O mercado da moda movimenta trilhões de dólares no mundo a cada ano e gera milhões de empregos. Só no Brasil, em 2018, foram R$ 26 bilhões. Um estudo sobre luxo, feito pela Consultoria Euromonitor Internacional, prevê que, até 2023, esse valor chegue a R$ 29 bilhões. Apesar de alavancar a economia, a indústria fashion é a segunda mais poluente, perdendo apenas para o petróleo. E a crescente preocupação com o meio ambiente tem a obrigado a repensar esses impactos. Entre as alternativas que surgem, está a moda circular.
É impossível dissociar o conceito de moda circular do de economia circular. Segundo a Fundação Ellen Macathur, referência no assunto, o foco desse modelo são os benefícios para toda a sociedade. E baseia-se em três princípios básicos: eliminar resíduos e poluição desde o princípio; manter produtos e materiais em uso; e regenerar sistemas naturais. A fundação aponta a necessidade de que as grandes empresas desenvolvam materiais, sejam embalagens ou tecidos, que possibilitem o aproveitamento em diferentes ciclos, para que o resíduo retorne ao solo ou ao sistema de produção industrial.
O apoio do Estado — com fomento a políticas públicas, leis de incentivo e financiamento e regras ambientais — é base indispensável para viabilizar o modelo de produção circular para a moda. Para Iara Vidal, representante da Fashion Revolution em Brasília, essas ações são essenciais, uma vez que vivemos em um país desigual, no qual as informações e possibilidades de consumo consciente são elitizadas e poucas pessoas têm acesso.
Luta por mudança
O modelo circular parte da preocupação de observar o ciclo da natureza, no qual tudo é reaproveitado e nada se perde, apenas se transforma. “É um conceito em construção e inspirado na biomimética. Começa pelo design da peça e considera todas as etapas de produção, uso e descarte”, afirma Iara.
O sistema linear de produção, ainda, é o modelo predominante na indústria fashion. Consiste em extrair matéria-prima sem compromisso com desperdício de recursos naturais ou com o prolongamento da vida útil das peças. Segundo o manual Educar para revolucionar, da Fashion Revolution Brasil, o poliéster, por exemplo, que representa cerca de 60% da produção global de fibras têxteis, é similar a um plástico comum, originado do petróleo.
Para combater esse processo, movimentos de conscientização têm surgido. Apesar de esses discursos terem ganhado velocidade em meio à pandemia, Iara chama a atenção para uma dinâmica ainda na prática. “Quando reabriram as lojas de alto luxo na Champs Elysées, em Paris, houve filas. Nunca venderam tantas roupas on-line como agora, na pandemia. Só acredito em mudanças se tivermos um combo de medidas públicas e campanhas informativas.”
Ela complementa dizendo que existem, sim, iniciativas importantes nessa luta, o único problema é que, pela falta de incentivo, ainda não têm grande escala. No campo da moda circular, Iara destaca o upcycling — transformação de itens em desuso e resíduos em novos produtos — e os brechós, que dão novo uso a peças que estavam jogadas no armário. “Não podemos desprezar as iniciativas da periferia, até porque muita gente adota a moda circular, ao pegar roupas de irmãos, primos e reutilizá-las, sem nem saber que a está praticando.”
*Estagiárias sob a supervisão de Sibele Negromonte
Vínculo com a comunidade
Um local de resistência preta, feminina e LGBTQI+. É assim que se conceitua a Casa Akotirene (@casa.akotirene), um quilombo urbano localizado em Ceilândia Norte (DF). O espaço físico foi criado em 2019, por meio da iniciativa do coletivo Afromanas, que tem como integrantes Jusianne Castilho, Joice Marques e Aline Karina, depois que perceberam a necessidade de um espaço para concretizar ações e dialogar com a comunidade negra local sobre construção de suas próprias narrativas e desenvolvimento de identidade afro-brasileira.
Desde então, a casa promove atividades artísticas e culturais de forma independente e totalmente protagonizada pelo povo preto e periférico. Foi assim que surgiu o brechó Nega do Garimpo, com objetivo de arrecadar fundos para a manutenção e estabelecer vínculos com a comunidade. “Com o brechó, podemos criar outras línguas para falar de consumo, de economia local e impacto ambiental”, explica a agente cultural e gestora da Casa Akotirene, Joice Marques Pereira, 34. Parte dessa troca de ideias sobre economia surge de um detalhe: não há preço fixo, é o cliente que atribui valor à peça.
Além disso, o Nega do Garimpo tem, desde 2019, uma parceria focada em mudanças sustentáveis com um movimento que deseja tornar a moda uma força do bem. “Pretendemos fazer uma grande trabalho trazendo outras possibilidades de fazer e consumir moda. Essa ideia ganha muita força em um momento em que os números denunciam grandes desperdícios nas indústrias têxteis. Estamos trabalhando para criar um espaço fixo, e as peças que comporão nosso brechó serão fornecidas pela Fashion Revolution”, diz.
