ANOS DE CHUMBO

Presidente da Câmara esquece Ulysses Guimarães e Eunice Paiva

Hugo Motta citou o "Senhor Diretas" e o filme "Ainda estou aqui" em seu discurso de candidato a presidente da Câmara, mas logo abandonou o tom moderado, negando o 8 de janeiro como tentativa de golpe em entrevistas durante a semana

O gesto histórico de Ulysses Guimarães, no plenário da Câmara, com a Constituição de 1988 -  (crédito: Agência Brasil)
O gesto histórico de Ulysses Guimarães, no plenário da Câmara, com a Constituição de 1988 - (crédito: Agência Brasil)

No seu discurso de candidato a presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB) citou Ulysses Guimarães e concluiu seu discurso com uma referência ao filme brasileiro Ainda estou aqui, baseado na história de Eunice Paiva, viúva do ex-deputado federal Rubens Paiva (PTB-SP), durante a ditadura militar. "Temos que estar sempre do lado do Brasil, em harmonia com os demais poderes", disse. "Encerro com uma mensagem de otimismo: ainda estamos aqui". Ovacionado pelo plenário ao concluir, foi eleito com 444 votos dos 513 deputados. Motta recebeu apoio do PT ao PL, apenas o PSol e o Novo ficaram de fora do seu arco de alianças.

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Era sábado retrasado, 1º de fevereiro. Elaborado a seis mãos, com a assessoria de dois jornalistas, o discurso fora feito sob medida para sinalizar uma posição política ancorada ao centro e contrária à radicalização política. Entretanto, em uma semana de entrevistas e declarações à imprensa, Motta esqueceu Ulysses e Eunice, deu uma guinada à direita, com críticas ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva e acenos de anistia aos mais radicais aliados e ao próprio ex-presidente Jair Bolsonaro.

De todas as entrevistas, a que gerou mais mal-estar no Palácio do Planalto e no Supremo Tribunal Federal (STF), sem falar na opinião pública, foi concedida na sexta-feira, numa rádio da Paraíba, sua base eleitoral. Motta negou que a invasão dos palácios da Praça dos Três Poderes, em 8 de janeiro de 2023, foi uma tentativa de golpe de Estado para destituir o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que havia tomado posse uma semana antes. "O que aconteceu não pode ser admitido novamente, foi uma agressão às instituições. Agora, querer dizer que foi um golpe. Golpe tem que ter um líder, uma pessoa estimulando, tem que ter apoio de outras instituições interessadas, e não teve isso", disse.

Naquela ocasião, centenas de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro quebraram as sedes dos Três Poderes pedindo um golpe e a destituição de Luiz Inácio Lula da Silva. Motta ignora deliberadamente tudo o que já se sabe sobre o 8 de janeiro, a partir de investigações da Polícia Federal (PF), no inquérito a cargo do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes.

A conspiração urdida na alta cúpula do governo Bolsonaro para impedir a posse da gestão Lula está muito bem documentada, a ponto de o vice de Bolsonaro, general Braga Neto, ex-ministro da Defesa e da Casa Civil Braga Netto, general de quatro estrelas, estar preso. O tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, que fez delação premiada, revelou toda a trama golpista.

Não se sabe os acordos de bastidores feitos por Hugo Motta para se eleger presidente da Câmara, mas o parlamentar tem fama de cumpri-los. Suas declarações e os elogios que recebeu de Jair Bolsonaro sinalizam que a anistia aos envolvidos nos episódios de 8 de janeiro e ao ex-presidente da República (que está inelegível por crime eleitoral) está no pacote do PL.

 Rubens Paiva e Eunice Paiva
Eunice travou uma longa luta para que fosse reconhecido que Rubens foi torturado e morto (foto: Acervo da Família Paiva)

Biografia

Aos 35 anos, Motta é o mais jovem presidente da Câmara dos Deputados. Lidera uma nova geração de políticos representantes de velhas oligarquias. Seu pai é prefeito de Patos pela quarta vez, cidade que já foi comandada pelo avô e pela matriarca da família, sua avó Francisca Motta, de 84 anos, que sucedeu o marido na prefeitura após sua morte e exerceu seis mandatos de deputada estadual.

Médico, Motta nasceu em 11 de setembro de 1989, ano da primeira eleição direta para presidente da República. Não entendeu (ou não assistiu) Ainda estou aqui, o premiadíssimo filme de Walter Salles Filho, que concorre ao Oscar em três categorias e venceu o prêmio Goya de melhor filme ibero-americano, a principal premiação do cinema espanhol, no último sábado.

