Especial

Valorizando o artesanal

Com a interrupção das feirinhas, os trabalhadores manualistas perderam a principal vitrine e forma de venda. E precisaram reinventar o negócio

Manuela Ferraz*
Maria Carolina Brito*
postado em 24/09/2020 17:42

A economia criativa é o segundo nicho econômico mais afetado pela pandemia da covid-19, ficando atrás apenas do turismo, segundo apontam dados do Sebrae e da Fundação Getulio Vargas (FGV). Devido à alta demanda por máscaras, o trabalho de costureiros até cresceu durante a quarentena, mas o setor manual produz uma variedade de outros serviços, que vai desde artigos de decoração até acessórios de beleza, que passaram por desafios e adaptações para continuarem funcionando nesse novo cenário.

O setor que engloba artesãos e trabalhadores manualistas é importante fomentador da economia local. O Distrito Federal tem 11 mil artesãos registrados na Secretaria de Turismo e, segundo a Federação das Associações de Artesãos do DF e Entorno (Faarte-DF), uma vez que a produção artesanal é vendida em comércio físico, feiras, lojas colaborativas e eventos, 90% da classe foi afetada.

Parte desse setor interrompeu as atividades temporariamente ou mudou a dinâmica de trabalho. As redes sociais já eram aliadas, mas, depois da pandemia, passaram a ser a principal ferramenta de vendas. O presidente da Faarte, Hebert Tavares Amorim, explica que já estava em busca de um e-commerce que proporcionasse uma plataforma de vendas com a identidade do artesão de Brasília. “Estávamos conversando com alguns desenvolvedores, pois o comércio eletrônico vinha em pleno crescimento e, com a pandemia, tornou-se uma ferramenta indispensável para qualquer empreendedor.”

Para Hebert, é uma oportunidade reaprender a empreender. A principal dica para quem está no sufoco é se aperfeiçoar. “Nada é tão bom que não possa ser melhorado, atente sempre para o acabamento das peças e o atendimento dos clientes”, diz. Estão sendo oferecidos projetos de qualificação gratuitos para os trabalhadores do setor, tanto no comércio eletrônico, quanto no físico.

*Estagiárias sob a supervisão de Sibele Negromonte

 

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Trabalhando os sonhos

 (crédito: Ana Rayssa/CB/D.A Press)
crédito: Ana Rayssa/CB/D.A Press

Ivone Alice Trigueiro foi uma dessas trabalhadoras que, de repente, viram as vendas despencarem. Tudo o que ela produzia era comercializado presencialmente. “Quando veio a pandemia, eu tinha acabado de fazer umas compras grandes, de mercadoria para revender e para fabricar, mas todos os meus pontos de venda fecharam. Passei a receber um pedido ou outro, resumindo: quebrei. Tive dificuldade em honrar minhas contas, porque a minha renda praticamente zerou e eu não sabia o que fazer.”

Ela conta que teve que pensar diferente e se adaptar. Uma das decisões foi não trabalhar mais com nenhum tipo de curadoria, dedicar-se ao autoral, a fim de valorizar o produto. Voltou a vender e, nas últimas semanas, tem participando de algumas feiras.

Para Alice, é tempo de partilhar conhecimento. O ofício que ela aprendeu com uma tia lhe proporcionou muitas coisas boas, como viagens internacionais e atrizes de novelas usando suas criações. “Quero focar nas pessoas da minha idade. Com a grandeza da internet, posso chegar ao interior, àquela cidade pequena e ensinar tudo o que eu aprendi”, diz. De acordo com o Sebrae, os trabalhadores manuais brasileiros são, em sua maioria, mulheres acima de 50 anos, que aprenderam o ofício dentro do ciclo familiar.

Tudo on-line

E todos os caminhos apontam para o comércio on-line. Alice tem investido nas redes sociais, produzindo fotos profissionais. Ela, que sempre gostou da internet, tem sido webdesigner do próprio negócio. “Quero ficar totalmente on-line. Planejo, também, trabalhar com mentoria. Quem puder me pagar, ótimo; se não puder, quero ajudar de graça quem precisa.”

