controladoria-Geral da União (CGU), recebeu do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a missão de dar solução, em 30 dias, aos mais de 64,5 mil pedidos de acesso à informação negados total ou parcialmente ao longo dos quatro anos do governo de Jair Bolsonaro (PL). Protegidas por sigilos de até 100 anos, as informações estavam represadas em 300 órgãos públicos. “Impossível, nem sei se é possível reavaliar em um ano”, disse ele ao Correio, quando se deu conta do volume de documentos tarjados como secretos ou ultrassecretos.

As informações negadas se referem a várias áreas do governo e foram solicitadas por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), o principal instrumento de transparência à disposição do cidadão. São pedidos — na maioria, feitos pela imprensa — que vão desde a divulgação da carteira de vacinação de Bolsonaro até compras de hospitais militares ao longo dos dois anos mais graves da pandemia de covid-19.

Na sexta-feira, a CGU determinou ao Comando do Exército que suspenda o sigilo de 100 anos imposto ao processo administrativo que investigou a participação do ex-ministro da Saúde general Eduardo Pazuello (PL) — eleito deputado federal pelo Rio de Janeiro —, em um evento eleitoreiro de Bolsonaro com motociclistas, quando ainda era oficial da ativa, o que é proibido pelos regulamentos militares (o inquérito foi arquivado a pedido do Ministério Público Militar, que não viu irregularidades).

Depois de uma filtragem inicial, a CGU se concentrou em 234 documentos, que chegaram ao órgão como última instância de recurso. Em entrevista exclusiva, Vinicius Marques de Carvalho informou que tudo será decidido até meados de abril. Para ele, a quantidade de documentos classificados como sigilosos pelo período de até 100 anos é reflexo do que chamou de “banalização” do sistema de avaliação patrocinado pelo governo anterior. E avisa: “A transparência é a regra; o sigilo, exceção”. E vale tanto para os ministérios civis quanto para os militares.

Nesta entrevista, o ministro-chefe da CGU explica o papel do órgão na fiscalização e controle do Poder Executivo, fala sobre proteção de dados pessoais e revela os cuidados que precisa adotar na análise das denúncias de participação de servidores federais nos atos golpistas de 8 de janeiro.

A CGU recebeu a missão de avaliar os mais de 64 mil documentos carimbados como sigilosos pelo governo de Jair Bolsonaro. Como isso foi feito?

Quando chegamos, tínhamos a missão dada pelo presidente da República para reavaliar, em 30 dias, sigilos que o governo Bolsonaro tivesse imposto, usando a Lei de Acesso à Informação (LAI), em torno de quatro temas, usando argumentos de dados pessoais, segurança do presidente e de seus familiares, segurança nacional e investigações e operações de inteligência. O primeiro cruzamento que fizemos foi usar esses quatro temas como filtro e pegar todos os casos que o governo Bolsonaro, de algum modo, negou acesso parcial ou total a documentos. Esses casos somam 64 mil ao longo dos quatro anos do governo Bolsonaro. É, obviamente, impossível analisar 64 mil casos em um mês, não sei nem se é possível reavaliar em um ano. A equipe da CGU tem que lidar com esse passivo e com todos os casos que vêm para cá, que não pararam de chegar. Ao contrário, dada a postura do governo (Lula), de ser um governo que vai de fato aplicar a LAI, que quer ser mais transparente, a tendência é de que os pedidos de acesso à informação aumentem, gera um estímulo.

Quais foram os critérios para se concentrar nesses 234 que restaram sob análise?

Desses 64 mil casos, analisamos os que vieram para a CGU como recurso e casos que a CGU negou acesso. Identificamos nesses casos que tiveram negativa de acesso na CGU por volta de 1.300 (documentos), os que têm a ver com esses quatro temas, que são emblemáticos nesses quatro temas pela sua recorrência, pela sua importância. Com base nisso, identificamos 234 casos para serem analisados. Mas, para além da análise, é importante que a CGU cumpra sua função de orientar os ministérios a decidirem em primeira e segunda instância. São 300 unidades do governo federal que cumprem a LAI. De nada adianta a CGU, sozinha, ter uma diretriz e tomar determinadas decisões em casos concretos se essas orientações não se disseminem ao longo de todo o governo para que as decisões sejam corretas. A partir dessa análise, elaboramos um parecer que gerou 12 enunciados de orientação para todas essas unidades e, a partir desses enunciados, a gente vai decidir esses 234 casos e todos os que vierem.