Com Fernanda Torres no papel da viúva Eunice, a obra conta o que se passou com a família do ex-deputado Rubens Paiva (PTB-SP), que foi assassinado num quartel do Exército no Rio de Janeiro, durante o regime militar. Motta citou o filme no discurso como uma frase de efeito, numa jogada de marketing. Sua declaração sobre o 8 de janeiro só torna mais atual o longa brasileiro ser mais atual, cuja importância política nos mostra o historiador Alberto Aggio, no artigo Tempos e silêncios em Ainda estou aqui (leia abaixo):

Tempos e silêncio em Ainda estou aqui

Artigo, por Alberto Aggio

Ainda estou aqui é um grande filme. Muito já se escreveu e se falou sobre ele por diversos ângulos e razões. E se vai continuar falando e escrevendo sobre ele por algum tempo. Seu lugar na cultura brasileira vai além da filmografia, da arte. Trata-se de um filme político, de ensinamentos e aberto à reflexão política. Pela amplitude de espectadores, ele é também um fenômeno político. Cativa por expressar o desejo de compreender o que se passou no Brasil nas últimas décadas do século 20 e o que esse período nos legou.

O filme, dirigido por Walter Salles, diz muito sobre o Brasil desse período, mas também sobre o Brasil dos dias que correm, por meio dos acontecimentos que marcaram a vida da família do ex-deputado Rubens Paiva, sequestrado e assassinado pela ditadura no início da década de 1970, especialmente pela resistência da mulher, Eunice Paiva, a principal protagonista do filme, representada de maneira extraordinária por Fernanda Torres.

O início e o final do filme mostram reuniões familiares que evidenciam as marcas do tempo em que se sustenta a narrativa do filme. No início, a reunião familiar é repleta de alegrias de uma típica família de classe média alta do Rio de Janeiro no início da década de 1970. O ambiente é vivo e cheio de cores, num magnífico sobrado em frente à praia. No final do filme, a reunião familiar é de uma alegria contida, densa e preocupada com a saúde da matriarca da família.

No início, os personagens vivem as interações de um Brasil culturalmente aberto ao mundo, uma continuidade, sem interrupções, dos "gloriosos anos" cinquenta e início dos sessenta. Para além da tranquila vida familiar, os sinais de que havia ocorrido uma dura interrupção aparecem de maneira esparsa e sutil, embora carregada de tensões, evidenciando o temor a cada cena. A reunião familiar do final do filme também mostra um Brasil aberto ao mundo, sinalizada previamente por passagens relativas aos anos 1990, quando Eunice Paiva passa a viver em São Paulo, 25 anos depois da tragédia familiar provocada pelo sequestro e assassinato do marido. O Brasil da globalização e da democratização convive, ao final, com aquela herança maldita, ao lado do peso dos anos que se passaram na vida de todos os protagonistas ali reunidos, as filhas e o filho, todos adultos, e a matriarca já padecendo da doença de Alzheimer.

Entre um tempo e outro, os 25 anos, que expressam a transição e a democratização, estão silenciados, o que é também uma forma de dizer e dar sentido. O filme é a expressão das pesadas consequências da repressão da ditadura e a resistência - penosa, mas vitoriosa - da chefe de uma família, que não permitiu que ela fosse destruída. No final, os anos da ditadura são imagens do passado, em preto e branco, que ainda tocam — mesmo que abatida pela doença — a velha senhora que protagoniza dramaticamente a narrativa. No final do filme, as cenas sobre a ditadura que aparecem num documentário na TV chamam a atenção mais de Dona Eunice do que dos familiares que espreitam de soslaio seu comportamento.

Pelos olhos e pelas mãos de Salles, os tempos do Brasil se sucedem e, recortados, ganham sentido na trajetória da família Paiva. Ali estão a esperança de um país melhor interrompida pela ditadura e, ao final, independentemente dos protagonistas, o cenário de inserção do país no mundo globalizado, anteriormente antevisto. No Brasil do ex-deputado assassinado, a opção de um caminho de tipo cubano ainda era acalentada como alternativa por muitos setores da esquerda. Mas isso não prosperou. A resistência democrática encontrou sua via de passagem pela política, derrotando a ditadura.

Pode-se dizer que esse é um dos silêncios do filme. Ele não pretendeu incluir na narrativa as complexas dimensões da superação da ditadura por meio de um processo de transição e construção democrática que seguiu seu curso ascendente, mas carregou consigo muitos deficits políticos, institucionais, sociais e culturais. O filme também nos sugere que pensemos sobre as razões que levaram com que a conquista da democracia não tenha se configurado como uma ruptura, que delimita um antes e um depois, e, mesmo assim, podemos nos postar sorrindo — como fez Eunice Paiva, de forma admirável — para uma foto que possa retratar o país como, de fato, ele é.

Alberto Aggio é professor universitário e historiador

Luiz Carlos Azedo
postado em 10/02/2025 03:46
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