Rompendo barreiras

Mulheres da segurança do Congresso falam da desconstrução diante de preconceitos

Apesar da baixa representatividade nos postos de comando, policiais legislativas avançam na quebra da hegemonia masculina

Kelly Hekally
postado em 12/03/2023 03:30
Leonela Santos é policial legislativa na Câmara dos Deputados há quase uma década. Ela atuou no combate aos ataques de 8 de janeiro -  (crédito: Arquivo Pessoal)
Leonela Santos é policial legislativa na Câmara dos Deputados há quase uma década. Ela atuou no combate aos ataques de 8 de janeiro - (crédito: Arquivo Pessoal)

O trabalho feminino em profissões historicamente masculinizadas tem demarcação no Congresso Nacional. Em atividade há cerca de 20 anos, as Polícias Legislativas da Câmara dos Deputados e do Senado unem ambos os gêneros para compor seus respectivos contingentes, que cuidam da segurança das instalações das Casas. Nos espaços, o trabalho operacional misto dá o tom, ainda que em menor escala feminina. Uma dessas experiências de policial legislativa é contada por Leonela Santos, que se aproxima dos 10 anos como servidora do Departamento de Polícia Legislativa (Depol) da Câmara.

Frisando haver diferenças de atividades entre as polícias estaduais, caracterizadas por serem ostensivas, e as policiais legislativas, Leonela conta que uma de suas honras é atuar numa frente que presta serviços a pessoas que vão "buscar seus direitos e participar do processo democrático". "Nós lidamos com o cidadão. Estamos numa casa para pessoas reivindicarem e exercerem seus direitos. Temos consciência de que isso faz parte da democracia."

Há ponderações quando o tema é representatividade, como na ocupação dos postos de comando. O desejo de ver ampliada a isonomia em funções fora do ambiente operacional está na lista de Leonela, que pondera, entretanto, que a baixa inserção de mulheres em funções de poder decisório é um cenário geral do país. "Não é a realidade só do departamento." O ambiente predominantemente masculino, argumenta, traz práticas culturalmente próprias ao homem, mas a presença feminina amplia os diálogos e ajuda a quebrar barreiras impostas.

Os ganhos, complementa a policial, se estendem à interação com visitantes e demais envolvidos no cotidiano da Câmara. "A gente percebe que a tranquilidade e a capacidade mais características das mulheres em momentos de tumulto, quando tudo está à flor da pele, contribui para lidar com as situações." Questionada se a compreensão majoritária de que mulheres possuem "maior delicadeza" não pode ser considerada um estigma, Leonela afirma que se perguntou diversas vezes sobre o tema, mas que a dinâmica a leva a crer que a "habilidade" é comprovada em meio às situações cotidianas.

O caráter incisivo de visitantes em momentos de se exigir determinações da Casa dá brecha para atitudes ríspidas contra policiais, comenta. "Já aconteceu várias vezes de alguém não gostar de algo que pedimos que seja feito e sermos tratadas com grosseria. Debaterem, falarem alto, menosprezarem por ser uma mulher naquela situação fazendo exigências." Entre os colegas, pondera, o tratamento acontece de maneira respeitosa, sem distinção de gênero. "Somos um departamento."

Na Secretaria de Polícia do Senado (SPOL) há 12 anos, Isabela Lisboa defende que a presença de mulheres na corporação agrega força de trabalho policial em diferentes níveis. "É gratificante perceber que nossa presença possibilita a abertura para que outras mulheres se aproximem, seja pela sensação de representatividade, seja eventualmente por noticiar com mais liberdade casos de violência de gênero". Para a também servidora, há um desafio a ser enfrentado para além dos limites da profissão no local de trabalho, que extrapola os costumes da sociedade — o trabalho em si da atividade policial.

"O desafio enfrentado, com todas as características patriarcais apresentadas, é que a consideração da atividade policial tenha por foco unicamente a excelência do trabalho empreendido, independente da percepção de gênero". Acerca das atividades do dia a dia, Isabela diz que as colegas, assim como ela, exercem-nas em serviços diversos e atuam em trabalhos operacionais em conjunto com os demais policiais, "como no controle de distúrbios e demais procedimentos afetos ao policiamento".

"É difícil dizer o que é mais importante sendo mulher. Tudo é muito importante. Vi uma mensagem no Dia da Mulher que dizia 'parabéns para você que quando sai de casa tem medo do horário em que vai voltar'. Foi a que mais me chamou atenção, porque é exatamente isso. Se a gente conseguisse alcançar essa percepção dos homens e outras pessoas, seria incrível."

Parceira para toda hora

Para aprimorar seu trabalho como policial legislativa, Leonela ganhou, no primeiro ano de pandemia, uma colega especial: Margaux. A golden retriever faz parte de um projeto-piloto com cães farejadores criado em 2017, com foco na detecção de explosivos e armas de fogo.

Leonela Santos com a cachorra Margaux, colega de trabalho
Leonela Santos com a cachorra Margaux, colega de trabalho (foto: Arquivo pessoal)

Neste momento, a Casa está iniciando as atividades da pequena de três anos na detecção de armas de fogo com maior foco. A postura de seriedade antes da chegada da cachorrinha, conta Leonela, teve que ser relativizada. Sucesso entre visitantes de todas as idades, Margaux arranca sorrisos e fotos que vão desde crianças a deputados federais e outras autoridades.

"Ela tem a simpatia dela, mas cabe a mim explicar o trabalho dela". Isso exige diálogo, razão pela qual Leonela se vê em um desafio constante entre ser simpática e manter o distanciamento. "Acho que é tudo muito inédito. O fato de ser uma figura feminina é mais convidativo, mas estou com meu uniforme que passa a imagem de uma figura ostensiva, que está ali para reprimir, só que com um cãozinho de lado", conta, sinalizando que há um equilíbrio entre os dois perfis aparentemente antagônicos.

8 de janeiro

A presença de mulheres no cotidiano e, em especial, em "cenários de guerra" na Praça dos Três Poderes apresentou a Leonela e aos colegas um novo olhar sobre homens e mulheres nos momentos de crise. O 8 de janeiro é o principal exemplo. "Estar aqui no dia 8 foi uma explosão de emoções. Todo mundo que trabalhou nesse dia viveu um cenário de guerra. Ficamos três horas e meia aqui dentro. Não sabíamos o que estava acontecendo."

Com lágrimas escorrendo, a servidora afirma que a data marcou a certeza de um sentimento: o de pertencimento à Casa. "Nós, que desenvolvemos um amor por esses espaços, vermos aquela ira, as pessoas se ajoelhando e agradecendo a Deus, dizendo que estavam aqui para matar e morrer, destruindo tudo aquilo que é tão afeto a nós me deixou inundada de tristeza. Recebi muitos feedbacks de colegas dizendo que se sentiram motivados a não desistirem por eu estar ao lado deles."

Leonela adensa que sua "falta de vigor físico" é compensada com especializações que busca realizar, a fim de contribuir dentro do departamento com outras expertises. "Como sei que meu vigor físico vai fazer falta para o colega, procuro me especializar em outras coisas. Hoje, faço parte da equipe para atuar com bombas de gás lacrimogêneo. Fiz essa habilitação para entregar aquilo que meu vigor físico não pode oferecer", explica.

"No dia 8, nós fomos os primeiros engolidos na multidão. Estava ao lado da viatura quando ela caiu no espelho d'água. Eu pensei que fôssemos morrer. Nosso objetivo era único: não os deixarem entrar no plenário. Acabou gás, acabou muita coisa, mas conseguimos conter. Nesse momento, eu vi o estigma de mulher frágil sendo rompido."

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