Criou-se um parâmetro de análise?

Sim, para que os ministérios possam nos ajudar nesse esforço e, também, porque os casos chegam por lá, todos os dias.

A CGU é uma espécie de câmara recursal. Primeiro, os pedidos tramitam no âmbito dos ministérios. Tirando esses 234 casos, para os demais prevalece a decisão do órgão de origem?

Se um ministério toma uma decisão de negar o acesso, a pessoa que teve o acesso negado pode recorrer à CGU. Se não recorre à CGU, a decisão do ministério vale. Se o ministério concede o acesso, não tem como recorrer para a CGU fechar novamente o acesso, isso não existe, só existe recurso para negativa de acesso. Daí a importância desses enunciados, que orientam as decisões em primeira instância. Dos 64 mil casos, só 2,5 mil vieram para a CGU. Dos quase 62 mil, a decisão de negativa de acesso foi da primeira ou segunda instâncias e ficaram lá. É claro que a gente deseja que haja uma pequena quantidade de recursos, não porque as pessoas desistiram, mas porque o acesso é garantido nas duas primeiras instâncias.

A CGU tem casos emblemáticos, cujas decisões devem sair nos próximos dias, como o do processo administrativo aberto pelo Exército contra o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello pela participação dele, ainda na ativa, em um evento eleitoral do então presidente Bolsonaro. Qual o papel da CGU nesse caso?

A CGU basicamente decide se aquele documento merece ou não ser aberto de acordo com a LAI. Ela não abre o documento em si, a não ser em relação aos pedidos de acesso feitos diretamente à CGU, em que a CGU é a detentora da informação. Em casos como esse do ex-ministro Pazuello, o que analisamos é se o fundamento que determinou o sigilo é legítimo. Nesse caso específico, foi usado o argumento de que processos disciplinares de militares não podem ser tornados públicos mesmo após o seu encerramento porque se tratam de dados pessoais, em um primeiro momento. Depois, se alegou, na própria CGU — um argumento de que a própria CGU fez para fechar o acesso — que se tratava de uma questão de hierarquia militar. E que, quando se trata de hierarquia militar, os processos têm que ficar fechados, sigilosos.

Esse é um bom argumento?

O importante é entender que a opinião da CGU desde sempre é a de que processos administrativos, depois do seu encerramento, ficam públicos, não importa se são relativos a civis ou militares. Os processos no Superior Tribunal Militar (STM) são públicos. Os no Supremo Tribunal Federal (STF) são públicos. O que há, obviamente, são informações, dentro desses processos, que eventualmente sejam sigilosas. Um juiz, que num caso concreto, determine o sigilo, ou investigações em curso, inquéritos, isso tudo sempre se entendeu que pode ser considerado sigiloso. Mas a gente tem que analisar as circunstâncias de cada caso concreto, não posso adiantar qualquer julgamento de casos que ainda estão em análise.

A CGU não analisa o mérito, só a legalidade de se abrir ou não um sigilo?

Sim. E o argumento de dados pessoais, na nossa opinião, foi usado de maneira muito deturpada. Se assume que, por ser dado pessoal, não pode vir a público.

Mas como separar o público do privado em relação a pessoas públicas?

Há várias circunstâncias que podemos discutir. De que dado pessoal você está falando? Determinados dados pessoais, mesmo para pessoas públicas, merecem um grau de privacidade. Por exemplo, eu posso ser uma autoridade pública, um ministro, com um diagnóstico de doença grave e posso querer manter essa informação comigo. Não acho que, pelo fato de eu ser ministro, tenho que apresentar meu prontuário médico por aí. Salário é um dado privado, mas, como eu sou uma autoridade pública, meu salário tem que ser público, está em transparência ativa, inclusive. Mas o seu salário, como jornalista, não. Estamos falando do mesmo dado pessoal, só que, em um caso é dado que vem a público, em outro, não. O argumento é que se trata de recursos públicos, de controle da sociedade sobre valores que um ministro recebe. Por isso, deve ser público. Tem a discussão do tipo de dado e de quem estamos tratando, se de uma autoridade pública ou privada.

Um exemplo, nesse caso, é o do cartão de vacina de Bolsonaro. É informação de cunho médico, mas diz respeito a um presidente que foi gestor do país durante a mais grave pandemia do século. Como fica o sigilo?

