Entrevista

"Rio tem solução, mas só GLO não reduzirá violência", diz Gilmar Mendes

Para ele esse instrumento, sozinho, não resolverá os problemas da violência no estado. Será preciso uma ação coordenada e continua entre as forças de segurança e a burocracia do Estado para enfrentar as milícias e as quadrilhas do tráfico

Diante da gravidade da violência no Rio e do fortalecimento das quadrilhas, que estão espalhadas por outros estados, Mendes diz não entender o porquê de o Senado insistir em votar projetos que tentam impor limites ao Supremo Tribunal -  (crédito: Carlos Moura/SCO/STF)
Diante da gravidade da violência no Rio e do fortalecimento das quadrilhas, que estão espalhadas por outros estados, Mendes diz não entender o porquê de o Senado insistir em votar projetos que tentam impor limites ao Supremo Tribunal - (crédito: Carlos Moura/SCO/STF)
postado em 06/11/2023 17:53

Lisboa — O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), acredita que o governo tomou a decisão certa ao decretar a Garantia da Lei e da Ordem (GLO) para tentar conter a violência no Rio de Janeiro. No entender dele, porém, esse instrumento, sozinho, não resolverá os problemas da violência no estado. Será preciso uma ação coordenada e continua entre as forças de segurança e a burocracia do Estado para enfrentar as milícias e as quadrilhas do tráfico, que se estruturaram de uma tal forma, que, hoje, são transacionais. “Tudo isso revela um descontrole e, certamente, nós temos de nos preocupar com essa questão”, frisa.

Apesar de todas as operações fracassadas que visavam botar ordem no Rio, o ministro ainda acredita que o estado, que teve diversos governadores presos, tem jeito. Contudo, será necessário um enorme engajamento da sociedade, sobretudo, porque partes da política e das forças de segurança fluminenses estão dominadas pelo crime organizado. “E isso precisa ser repudiado, censurado e combatido”, afirma. O enfrentamento desse quadro inaceitável passa, inclusive pelo voto.

Diante da gravidade da violência no Rio e do fortalecimento das quadrilhas, que estão espalhadas por outros estados, Mendes diz não entender o porquê de o Senado insistir em votar projetos que tentam impor limites ao Supremo Tribunal. O mais correto, diz ele, seria os parlamentares estarem debruçados sobre medidas que garantissem mais segurança à população. Ele ressalta ainda que o STF já adotou vários procedimentos que estão na pauta do Senado, como prazos para pedidos de vistas de processos, atualmente, de no máximo 90 dias.

O ministro, que está em Coimbra, Portugal, para um debate sobre o futuro da tributação, promovido pelo Fórum de Integração Brasil Europa (Fibe) em parceria com o Instituto Jurídico da Universidade de Coimbra, destaca que a reforma tributária que está em andamento no Congresso é um passo importante para reduzir a complexidade do sistema de impostos do Brasil. Mas é preciso olhar para o futuro, para o mundo digital, que impõe desafios enormes aos governos. A seguir, trechos da entrevista que Gilmar Mendes concedeu ao Correio.

A GLO decretada pelo presidente Lula em portos e aeroportos entrou em vigor nesta segunda-feira (6/11). O objetivo principal é tentar conter a violência no Rio de Janeiro. Era preciso chegar a essa medida extrema?

Acho que sim. Certamente, o governo tem dados seguros para tomar essa medida. E o caso do Rio, já há algum tempo, vem despertando preocupação pelo domínio que as milícias e quadrilhas do tráfico passaram a ter sobre os próprios territórios. Episódios que se repetem de confronto com a polícia, de armamentos de alta precisão. O episódio mais recente, na Barra da Tijuca, do assassinato de médicos. Tudo isso revela um descontrole e, certamente, nós temos de nos preocupar com essa questão.

Só a GLO resolve?

Eu acho que o governo tem de articular todas as suas agências para o combate ao crime organizado. Tudo indica que esse sistema engolfou um pedaço da política e, certamente, tem influência em setores da política estadual. Pelo menos é o que vem sendo publicado. E isso precisa ser repudiado, censurado e combatido. Então, me parece que é fundamental que haja essa ação, mas, sobretudo, que também haja ações permanentes. Eu acho que a integração de órgãos, e nós temos uma boa e qualificada burocracia, como a Receita Federal, o Coaf, o Banco Central, precisa ser articulada para o combate a essas organizações criminosas, que deixaram de ser operadores locais pequenos e, hoje, atuam de forma transnacional. Esse movimento deve envolver a própria sociedade. Deve ser uma atividade permanente.

O senhor acredita que o Rio é um caso perdido?

Não, certamente, não. Vários países já lidaram com problemas assemelhados, mas é preciso ter consciência da gravidade, fazer um diagnóstico correto. E não é uma tarefa só para o Rio de Janeiro, até porque há setores da segurança e da própria política que estão contaminados. Isso exige informações seguras e tem de ser olhado com profundidade. As instituições precisam dar respostas. Também é preciso que a sociedade do Rio de Janeiro tenha essa consciência para que as organizações de Estado, o Ministério Público na Justiça, atuem no sentido do combate ao crime organizado. Isso é fundamental. Eu acho que o Rio tem solução, e seria muito importante que nós usássemos esse momento, talvez como um marco zero, no sentido de resgate da estatalidade, da institucionalidade.