Há 25 anos, Alice começou a criar acessórios em casa e a vender para os amigos. Formou-se em direito, mas a paixão pela moda, pela criação, falou mais alto. Hoje, a fundadora do Ateliê Sonhos de Alice (@sonhosdealice) relembra os tempos em que saía de loja em loja carregando uma caixinha em mãos, oferecendo suas criações. “Reencontrei uma cliente que era universitária e, hoje, é diplomata, e continua usando minhas peças. É isso que deixa a gente feliz.”

As tiaras só fizeram a cabeça das fashionistas há poucas estações, mas Alice vê o acessório como peça fundamental de sua marca. Apesar de amar trabalhar com cristais e pedrarias, ela explica que o maior investimento para o manualista é a criatividade. “Teve uma época em que estava sem dinheiro e fiz uma coleção, que levei para Paris, toda em fuxico. A minha mãe fazia, assim como a minha avó”, relembra.

Nova forma de contato com o público

 (crédito: Arquivo Pessoal)
crédito: Arquivo Pessoal

Reinventar é a palavra da vez para a servidora pública Luciana Guimarães, 52 anos. Apesar de não ser artesã, ela é representante em Brasília do Atelier Pepita (@atelierpepitabrasilia), marca de pulseiras, colares e acessórios desenvolvidos à mão por duas irmãs do Rio de Janeiro, e experiente conhecedora do mercado. “Piquenique, BSB Mix, feira da Vitrine Autoral, no Gentil Café, todos os eventos da cidade a gente participava, no mínimo, duas vezes ao mês.”

Luciana percebia, então, um movimento de incentivo ao artesão. “As pessoas valorizam o trabalho autoral, artesanal, e essa questão de conquistar espaços públicos é muito forte em Brasília. A população como um todo se acostumou com essas feiras e eventos em que podia encontrar os amigos e ver o que se estava produzindo.”

Com o início da pandemia, Luciana precisou de algumas semanas para digerir o novo normal e, apesar de estar com muita mercadoria para comercializar, paralisou. Foi só depois do estímulo de uma amiga e cliente que a servidora voltou às vendas, desta vez, pelas redes. “Era um público para quem eu não vendia muito, então comecei a estudar, correr atrás de tutoriais, de cursos. Foi uma grande mudança e está funcionando bem. Acho que as pessoas se reinventaram e passaram a buscar coisas novas pelas redes sociais”, acredita.

Algumas das antigas clientes migraram para o on-line e novos consumidores foram cultivados. Apesar do retorno de diversas atividades presenciais, Luciana ainda não se sente confortável em participar.

Novos produtos para se reinventar

 (crédito:        Marcelo Ferreira/CB/D.A Press                             )
crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press

A Nano Garden (@nanogardenterrarios) é referência em terrários e plantas exóticas e raras que transformam ambientes internos e externos no cenário brasiliense. Além disso, a empresa realiza projetos no conceito urban jungle — selva urbana —, estilo de decoração que adiciona elementos da natureza ao lar.

Apesar do espaço consolidado no mercado, o negócio enfrentou dificuldades no cenário de isolamento social. Eiiti Yuri, 27, plant designer e um dos fundadores da Nano destaca a manutenção da loja on-line, a responsabilidade pelos colaboradores da empresa e a preservação do contato com clientes pelas redes sociais como os desafios do momento.

Para enfrentar a nova realidade, a adaptação foi necessária. “Criamos novos produtos. Um deles foi o serviço especializado de delivery. Hoje, conseguimos entregar nossos produtos com segurança para nosso cliente sem ele ter que sair de casa. Outro foi o workshop on-line. Sempre ministrei os cursos presencialmente e, agora, são virtuais.”

A equipe acredita nas energias e benefícios que as plantas proporcionam, como filtragem do ar e auxílio na ansiedade e estresse do dia a dia e, no contexto de incertezas que vivemos, criaram o Kit Nano Terapia. “O cliente tem a experiência de criar um minimundo com as próprias mãos, na segurança do lar. E conseguimos enviar para todo o Brasil.” A Nano Garden voltou a atender na loja física, na 402 Sul, com controle do número de pessoas, e continua a focar nas vendas virtuais.