Aqui, de fato, temos a ponderação dessas duas dimensões. A lei estabelece que um dado pessoal, se relacionado à honra, à intimidade ou à imagem, pode ser publicizado se houver interesse público. Relevante ou se tiver o consentimento da pessoa. Esse dado específico tem que ser colocado dentro de um contexto, talvez de uma política de saúde pública. Não estamos falando de exames, de prontuário médico, doenças ou medicamentos que a pessoa toma eventualmente. Estamos falando sobre uma política pública de vacinação em meio à maior pandemia que provavelmente nós vamos conhecer em vida. Por outro lado, o presidente Bolsonaro disse mais de uma vez que não tomou a vacina. Ele mesmo abriu esse dado. Ele poderia ter dito “não, não vou dizer, é minha vida pessoal”.

Esse é um critério objetivo de avaliação para CGU?

É algo que pode ser levado em consideração. A regra da lei é que a transparência é o valor primordial; o sigilo é exceção. Essa é uma regra da Constituição. As exceções têm que ser interpretadas como exceções, é sempre uma interpretação restritiva. Se não vemos um dano à imagem, à honra de uma pessoa, e se há interesse público minimamente configurado, entendo que a opção tem que ser sempre pela abertura. Mas há casos que são complexos, cada situação é diferente, tem que ser analisada com profundidade.

Em que pé está esse caso aqui na CGU?

Esse processo está com a equipe técnica e deve ser decidido brevemente.

É uma questão de dias ou meses?

Todos esses 234 casos devem ser decididos ao longo de março, até meados de abril, no máximo.

Como estão os processos que têm relação à pandemia, cujas informações foram fechadas pelo governo Bolsonaro?

Há casos relacionados à pandemia, como a compra de cloroquina, relação de pessoas que faleceram em hospitais militares, tempo médio de internação, gastos públicos. Esses casos vão ser julgados. Não faz sentido não dar transparência, por exemplo, a gastos públicos. Se tem algo que deve ser transparente são gastos públicos. A não ser gastos relacionados à segurança do presidente, à segurança nacional.

Na pandemia, muitas despesas foram feitas sem licitação, por causa da emergência sanitária...

...E que não têm problema, em tese. Contratações emergenciais existem porque emergências existem. Esse é um caso muito evidente nesse sentido.

Com relação a dados militares, qual é a competência da CGU?

As Forças Armadas cumprem uma atribuição constitucional de defesa das fronteiras, de defesa do país. Para isso, realizam contratos públicos, adquirem equipamentos, programam atividades. Nessas circunstâncias, há uma preocupação de não se abrir determinadas informações. A classificação de documentos prevista em lei — reservados, secretos e ultrassecretos — existe exatamente para resguardar essas funções. É natural que o Ministério da Defesa, as Forças Armadas, utilizem essas possibilidades para preservar essas informações. A interpretação do que se encaixa nesses critérios tem que ser, obviamente, de situações que de fato necessitem de algum tipo de sigilo. Estender isso para outras coisas, usar esse argumento de forma abstrata, para outras situações, é o problema. Tive conversas com as Forças Armadas, com a Defesa, e tudo o que me foi dito é que há um comprometimento das Forças Armadas de implementar a Lei de Acesso à Informação e de aprimorar seus mecanismos de análise de sigilo e de classificação de documentos para que essas situações, de fato, se reservem aos casos que, evidentemente, mereçam sigilo.

Como atingir esse objetivo?

Sem estar relacionadas necessariamente às Forças Armadas, temos várias situações de informações classificadas como reservadas cujo prazo já expirou, mas a informação ainda não foi desclassificada. Isso precisa ser resolvido. Acho que acontece de maneira generalizada. Claro que quem classifica mais, proporcionalmente, acaba tendo mais esse tipo de situação. A lei diz que informações classificadas como secretas ou ultrassecretas podem ser revisadas pela Comissão Mista de Reavaliação das Informações (CMRI), composta pelos ministérios, mas não estabelece revisão para informações reservadas, que são as de cinco anos de sigilo.

Esses casos devem ser imediatamente tornados públicos?

Claro. E, se houver trechos de informações que eventualmente mereçam ser tarjados, tarja-se o trecho. Pode haver um dado pessoal sensível, um número de CPF, uma questão relacionada à vida privada, como um processo disciplinar de assédio sexual, por exemplo. A pessoa que foi assediada tem o direito de manter sua privacidade. Casos assim, mesmo depois da desclassificação, podem continuar sigilosos, mas apenas aquele dado pessoal.