Esta semana, o Senado deve votar medidas que limitam poderes do Supremo Tribunal Federal. Como vê essa questão?

Vamos aguardar. As medidas que estão sendo anunciadas são medidas que o Supremo já tomou no âmbito do seu regimento. Mas vamos aguardar o que será votado, se será votado e o que será votado, para que, depois, nós nos posicionemos. A questão das liminares, que é um debate antigo sobre as decisões monocráticas do Supremo, já foi resolvido por uma norma regimental conduzida ainda na gestão da presidente Rosa Weber, e também a questão dos pedidos de vistas, que têm limites temporais de 90 dias. Tudo se resolve de maneira automática, de modo que vamos aguardar o pronunciamento do Senado, qual será o conteúdo. Depois, não será uma deliberação do Congresso, só uma deliberação do Senado, se houver.

O senhor vê revanchismo nessas ações do Senado?

Não. Eu acho que há muitas peculiaridades nesse momento. Não vejo, como já disse em outras oportunidades, que haja prioridade nesse tipo de medida. Veja, nós estamos a falar de toda essa tragédia do Rio de Janeiro, que exige medidas legislativas. Era fundamental que se discutisse fundamentalmente essa questão, que o próprio Congresso Nacional estivesse debruçado sobre quais medidas tomar para, de fato, combatermos efetivamente o crime organizado. Então, não me parece que o problema seja o Supremo ou que devamos iniciar uma reforma pelo Supremo Tribunal Federal. A própria reforma do Judiciário, que foi bastante ampla, se estendeu de 1993 a 2004, portanto, 11 anos. Então, esse é um dado que exige reflexão. Como há muita refrega com o Tribunal, bancadas que estão incomodadas com o dia 8 de janeiro, as prisões e coisas do tipo, tem esse simbolismo, que não é bom. Decisões legislativas não podem ser tomadas de forma açodada. É preciso reflexão. Não precisamos ficar incomodado com isso. Emendas constitucionais que firam a autonomia dos Poderes são inconstitucionais. Também passarão pela constitucionalidade.

A CCJ do Senado deve voltar, nesta terça-feira (7/11), o relatório do senador Eduardo Braga referente à reforma tributária. Com todas as exceções previstas, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, prevê que a alíquota do IVA pode chegar a 27,5%, uma das maiores do mundo. Como avalia isso?

Eu não vou dar opinião específica sobre essa questão. Acho que a reforma conduzida pelo Congresso foi um movimento positivo, vemos que isso se reflete nos mercados. É um trabalho extremamente complexo. Temos um modelo desde 1988 que vem sendo remendado aqui ou acolá para atender às necessidades mais prementes. Portanto, era necessário que houvesse uma iniciativa mais completa. E isso creio que, felizmente, se deu. Vamos aguardar a decisão no Senado. Certamente, haverá alterações na Câmara dos Deputados.

O senhor está confiante com a reforma? Ela é importante? Por quê?

Eu tenho a impressão de que nós acumulamos, ao longo de anos, uma litigiosidade enorme no campo tributário e muitas perplexidades. Temos um sistema muito complexo, que deve harmonizar União, estados e municípios, e estamos no meio de uma nova revolução industrial essa coisa 4.0, o avanço dos serviços digitais e como tudo isso se dá. Então, estamos falando de novas bases de tributação. Acredito que é preciso que se faça esse tipo de consideração e se debruce sobre isto. Muitas disputas entre União, estados e municípios e uma montanha de disputas dos contribuintes com os entes tributantes. Portanto, temos que buscar essa racionalização, e isso já é um ponto positivo. Me parece que o espírito é de se buscar uma solução. É claro que a reforma, como nós sabemos, remete a leis complementares. Vamos ter todo um debate. Imagino que o governo já esteja fazendo os projetos, porque, só a partir daí, a reforma vai entrar em vigor. É um ponto de inflexão nesse contexto extremamente positivo.

Qual é o objetivo da tributação sobre a economia digital?

A nossa sensação é de que os tributos já são antigos, são do século XX, tributos que todos nós nos acostumamos, para uma realidade futurística. A toda hora as plataformas e modelos estão se transformando. Nós temos os nômades do capital, os nômades do trabalho, uma nova realidade também no mundo do trabalho, em que não se tem, necessariamente, vínculo de emprego. Tudo isto precisa ser discutido. E as bases tributárias, de alguma forma, se evanesceram, desapareceram em muitos casos. E aí essa queixa geral de que é preciso, inclusive, haver um acordo global ou um acordo pelo menos entre os principais partners para que haja também tributação das big techs, das grandes empresas de tecnologia. Tudo isso é preciso que seja discutido. Pelo menos que a gente saiba que o problema existe.

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