A pandemia e o isolamento social trouxeram insegurança, ansiedade e medo, o que levaram muitos fumantes em processo de abandonar o cigarro terem recaídas, mesmo sabendo da importância de cuidar melhor da saúde. Mas as reflexões sobre a vida e a valorização do tempo com as pessoas amadas, também despertadas na quarentena, foram o incentivo necessário para algumas pessoas abrirem mão do vício. Às vésperas do Dia Nacional de Combate ao Fumo, 29 de agosto, e mês de conscientização do câncer de pulmão, altamente associado ao tabagismo, a Revista conta um pouco dessa luta desafiadora para muitos.
Depois de fumar por 37 anos, a aposentada Stella Fabiana de Lima Carvalho, 53, viu o vício se intensificar no início do isolamento. O número de cigarros diários aumentou com o estresse, e ela não gostou dos resultados. Sem planos de parar, começou a sentir dores de cabeça intensas, além de taquicardia e dores no peito.
O cardiologista não encontrou irregularidades, mas Stella ficou assustada e percebeu que o momento era propício para sua quarta tentativa de se livrar do vício. “Nunca imaginei que fosse parar em pleno isolamento, mas sei que o cigarro me deixa muito mais em risco com relação à covid, então, foi um incentivo.”
Com a pandemia tornando-se mais séria a cada dia, e depois de perder pessoas próximas para o coronavírus, Stella passou a rever sua relação com o cigarro. “Comparo com o término de um relacionamento. É difícil, porque ele te oferece um certo conforto nos momentos de estresse, mas precisamos resistir.”
Quando engravidou e amamentou, Stella chegou a ficar seis anos sem fumar, mas voltou após uma brincadeira. “Muita gente que fuma desde nova tenta umas três ou quatro vezes antes de conseguir e espero que, apesar de tudo, essa pandemia possa ajudar quem quer parar.”
Há 40 dias longe dos cigarros, Stella consegue perceber mudanças no organismo. A pele foi a primeira melhoria, as olheiras estão sumindo e ela enxerga um viço maior. Aproveitando o embalo, passou a se exercitar cinco dias por semana e percebeu que o fôlego está voltando aos poucos.
Das outras vezes em que tentou parar, a aposentada passou pelo processo sozinha. Agora, conta com o apoio de meditação, florais, medicamento e o acompanhamento por telemedicina do Tabas, programa de controle de tabagismo da Cassi.
Ajuda
No ano passado, 31 pessoas buscaram o Tabas no Distrito Federal e, entre elas, 11 deixaram de fumar. É uma porcentagem de 35,48%, considerada alta por especialistas. A assistente social Elaine Belarmino e a psicóloga Danielle de Hollanda Barcelos explicam que, entre os casos de sucesso, uma unanimidade é a própria vontade de parar — pessoas que estão no programa por pedidos da família ou amigos, por exemplo, costumam ter uma taxa menor.
A parada abrupta, apesar de mais rara entre os fumantes, costuma ser mais definitiva, mas Danielle e Elaine ressaltam que cada paciente passa por um processo diferente e individualizado, uma vez que a dependência não é apenas química, mas, também, psicológica e de hábito. Com o auxílio de médicos, nutricionistas, psicólogos e assistentes sociais, é criado um plano de intervenção para cada pessoa, conduzido da forma que funciona melhor. Apesar de alguns conseguirem parar sem auxílio. Por experiência, Danielle ressalta que os que mais se conectam ao grupo e formam laços são as mais bem-sucedidas no processo.
Transição
Assim como Stella, o editor de vídeo João Pedro Silva Sampaio Luz, 22, resolveu aproveitar o isolamento para se livrar do vício. Ele começou a fumar aos 19, por influência dos amigos. O cigarro ocasional, em festas, logo se tornou um ou dois maços por dia.
Há três meses, trocou o cigarro por opções sem nicotina, como o tabaco, mas a meta é parar com tudo. “A migração ajudou bastante. Fumava muito, por conta da ansiedade, então, o hábito ainda é muito forte. Agora, que estou tentando parar com o tabaco, é uma questão de tempo e determinação”, acredita. A preocupação com a saúde e a falta de disposição física foram os principais motivos que o fizeram insistir.
Os primeiros meses foram os mais difíceis. João Pedro viu o estresse e a falta de apetite aumentarem, mas, apesar das dificuldades, o resultado tem compensado. “É extremamente satisfatório não sentir mais a necessidade de fumar. Já tentei parar algumas vezes, mas acredito que essa será definitiva.” Após alguns meses, ele percebeu melhoras no apetite e diminuição da ansiedade, com a qual passou a lidar de formas mais saudáveis. A dica que dá para quem está tentando parar é ingerir muito líquido e manter a determinação.