O que vale para os civis também vale para os militares?

A LAI se aplica também aos militares. Do mesmo jeito que a CGU, em grau de recurso, decide sobre negativas de acesso nos ministérios civis, também decide sobre negativas de acesso nas Forças Armadas. O que ela não faz a nenhum deles é, por exemplo, revisar classificação como reservado, a CGU não tem competência para isso. Mas, na medida em que há uma orientação expressa de cumprimento da lei, de ter um governo transparente, aberto, a gente tem que tensionar, no bom sentido, argumentos de não abertura. Quando alguém não abre uma determinada informação dizendo que o pedido é desproporcional, desarrazoado — às vezes, temos negativa de acesso com base nesses argumentos —, temos que conversar com os órgãos. Quem pede determinada informação não tem noção de que alguém vai passar 60 dias trabalhando naquilo, que tem de trabalhar em outras coisas. Mas, se responder que algum tipo de recorte pode ajudar… Isso gera uma espécie de efeito pedagógico sobre quem pede a informação. E há também quem pede informações que são sabidamente desproporcionais, sabidamente desarrazoadas ou que são sigilosas de algum modo só para gerar desgaste para quem responde. Não vou falar de casos concretos, mas já vi acontecer.

Foi o caso da lista de presença do jantar da posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que o Itamaraty, em um primeiro momento, classificou a informação como sigilosa?

Não é o caso, o pedido não era desarrazoado nem desproporcional. Foi uma situação em que (o Itamaraty) decidiu como sempre havia decidido naquela circunstância, e não se apurou a necessidade de se adequar às novas orientações. Acontece, foi começo de governo. Mas estou falando de situações diferentes, e que a pessoa que pede tem o objetivo de dar a notícia de que aquela informação não foi entregue e, eventualmente, colocar o governo numa contradição. E é uma informação que não seria entregue em nenhuma circunstância. Por exemplo, uma informação claramente relacionada à segurança do presidente da República. Se tivessem pedido a lista de convidados da festa do Itamaraty antes de ela ocorrer? Todo mundo sabe que essa lista não seria entregue antes da festa ocorrer, por uma questão de segurança. Aí, quem pediu fala “pedimos a lista, ela não foi oferecida, portanto, o governo diz que seria transparente, mas não é”. Esse tipo de coisa pode acontecer, e precisamos saber lidar com isso e esclarecer a população, os meios de comunicação que esse tipo de situação, quando acontecer, está se militando contra a LAI, e não a favor dela.

Houve banalização do sigilo no governo Bolsonaro?

Houve, principalmente em relação ao argumento de dados pessoais. Esse argumento de que tem o nome da pessoa, isso é dado pessoal, e, portanto, é classificado com 100 anos de sigilo, não faz o menor sentido, é banalização. Qualquer um que estude proteção de dados pessoais, que estude a Lei de Acesso à Informação sabe que o fato de um dado ser pessoal não significa, necessariamente, que não possa ser público. Existem graus de proteção, a questão do interesse público, de quem a gente está falando.

São duas leis relativamente recentes — a LAI e a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) —, em que ainda não há muita jurisprudência, mas que abrem essa possibilidade de confronto entre o que deve ser protegido e o que deve ser transparente. Como a CGU interpreta essas duas legislações?

Não vejo confronto entre as duas legislações, são plenamente compatíveis. O confronto foi artificialmente criado. A LGPD visa proteger o detentor de dado pessoal de um abuso, muitas vezes até comercial, do uso de dados pessoais. Prevê, inclusive, a responsabilidade de quem trata os dados pessoais. A proteção de dados pessoais, genericamente falando, na dimensão da privacidade, está no contexto da Constituição, assim como o princípio da publicidade, da transparência. Se a presença de dados pessoais como um limite ao acesso à informação fosse tão impeditivo, isso não decorreria da LGPD, mas da própria Constituição. A proteção da informação pessoal já está esculpida na Lei de Acesso à Informação. Mas ela é para dados pessoais muito específicos. Mesmo assim, quando não houver interesse público que demande a abertura. O que se fez (no governo anterior) foi ampliar a noção de dado pessoal e esquecer que a lei falava de dados pessoais relativos à intimidade e esquecer a dimensão do interesse público.