Sobrevivência em terrários

Engana-se quem pensa que os arranjos da Nano sempre foram produzidos na capital. “Fui à casa de um amigo fotógrafo para falar sobre a profissão. Assim que cheguei ao apartamento, eu me deparei com dois terrários. Na época, não fazia ideia do que era aquele vidro fechado com plantas vivas no interior. Fiquei tão admirado que acabamos discutindo sobre terrários a noite toda. Saí de lá decidido que juntaria dinheiro vendendo terrários para comprar todo meu equipamento e seguir na carreira de fotógrafo. No mesmo dia, já surgiu o nome da marca.” Depois disso, Eiiti Yuri e a amiga cofundadora começaram a vender para amigos e familiares em Londrina, no Paraná.

Após três meses, mudaram-se para Brasília e trouxeram a marca para a cidade. O plant designer descobriu que os terrários e as plantas são sua verdadeira paixão e decidiu compartilhar com os clientes o poder que têm de transformar a vida e o ambiente. “Assim que chegamos, já começamos a participar de feiras por todo o DF nos fins de semana e começamos a fazer parte das lojas colaborativas. Após quatro anos de marca e com 10 mil seguidores no Instagram, decidimos abrir nossa primeira loja física.” Yuri aplica conhecimentos da fotografia e trabalha enquadramento, sombra, luz, texturas e cores para criar arranjos únicos e diferenciados.

Vitrine autoral e virtual

Para dar continuidade ao trabalho de valorização do produto autoral e gerar renda para os empreendedores que tiveram o sustento comprometido durante a pandemia, os organizadores e idealizadores da Vitrine Feira Autoral (@vitrinefeiraautoral), evento do cenário brasiliense para artesãos, colocaram em prática novas ações. “Primeiro, criamos um financiamento coletivo, mas logo percebemos que somente isso não seria o suficiente, precisaríamos criar algo para darmos continuidade à valorização do trabalho autoral. Com isso, tivemos a ideia de criar nosso site”, afirma a idealizadora, Carol Bastos.

Ela explica que o momento de dificuldade, gerado pelo fechamento das feiras presenciais, principal meio de divulgação e renda dos trabalhadores autorais, tem levado a adaptações, muitas vezes pautadas nas alternativas on-line. “Acredito que as feirinhas continuarão sendo o principal canal de divulgação para o artesão, mas o e-commerce é a tendência do momento e crescerá cada vez mais.”

No novo site, é possível encontrar mais de 40 marcas autorais, com uma variedade de produtos feitos à mão, como joias, ilustrações, cosméticos naturais e outros. Carol explica que o apoio da comunidade é fundamental para os pequenos empreendedores, pois, além de estimular a economia regional, adquirir um produto autoral auxilia a garantir o sustento dos artesãos.

Com o Ernesto Café, da Asa Sul e Norte, são realizadas pequenas ações de vendas, com expositores em cada unidade do espaço. Todas as medidas de segurança são respeitadas para evitar aglomerações.

Ilustrar para ser feliz

 (crédito: Isabella Oliveira/Divulgação)
crédito: Isabella Oliveira/Divulgação

Lila Oliveira, 34, encontrou na arte e na ilustração sua fonte de alegria. O interesse por desenhar e pintar a acompanha desde jovem e foi fundamental na sua escolha por cursar arquitetura na Universidade de Brasília (UnB). No ambiente acadêmico, pôde colocar em prática o talento e ilustrou produções textuais de colegas. Em 2011, já formada, conquistou o primeiro trabalho remunerado e passou a fazer freelas, geralmente na área de arquitetura. Três anos depois, pediu demissão da construtora em que trabalhava porque sentia necessidade de se reconectar com seu lado artístico.

“Investi em um curso de empreendedorismo criativo e me apaixonei pelo conceito.Começava com um módulo de autoconhecimento, algo em que eu era extremamente carente na época. Então, vi que queria mesmo desenhar e pintar. Recomecei e, mesmo enferrujada, recebi minhas primeiras encomendas de amigas”, conta.