Colaborou Maria Carolina Brito, estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte
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Nunca é tarde para parar
O cigarro, como a maioria da população sabe, é um agente carcinógeno e, muitas vezes, um fator definidor para que o paciente desenvolva um câncer. Segundo a médica oncologista Alessandra Leite, membro titular da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica, os tumores mais relacionados ao fumo são os de cabeça e pescoço, como boca e laringe, os de pulmão e os de bexiga. Ela acrescenta que pessoas com tendências genéticas a desenvolver tumores malignos em qualquer parte do organismo aumentam os riscos quando fumam.
Quanto mais uma pessoa fuma, seja em quantidade de tempo ou de cigarros, mais alta é a carga tabágica e maiores os riscos. Alessandra explica que, mesmo que consiga parar, muitos dos danos oncológicos ainda têm chances altas de acontecer. “A lesão provocada no DNA das células que revestem a boca, a laringe, o estômago ou o pulmão não vai sumir. Ela já foi modificada e, eventualmente, pode se dividir e causar tumores”, detalha.
Cicatrizes pulmonares são danos presentes em praticamente todos os fumantes. Elas podem ser menores e mais difíceis de identificar em quem fumou por pouco tempo ou em baixa quantidade, mas, ainda, existem e podem ser altamente prejudiciais em doenças que envolvam o trato respiratório, como a covid-19. Paulo Feitosa, chefe da unidade da pneumologia do Hospital Regional da Asa Norte, aponta outro risco: o enfisema pulmonar, uma doença irreversível que destrói o tecido pulmonar.
Os danos permanentes levam muitos pacientes a desistirem de parar de fumar, mas Alessandra garante que nunca é inútil. Além de remover o agente da agressão, que piora toda a saúde de forma geral, os benefícios na respiração, no sono e na alimentação são aliados na luta contra um possível câncer, mesmo que ele apareça em 20 anos.
Evolução
Paulo corrobora e afirma que, a partir do momento em que um paciente para de fumar, os riscos começam a diminuir. “Em qualquer momento, sempre será positivo, a pessoa começa a ajudar o pulmão. É como uma ferida. Se você agride, ela nunca vai sarar; se parar de agredir, tem uma chance maior”, compara.
Entre os principais riscos do cigarro, Paulo chama a atenção para a doença pulmonar obstrutiva crônica, que se divide em bronquite crônica e enfisema. O médico ressalta, também, o alto risco de fumante sofrerem infarto agudo do miocárdio, hipertensão, arritmia cardíaca, além de uma longa lista de doenças vasculares, como o acidente vascular cerebral.
O pneumologista ressalta que o Brasil e o DF são pioneiros no combate ao tabagismo. Nos anos 1990, 33% da população brasileira era fumante; no fim da última década, atingimos a marca de 11%. O resultado é considerado uma grande vitória ao longo de duas décadas. Com a diminuição, a incidência de doenças relacionadas ao tabagismo também caiu consideravelmente.
O isolamento como obstáculo
Durante a quarentena, algumas pessoas passaram por um processo inverso ao de Stella Fabiana de Lima Carvalho e João Pedro Silva Sampaio Luz. O engenheiro agrônomo André Sanches, 51 anos, foi introduzido ao cigarro aos 20 anos por “burrice”, como define, e parou antes da pandemia, mas teve uma recaída. Os pais eram fumantes, o que sempre foi motivo de críticas da parte dele. “Nunca passou pela minha cabeça, mas fui morar sozinho em outra cidade para fazer faculdade, os amigos e a namorada fumavam e, quando vi, estava fumando também”, lembra.
Essa não foi a primeira tentativa, André passou pelo processo quatro vezes — uma por conta própria e outras com ajuda médica. “Enquanto estava fazendo o tratamento, eu parava, mas, depois, sozinho, no primeiro problema mais sério, acabava voltando. Até que, em uma das tentativas, meu cardiologista receitou duas gotinhas de ‘vergonha na cara’ todo dia. É uma luta, pois, apesar do orgulho em não fumar, não teve nenhum dia em que não senti falta.”
Incômodo constante
Para o engenheiro, apesar de dormir e respirar melhor quando não está fumando, as principais mudanças são emocionais. A vitória de se encarar como ex-fumante é, para ele, o maior benefício. “Eu me sinto mal por ser fumante, fico constrangido, percebo que estou incomodando as pessoas e não gosto de ter que sair de uma roda social para acender um cigarro do lado de fora.”
