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Lula aposta no Brics no xadrez mundial; líderes do bloco se reúnem em agosto

A aproximação com a China é um passo do presidente para buscar protagonismo e fortalecer o bloco como alternativa à liderança mundial dos EUA. Visita à Brasília do chanceler russo, Sergey Lavrov, é outra jogada do brasileiro

Vinicius Doria
Henrique Lessa
postado em 16/04/2023 03:55 / atualizado em 16/04/2023 10:30
 (crédito:  Marcelo Camargo/Agência Brasil)
(crédito: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

A viagem de Estado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à China, considerada a mais importante dos primeiros 100 dias de governo, foi articulada com muitos interesses em jogo, além dos tradicionais acordos bilaterais firmados entre os dois países. O encontro entre o chefe do Executivo brasileiro e o líder chinês, Xi Jinping, marcou, de forma clara, a intenção das duas nações de inserir o Brics — acrônimo de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul — no tabuleiro da geopolítica mundial, dominado, nas últimas duas décadas, pela liderança dos Estados Unidos, após a queda do império soviético.

A chegada, amanhã, do ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov, a Brasília, é mais um passo no processo de redefinição do papel do bloco em um cenário global bem mais complexo e tenso, por causa da invasão russa à Ucrânia.

Uma das principais diferenças entre o primeiro encontro de cúpula do Bric, em 2006, ainda sem a participação da África do Sul, e a situação atual é a posição da China. O maior país emergente do clube, na época, assume, agora, a liderança inconteste do bloco como única potência mundial a rivalizar com o poderio econômico e militar dos EUA. A agenda dos cinco sócios, até então limitada à defesa de interesses comerciais nas negociações com as principais economias do mundo, principalmente na área do agronegócio, também ficará mais ampla.

Desde a posse do presidente Lula, em janeiro, o Itamaraty trabalha intensamente para costurar com os parceiros do Brics a pauta da próxima reunião de chefes de Estado do grupo, que ocorrerá em agosto, em Johanesburgo, África do Sul, em data ainda a ser definida. Antes, em julho, também no país africano, os chanceleres dos cinco países fecharão os acordos e compromissos que serão assinados pelo agrupamento.

A questão mais sensível para os diplomatas envolvidos nessas negociações é a incerteza quanto à participação do presidente russo, Vladimir Putin, na reunião de cúpula de agosto. Putin tem contra si um mandado de prisão expedido pelo Tribunal Penal Internacional (TPI), sediado em Haia (Holanda), por crimes de guerra. Como a África do Sul (assim como o Brasil) é signatária do estatuto firmado com base no Acordo de Roma, de 1988, (ao qual o Brasil aderiu em 2002, no governo de Fernando Henrique Cardoso), Putin teria que ser preso ao desembarcar em solo sul-africano.

Ao longo da semana, o Correio ouviu diplomatas e especialistas em relações internacionais para identificar os desafios que se impõem aos sócios do Brics neste momento de grandes incertezas globais. A guerra na Ucrânia é, unanimemente, apontada como o principal entrave, por envolver, justamente, o sócio responsável pela deflagração do conflito armado em solo europeu, repudiado internacionalmente pelas Nações Unidas, com voto do Brasil.

Por outro lado, as questões econômicas abrem áreas de consenso e de oportunidades para os cinco países, envolvendo, especialmente, o comércio (principalmente commodities do setor agrícola), investimentos em infraestrutura, acesso a novas tecnologias e meio ambiente, como o enfrentamento da emergência climática.

"Para o Brasil, será um momento muito especial, porque o país se projeta muito por meio do Brics. Ainda mais agora, momento em que o Brasil ocupa a presidência do banco do Brics, com a ex-presidente Dilma Rousseff. O banco tem recursos dos países membros — e a China aloca a maior parte dos fundos — para financiar, sobretudo, a área de infraestrutura. O Brasil ganha uma projeção imensa nesse sentido", avalia um diplomata envolvido diretamente nas negociações do Brics.

"O Brasil sempre foi um país que defende o multilateralismo, a não ingerência em assuntos internos, a soberania territorial, a solução pacífica das controvérsias. O Brasil é tido como um país muito confiável por parte dos outros parceiros justamente por essas posições tão equilibradas e legalistas que adota."

O diplomata considera este ano extremamente importante para o país, porque prioriza o Brics em um momento em que o grupo está em evidência. "O governo está tomando as decisões mais acertadas, de respeito ao multilateralismo. Estamos retomando as parcerias, não estamos buscando restrições às nossas relações, ao contrário, e essa é a tradição do país."

"Brics ainda é um sonho, porque a posição dos diferentes países ainda é díspar. A Índia ainda é protecionista, a China é mais pragmática, a Rússia é uma incógnita sempre. Ainda não vejo o Brics como uma expressão prática, é teórica ainda, muito boa, positiva, mas precisa alinhar questões de caráter macroeconômicos que não estão claros. Mas tem potencial para vir com vigor, com força, para assumir um papel de protagonismo", disse à reportagem Roberto Rodrigues, professor emérito da Fundação Getulio Vargas e ministro da Agricultura no primeiro mandato do presidente Lula.

"O Brics tem um potencial espetacular, reunindo quatro países enormes, e tem mais países chegando agora", disse o professor, se referindo às negociações para a entrada de Argentina e Irã, cujas conversas diplomáticas estão em andamento.

Para Hugo Albuquerque, especialista em relações sino-brasileiras e editor da iniciativa editorial Autonomia Literária, a tendência é a ampliação do grupo, com a entrada do país latino-americano, que avalia mais tranquila, além da pretensão de ingresso da nação do Oriente Médio, o que entende ser mais delicado. "A próxima questão é um alargamento do bloco, a inclusão da Argentina e do Irã, o que, talvez, faça o bloco mudar de nome", disse ele.

Segundo Albuquerque, a ampliação do grupo tem cunho geopolítico estratégico, mas, em função das dimensões dos integrantes, a atuação unificada dos países membros é dificultada. Para ele, o próximo passo do agrupamento é definir uma estratégia de mediação das disputas entre a China e a Índia, em que a Rússia deve ter protagonismo na acomodação. "Ninguém sabe dizer aonde a Índia vai, mas a tendência é que ela tenda a se acomodar com a China no médio prazo."

Ucrânia

Sobre o papel do Brasil, ele destacou a boa imagem do presidente. "Lula é uma figura inquestionável pelas suas capacidades negociais, e o Brasil tem uma posição privilegiada, pois tem relações muito boas tanto com a Ucrânia quanto com a Rússia. Assim, ele tem uma posição privilegiada justamente por não ter tanto interesse na região e não ter tanta força militar", apontou.

Para a professora de relações internacionais da ESPM Denilde Holzhacker, mesmo que EUA e China consigam encaminhar um processo de paz na Ucrânia, o Brasil não terá papel central, sendo difícil para o país manter sua postura de neutralidade. "Brics passou a ter uma agenda muito mais preocupada com cooperação e desenvolvimento, mas deixou (nos últimos anos) de ser um ator coeso de tomada de decisão e de posicionamento internacional", ressaltou.

Segundo a especialista, o fato de o Brasil estar no Brics não garante ao país ser um interlocutor de uma agenda que é europeia. "A influência no conflito deve ser pequena, mas todos os lados parecem ter boa vontade de ouvir o Brasil."

 


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