Cartões de pagamento, conhecidos como cartões corporativos da Presidência da República, por exemplo, em que há gastos de interesse público, mas, também, despesas de cunho privado, estão nesse contexto?

Sim, há uma discussão sobre o que é gasto relacionado eventualmente à segurança do presidente, e que é sigiloso, não porque são dados pessoais, mas por isso (segurança presidencial) ao longo do mandato. Mas há gastos de cunho personalíssimo, como medicamentos que o presidente toma, e que, talvez, não precisasse ser aberto. Há uma discussão, inclusive, sobre se esse tipo de gasto deve ser feito por cartão de pagamento ou com o próprio salário do presidente da República. É um debate. O gasto que você faz com seu salário não é público, certo? Se eu sou um ministro e vou comprar um remédio para dor de cabeça, não preciso dizer às pessoas que estou comprando o remédio com meu salário. Desde que não use meu salário para cometer nenhum ilícito, meu salário é meu salário. Mas cartão de pagamento não é salário.

Com a abertura das informações do cartão corporativo de Bolsonaro viu-se uma lista grande de despesas para viabilizar eventos de cunho eleitoreiro, como as famosas motociatas…

É um exemplo claro de como a transparência e o acesso à informação são importantes. Não teríamos acesso a essa informação se não fosse por isso, até para analisar se é correto ou não. Não estou prejulgando, mas tem de ser discutido e investigado. Não sou julgador do que acontece com o cartão do presidente da República, mas um gasto como esse com as motociatas é relacionado à segurança do presidente? Pagar comida para todo mundo que participou da motociata é um gasto que precisava terminar o mandato para ser publicizado? Segundo: é um gasto que pode ser feito com dinheiro público? Terceiro: se puder ser feito, tem que ser com cartão de pagamento?

Como será a relação da CGU com a Autoridade Nacional de Proteção de Dados?

A autoridade de proteção de dados tem um papel muito relevante, de interpretação da LGPD para esclarecer determinadas questões, como essas que mencionei. Tem um papel importante sobre compartilhamento de dados dentro do governo, porque os ministérios precisam, muitas vezes, de dados de outros ministérios que, às vezes, são dados pessoais que estão sob responsabilidade de outros órgãos, para desenhar, organizar, monitorar e mensurar as políticas públicas. Já ouvi coisas assim: “Não posso passar a informação porque são dados pessoais”. Tenho uma avaliação — não quero me colocar na função de intérprete principal da LGPD —, de que não tem sentido restringir o acesso à informação entre órgãos do poder público quando o que se quer é aprimorar as políticas públicas. Desde que, obviamente, se protejam os dados pessoais com o mesmo nível de proteção do órgão que compartilhou a informação.

O governo se diz transparente, há o Portal da Transparência, mas há muitas queixas em relação ao acesso à informação. O cidadão não consegue achar o que ele procura, os caminhos da transparência nos sites governamentais são complexos.

São ferramentas que precisamos aprimorar. Temos agora a Secretaria de Integridade Pública com a função, entre outras, de gerir o Portal da Transparência. Temos de buscar soluções de tecnologia da informação para torná-lo mais amigável, mais acessível. Já demos essa orientação à equipe. Inclusive, com informações de interesse público que podem passar a fazer parte do portal.

Que tipo de informação?

As relacionadas, por exemplo, à execução do Orçamento público. Essas informações precisam ser apresentadas à população da maneira mais translúcida possível. É um aprimoramento constante. A gente tem uma estratégia de governo aberto que retroalimenta essa agenda porque, na medida em que essas informações vão se tornando públicas, as entidades da sociedade civil e, eventualmente, até empresas, podem pegar essas informações e fornecer soluções para que essas informações sirvam à agenda de políticas públicas e a tomadas de decisão tanto no setor público como no setor privado, para garantir mais eficiência. Isso pode gerar mais inovação, temos de fazer esse círculo virtuoso se acelerar.

Toda vez que o setor privado se relaciona com o setor público, esse relacionamento tem que ser público também?

O relacionamento entre empresas e Estado tem que ser pautado pela publicidade, evidentemente. Existem situações em que o Estado está em posição de defender interesses de empresas brasileiras no mercado internacional, por exemplo. Todos os países fazem isso, os Estados Unidos são o exemplo mais efetivo de país que defende os interesses de suas empresas fora de suas fronteiras. Ao fazer isso, às vezes, há informações que o Estado recebe sobre as empresas que envolvem negociações comerciais em que há um sigilo temporário que se impõe, isso é justificável. Mas o dia a dia da relação entre as agendas empresariais perante o Estado tem que ser contaminado pela lógica da transparência.