Joice acredita que o consumo consciente facilita práticas corriqueiras, mudança de hábitos e fortalece a economia, pois incentiva métodos como o planejamento, a pesquisa de compra e a reutilização de peças. Para ela, a moda circular é uma oportunidade de transformar pensamentos. “Geralmente, as pessoas vão às lojas de departamento com uma necessidade que elas próprias criaram, gastando mais do que podem. Nesse movimento reverso, a intenção é mostrar as muitas oportunidades e diminuir o superconsumo oferecido por empresas que se aproveitam da mão de obra barata.”
O brechó oferece a opção de encomendar peças pela página on-line ou aproveitar para renovar o guarda-roupa acompanhado de boa gastronomia, em um sarau. A equipe também retornou recentemente o atendimento presencial, que acontece todos os sábados, das 10h às 18h, mantendo os protocolos de prevenção da covid-19 — e vem, inclusive, arrecadando e distribuindo cestas básicas, marmitas, produtos de limpeza e vestuário, com o apoio de diversos parceiros.
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Armário de todos
Que tal um closet novo a cada estação? A proposta da Trento (@use.trento), comandada por Vitor Rabelo, 22 anos, é exatamente essa. Todo mês é possível trocar peças antigas por novas. A marca faz a lavagem, as entregas e a devolução. O propósito é estimular o consumo sustentável e incentivar as mulheres a experimentarem novos estilos.
Vitor conta que, apesar de ser um novo modelo de consumo em Brasília, a aceitação do público tem sido boa. “As mulheres estão acostumadas a alugar para ocasiões especiais, como casamentos ou formaturas, mas, quando mostramos que é possível alugar roupas para todas as ocasiões e para o dia a dia, acham a proposta incrível, já que elas têm roupas diferentes todos os meses, vestindo como se fossem suas.”
A Trento é um closet infinito com centenas de peças e combinações que passam por uma curadoria. Por meio de uma assinatura de aluguel de roupas, a cliente escolhe peças para qualquer ocasião — trabalho, festa, férias na praia, inverno —, de qualquer tamanho e preços variados, de marcas variadas, pagando em média 10% do preço da peça nova.
Para Vitor, o mercado de aluguel é uma forma de consumo muito importante no nicho de sustentabilidade, que vem crescendo bastante e já representa mais de US$ 1,2 bilhão de dólares. “Alugar peças que você usaria apenas algumas vezes é uma resposta mais sustentável para a poluição, reduzindo o desperdício e a quantidade de peças que acabam no fundo do seu armário ou nos aterros sanitários”, diz.
Todo o processo da Trento é feito de forma que os impactos no meio ambiente sejam minimizados. A lavagem, por exemplo, é feita utilizando meios sustentáveis, e o uso de embalagens plásticas nas entregas é substituído pela bolsa de tecido reutilizável.
Compartilhando o estilo
A empresária Daniella Naegele, que atua no mercado da moda em Brasília há 31 anos, explica que o projeto Compartilhe seu estilo Avanzzo surgiu a partir de uma demanda das próprias clientes da marca. “Sentia que elas estavam organizando com amigas pequenos bazares em casa e, muitas vezes, não tinham público. Fiquei pensando como contribuir com esse desejo e oferecer uma boa solução.” Ela conta que ter estrutura de marketing e experiência fez toda diferença.
O objetivo é incentivar as clientes a repassarem as peças da marca que não usam mais, abrindo espaço para novas. Para Daniella, o consumo consciente é um caminho natural de ressignificar as peças, seja passando para a frente, seja fazendo alterações para valorizar o biotipo ou incrementando com acessórios. “Pensamos que cada cliente tem momentos de consumo diferentes, e incentivar esse compartilhar com peças que não fazem mais sentido para ela é superpositivo”, completa.
As clientes deixam as peças Avanzzo nas lojas da marca e a equipe faz uma curadoria para precificá-las. As roupas selecionadas ficam guardadas até a data do evento, quando são colocadas à venda em formato de consignação para outras pessoas que as desejarem. De acordo com cada peça vendida, a revendedora receberá um voucher para trocar por outras da nova coleção. Após o bazar, se a cliente autorizar, as peças não vendidas poderão ser doadas.
Fomento à circularidade
Rafael Morais, CEO e diretor-executivo do Brasil Eco Fashion Week, idealizou a iniciativa após vivenciar desafios práticos gerenciando a Grama Eco, marca de moda sustentável que fundou com sua sócia. Ao observar os movimentos no mercado fashion apontando para os cenários de inovação e sustentabilidade, eles diagnosticaram um aumento crescente de empreendedores iniciando projetos com esse foco, no Brasil e no exterior.