Foi em 2016 que seu negócio alcançou boas vendas e passou a chamar-se Alegrias Ilustradas, como é conhecido até hoje. “Crio artes em aquarela e outras técnicas manuais, como guache e colagem. Vendo tanto os trabalhos originais, pinturas feitas à mão, quanto produtos que os reproduzem, como pôsteres, quadros, cartões, cadernos, imãs, bottons, tatuagens temporárias, zines. Também presto serviços de ilustração, já ilustrei retratos, convites de casamento, livros”, detalha.

A arte não para

Quando foi decretada a pandemia do novo coronavírus, Lila se viu em um grande dilema moral que a fez fechar, inclusive, a loja on-line em um primeiro momento. “Achava que não era um momento de incentivar o consumo e não me sentia à vontade de me expor. Ao mesmo tempo, fiquei praticamente sem renda por vários meses”, explica. Com o prolongamento da quarentena, decidiu reabrir as vendas virtuais, que eram mínimas e ainda considera insuficientes — cerca de 90% de sua renda vinham de feiras e lojas físicas.

Reinventar-se foi preciso e, desde então, Lila passou a focar no virtual, no marketing e em criar fontes de renda como ilustradora ou outras de suas habilidades. Precisou renegociar o aluguel do ateliê, onde pretendia oferecer aulas presenciais, e transformá-las em um curso on-line de aquarela. “Eu me sinto muito feliz de saber que a minha arte toca as pessoas e leva algo de bom para o ambiente delas. Gosto muito quando estou numa feira e vejo as pessoas sorrindo olhando a minha arte.”

Crochê sustentável

 (crédito: Arquivo Pessoal)
crédito: Arquivo Pessoal

Com o fio de malha, resíduo de tecido que sobra da indústria têxtil e, geralmente, vai parar no lixo, Rizia de Lima e Silva Alves, 40 anos, dá vida a Bio Crochê (@biocroche). Com ele, “crocheteia” almofadas, sousplats, pufes, bolsas e tapetes. Um dos diferenciais da marca são as ecopads — pequeno disco de crochê que substitui o uso do algodão e pode ser usado para retirar a maquiagem, passar tônico facial e até esfoliar a pele.

Rízia conta que uma dificuldade que a pandemia trouxe foi a falta de contato com as colegas de ofício, mas isso vem sendo resolvido pelos encontros virtuais. Outro ponto tem sido a dificuldade em achar fios específicos. “Alguns a gente não encontra; outros ficaram mais caros.” Há, também, a impossibilidade de realizar ações em creches e asilos ao lado do grupo social que participa e faz mantas para crianças e idosos assistidos nesses lugares.

Uma surpresa positiva foi o aumento das vendas. Como a maioria das pessoas tem passado mais tempo em casa e está em busca de conforto, as almofadas e pufes compõem uma decoração acolhedora e aconchegante. Segundo Rízia, essa busca veio acompanhada por um ganho de seguidores e maior engajamento nas redes sociais, que já era a principal ferramenta da Bio Crochê.

Manualidade que cura

“Esse mundo da arteterapia é formado por grupos de pessoas que têm a manualidade como uma forma de cura. Então, está todo mundo envolvido nisso, seja na costura, no crochê, seja no tricô, no bordado. Isso foi fundamental para que eu conhecesse uma rede de apoio incrível, não só de mulheres, mas de pessoas jovens, idosas e homens”, conta.

Rízia conta que o crochê veio como uma terapia, após um problema de saúde, e foi amor à primeira vista. Hoje, é um momento de autocuidado, que traz equilíbrio e força para o dia a dia. Ela detalha que, apesar de as pessoas associarem o bio da Bio Crochê à sustentabilidade, tem um outro sentido. “Bio significa vida e essa manualidade deu uma ressignificação no meu viver.” E ela tem aproveitado os dias de isolamento para estudar outras formas de fazer arte, como o bordado.

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