O empresário tem que saber que ele vai ser identificado, as agendas com o governo terão publicidade, vão ter transparência...

Claro. Muitas vezes, se trata de uma visita institucional, o sujeito vai lá apresentar o que a empresa faz, o que a empresa está fazendo em determinado setor. Às vezes, faz a defesa de um interesse mais específico, a defesa de um projeto de lei, por exemplo. O tema de uma reunião como essa deve estar claro.

O senhor defende a regulamentação do lobby?

Acho que é um passo importante. O debate é menos sobre se vai ter regulamentação, mas como será a regulamentação. Estamos começando a nos aprofundar nesse tema aqui (na CGU). Temos de ouvir um pouco o que as pessoas que atuam no setor, tanto do lado do poder público quanto das empresas, das entidades da sociedade civil têm a dizer sobre o projeto de lei aprovado na Câmara dos Deputados (PL 1202/2007, do deputado Carlos Zarattini, do PT, aprovado no fim de novembro do ano passado) para que possamos condensar uma posição e ir ao diálogo com o Congresso Nacional (o projeto ainda precisa ser aprovado pelo Senado). Algum tipo de regulamentação, sim, temos que ter, é um avanço importante.

E com relação à quarentena do servidor público que vai para a iniciativa privada?

Essa questão é importante. Quando se regulamentou a quarentena, que tinha essa discussão sobre o conflito de interesse, se dizia que a pessoa que ocupou um cargo durante um período teria uma quarentena remunerada de seis meses, havia a crítica de que ela receberia salário por seis meses sem trabalhar. Na época, eu tinha o entendimento de que isso era bom para o país, fazia sentido uma regra que há em vários lugares do mundo e que deveria ser quase uma regra de ouro. Isso foi se relativizando ao longo do tempo. Foram sendo criadas várias situações concretas que formaram uma zona de atrito, com mais exceções do que regras. Em relação às informações privilegiadas, a quarentena é eterna. A pessoa não pode dar acesso a essas informações que obteve no exercício do cargo e que são sigilosas de algum modo. As regras de impedimento e suspeição valem para depois da quarentena, inclusive, são regras do Código de Processo Civil. Se eu atuei em um processo no poder público, quando vou para a iniciativa privada, não posso atuar naquele mesmo processo. É um impedimento que dura para sempre.

A regra da quarentena deve admitir alguma flexibilidade?

Temos que ter uma regra de quarentena que seja clara. Se houver exceções, que sejam efetivamente exceções.

Com relação aos atos de 8 de janeiro. Já há investigações sobre a participação de servidores públicos na invasão das sedes dos Três Poderes. Como a CGU atua nesses casos?

A partir do momento em que a investigação termine e haja a abertura de um processo judicial, entendo que, como regra, esses processos são públicos. Um juiz pode tomar alguma posição em relação a casos concretos de manter em sigilo. No inquérito, devemos tomar um cuidado, porém. Aqui na CGU, recebemos nomes de pessoas que poderiam ser servidoras federais, mas, quando fizemos a pesquisa, percebemos que eram homônimos. Imagine se isso tivesse sido publicizado dentro do inquérito? Esses servidores estariam sendo acusados de ter participado do ato quando, na verdade, eram homônimos. Temos de ter esse cuidado para não acusar indevidamente ninguém. A CGU tem a competência para avaliar a participação de servidores públicos federais nesse trágico evento. Se houver participação de servidores federais, se a polícia os identificar, podemos analisar eventuais punições no ponto de vista da lei dos servidores públicos.

Inclusive demissão?

Inclusive a demissão, dependendo do nível de participação da pessoa. Se houver servidores que participaram dos atos, participaram ativamente da invasão dos prédios públicos, da depredação do patrimônio público e da corrupção da nossa democracia, dessa tentativa de aniquilamento da democracia, acho gravíssimo.

Sem anistia?

Não se trata de anistia, aqui. Trata-se de ter um julgamento sobre a conduta de cada um. É óbvio que a lei vale para todos os servidores públicos e, nesse caso, também vai valer, como em todos os outros.

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