Cidade nossa

Nostalgia no isolamento

Paulo Pestana
postado em 27/08/2020 17:41
 (crédito: Editoria de arte)
(crédito: Editoria de arte)

Esse isolamento forçado pela virose tem trazido para mais perto pessoas queridas que o fluxo da vida tirou de nós. É uma aproximação virtual, por redes sociais, em que gente separada por décadas encontra colegas e amigos, ou até por meios arcaicos e quase extintos, como o telefone fixo. Ainda assim são reencontros carregados de saudades.

Mocinhas de antanho querem saber como está vivendo o antigo namorado — naturalmente torcendo para que não esteja feliz —, companheiros de farras juvenis dividem angústias recentes e que não faziam parte da vida comum, colegas de trabalho desabafam sobre frustrações com a profissão que demoraram tanto para escolher.

Mas a alegria do reencontro compensa qualquer desgosto que a vida tenha trazido durante a separação. Foi assim que eu fiquei sabendo que o antigo garoto surfista, que veio transferido para o cerrado e continuava passando parafina no cabelo para se imaginar na praia, hoje, é um profissional da bolsa de valores em São Paulo — continua longe do mar.

E que a antiga quase namorada se aposentou da universidade e voltou para a cidade natal, onde o quase namoro quase aconteceu. E também que o companheiro de algumas inocentes — e outras nem tanto — aprontações hoje é um chefe de família com seis bocas para alimentar (não sabe o que fazer com o filho, quase quarentão que não sai de casa).

Os encontros fortuitos têm um poder que parecia exclusividade da música e que transporta pessoas para outros tempos, um passado que na época parecia complicado, mas que, comparado aos dias de hoje, era só festa — quem tem um mundo a conquistar e nenhum peso nos ombros consegue voar. Angústias juvenis são muitas vezes terríveis; salvava-nos saber que tínhamos todo o tempo do mundo.

Essas reaproximações a distância têm um sabor especial numa cidade como Brasília, que sempre teve uma alta rotatividade dos moradores. As amizades duravam, muitas vezes, duas temporadas de seca, tempo que os adultos — funcionários do Banco do Brasil, militares, servidores comissionados, diplomatas — pousavam por aqui.

Fazíamos muitos amigos na mesma proporção com que os perdíamos para a distância; eram tempos em que ligações telefônicas eram difíceis e caras, correspondências demoravam a chegar — não era fácil pôr uma carta nos Correios para quem andava de Pioneira ou TCB. Novos amigos substituíam os antigos, que sumiram na poeira do mundo.

De alguma forma, ficar em casa impedido de ver amigos fez com que muita gente se lembrasse dos velhos parceiros, da púbere, imberbe e livre vida da adolescência. Uma certa nostalgia da liberdade tomou conta dos corações e mentes das pessoas aprisionadas e impotentes diante de uma ameaça letal.

A pandemia bem que podia nos deixar esse legado, de cuidar mais de nós mesmos enquanto somos donos de nosso destino, de vigiar nossas relações, não apenas com amigos, mas com toda a sociedade. Se as pessoas começassem a parar de jogar lixo a esmo já seria um começo, mas basta andar pelos parques da cidade; continuam imundos como sempre, como se isso fosse trabalho só do gari.

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