O BEFW é um evento de moda que congrega desfiles, showroom e atividades de conteúdo. Além disso, dá voz a empreendedores que buscam alternativas sustentáveis diante dos impactos negativos provocados pela indústria da moda do século 21. “Esse cenário reflete em empresas negligenciando boas práticas produtivas que valorizem questões sociais, ambientais e culturais, em função de prazos, lucro e disputas de mercado. Outro ponto é a lógica de produção em países subdesenvolvidos, com leis menos efetivas e pouca fiscalização, acarretando em problemas sociais, empregos e jornadas de trabalho degradantes e salários insuficientes para se viver com dignidade”, explica Rafael.
Em 2019, a equipe ampliou as atividades ao destinar um dos palcos para assuntos relativos à circularidade, em parceria com o Sebrae Nacional. “Apresentamos mais de 20 projetos, produtos, ações e cases que tenham sintonia com o tema e contribuam para o ‘fechamento do ciclo’. Também iniciamos um projeto com algumas instituições parceiras, em que estamos planejando ações de estímulo à economia circular para o decorrer de 2021, indo além das atividades da semana de moda”, afirma Rafael. A 4ª edição do BEFW ocorrerá entre 18 a 22 de novembro, em formato on-line.
Menos produção, mais afeto
O brechó As Três Marias (@as3mariasbrecho) foi sonhado por mulheres que guardavam algumas peças de roupa na esperança de criar um negócio e costumavam realizar vendas na garagem de casa para amigos e vizinhos, no Cruzeiro Velho. “Depois que aprendemos um pouco sobre como fazer, resolvemos, finalmente, iniciar a construção do nosso sonho. Reformamos uma área subutilizada da casa e, há um ano, inauguramos a loja física. Em meio à pandemia, criamos nosso site”, afirma Mariana Lauande, 29, profissional de marketing e sócia-fundadora do brechó.
Com a proposta de incentivar o consumo responsável, a circulação de roupas e contribuir para a sustentabilidade ambiental, surgiu a empresa que tem como palavra de ordem reutilizar. “A indústria da moda está entre as mais poluentes. O reuso contribui para a diminuição do descarte no meio ambiente e também da produção de novas peças. Então, sim, comprar em brechó é fortalecer a sustentabilidade.”
Para além do sustentável, a iniciativa, que é um negócio de família, gerenciado por Mariana, a irmã Marthinha e a mãe, Terezinha, acredita na moda como ferramenta de incentivo ao empoderamento feminino. “Podemos vestir o que quisermos, resgatando valores, culturas e expressando quem somos, o que acreditamos e lutamos”, afirma.
As Três Marias é loja e ponto de encontro. Lá, elas realizam happy hours e acolhem outras mulheres por meio do projeto Entre Manas — que consiste em rodas de conversas mensais para conectar, compartilhar vivências e saberes entre mulheres. Nos eventos, buscam trazer sempre uma convidada especial para protagonizar e divulgar seu trabalho, como forma de fortalecer o empreendedorismo feminino.
Artigos de luxo em movimento
A Gringa (@shop.gringa) é um recommerce de acessórios de luxo originais, novos e seminovos, fundado pela atriz Fiorella Mattheis, que quer promover a economia circular, catalisar o mercado de luxo consciente e estender a vida útil dos produtos. Modelo desde os 14 anos, Fiorella começou a praticar a moda circular de forma pessoal, mas percebeu uma oportunidade de negócio. A startup foi lançada em junho deste ano e segue um caminho que, segundo ela, é urgente. “A pandemia colocou um holofote sobre nossa maneira de consumo, e a indústria fashion está passando por uma revolução, a Gringa quer fazer parte dessa mudança positiva no consumo dos amantes da moda.”
Fiorella conta que sempre teve vontade de empreender com algo que tivesse um propósito. “Quando compramos um produto, nem sempre pensamos no que está por trás daquela produção em termos de recursos do meio ambiente. Com a Gringa, queremos mostrar que esses itens podem ganhar uma nova vida no mercado de moda circular”, diz. Ela dá a dica para quem está com uma peça parada no guarda-roupa: “Revenda e use o dinheiro para comprar uma outra usada. Desse jeito, é possível abrir espaço no armário e você pode encontrar peças incríveis e raras, contribuindo para a sustentabilidade.”
No recommerce é possível comprar peças de marcas como Chanel, Louis Vuitton, Gucci, Dior, Fendi, Prada e outras por valores de 30% a 70% menores do que nas lojas oficiais. Cada modelo de bolsa traz um informativo explicando como compor o look. Para quem quer vender, são aceitas bolsas, carteiras, malas, mochilas, pochetes e clutchs de marcas de luxo originais e em bom estado. Cada peça passa por uma curadoria para garantir a autenticidade antes de ser disponibilizada para venda.