Em fevereiro, antes de aparecerem casos confirmados de covid-19 no Brasil, André teve uma gripe séria. Sempre que isso ocorre, o engenheiro fica alguns dias sem cigarro. Logo que se curou, o isolamento em Brasília começou e ele passou a fazer home office. Aproveitando que tinha parado momentaneamente, resolveu não voltar e fazer uma nova tentativa usando adesivos de nicotina.
Foram dois meses sem o cigarro, mas o estresse causado pela pandemia, o fato de estar nervoso e brigando muito com a família e a impossibilidade de se exercitar desestabilizaram o engenheiro. Apesar da tristeza, ele não pretende desistir, assim que puder voltar à natação com tranquilidade, pretende fazer uma nova tentativa. “Prometi aos meus filhos e tenho que parar, requer muita força de vontade, mas tenho esperança e nunca vou desistir. Enquanto eu não parar, não deixo de tentar”, determina.
Por que é tão difícil parar?
Fábio Aurélio Leite, médico psiquiatra do Hospital Santa Lúcia, explica que, ao penetrar no organismo, a nicotina provoca um aumento da dopamina, que, por sua vez, estimula a produção de serotonina, considerados hormônios da felicidade. Dessa forma, o cigarro traz a sensação de prazer.
Ao parar de fumar, os níveis hormonais sofrem uma grande queda. Fábio esclarece que esse é um dos grandes obstáculos no processo de abandono do cigarro, que se soma à abstinência de nicotina. Muitos pacientes chegam a desenvolver quadros semelhantes à depressão nos primeiros meses até que o organismo volte a produzir os hormônios normalmente.
O psiquiatra ressalta que a dependência psicológica é mais difícil de tratar do que a física. A ação da nicotina pode ser combatida com medicamentos, balas, chicletes e adesivos, por exemplo. Mas o abandono do hábito, visto como algo que acalma e alivia, dificulta o processo. O médico esclarece que cada paciente lida de uma forma com a frustração e os problemas do dia a dia e, para vencer a dependência emocional, é necessário trabalhar cada particularidade mais a fundo e compreender o que o cigarro representa para ela.
Existe, ainda, a ansiedade, na qual o Brasil é campeão, e que está intimamente ligada ao tabagismo. Em vez de tratarem a ansiedade com medicamentos, as pessoas recorrem ao cigarro, um caminho considerado mais fácil e que ainda é mais aceito socialmente, acredita Fábio.
Um caso de sucesso baseado na parceria
A publicitária Flávia Guimarães Pena de Barros Barreto, 50, e o marido, o advogado Roberto Luz de Barros Barreto, 51, estão casados há 27 anos e pararam de fumar juntos, há nove. Eles são exemplos de que, mesmo após mais de três décadas como fumantes, é possível largar o vício.
Os dois começaram a fumar aos 19, aos poucos, e em situações sociais, mas logo se tornou um hábito diário. Em um fim de semana, no auge da seca brasiliense, após quase 100 dias sem chuva, Roberto passou o dia fumando em um churrasco e se sentiu muito ofegante no início da noite. “Percebi que a culpa era mais do cigarro do que da seca e vi que precisava cuidar da saúde.”
No dia seguinte, Roberto parou de fumar e não contou a ninguém. Dois dias depois, Flávia percebeu, e o advogado dividiu com a esposa a decisão. Por apoio, ela resolveu iniciar o próprio processo de abandono do cigarro. “Queria ser solidária e sabia que era o certo para nossa família”, conta Flávia.
Enquanto Roberto optou pelo método abrupto, Flávia foi aos poucos. Começou com três vezes por semana, diminuiu para duas, uma, até que parou de vez. Para ela, que tinha largado o cigarro durante alguns anos, nas duas vezes que engravidou, o processo gradual foi mais fácil. No início, os dois sentiam muita falta, principalmente em eventos sociais ou quando bebiam, mas um dava forças para o outro.
Compensador
Ao ouvir de alguns ex-fumantes que os três primeiros meses são os piores, Roberto ri e confessa que, para ele, esse período de sofrimento durou mais tempo, mas o resultado foi compensador e libertador. Logo, a ansiedade e a irritabilidade da abstinência deram lugar às melhoras no sono, no paladar e no olfato, mais disposição física e menos cansaço, além da pele e cabelo mais saudáveis e bonitos.
O casal é categórico: o primeiro passo para conseguir é querer de verdade. Não é apenas sobre saber os riscos e malefícios, mas se esforçar todos os dias. Não fraquejar, pedir ajuda, exercitar-se e melhorar a alimentação são algumas das dicas do casal. “E não experimente novamente! Acho que ninguém é completamente ex-fumante, pois o vício sempre pode voltar”, alerta Roberto.
Roberto e Flávia deram força, um ao outro, para largarem o vício