Cidade nossa

Um divã no botequim

Paulo Pestana
postado em 01/10/2020 16:21
 (crédito: Editoria de arte)
(crédito: Editoria de arte)

Convenhamos que bar não é lugar para discutir relação. Mas, como hoje ninguém tem lugar para nada e a vida privada escorre pela latrina, lá estava o casal tentando acertar os ponteiros. Antes, porém, devo esclarecer que não caí na tentação de fazer fofoca; o que segue é só um caso mundano, cheio de testemunhas involuntárias.

A moça parecia confundir a cadeira de plástico vermelha com o símbolo da cerveja com um divã. Confortável, não parava de falar; passou a vida a limpo, falou mal do pai, dos irmãos, das falsas amigas — um jorro emocional. O rapaz era esperto: não retrucava, demonstrava interesse e soltava grunhidos em sinal de apoio.

Não houve discussão. Nem quando ela mudou o sujeito das orações e passou a se dirigir a ele, pobre coitado — pelo menos era o que parecia, já que tentávamos não prestar atenção (temos nossos próprios problemas e ninguém ia receber um tostão pela sessão). O casal ficou o tempo de consumir três cervejas e uma porção de pasteizinhos.

Quando saíram, lógico, viraram assunto. Não exatamente o casal, mas o incômodo demonstrado pelo rapaz, obrigado a ouvir aquilo tudo em público, ter alguns segredinhos revelados — coisas que ele mantinha como hábito e que ela não gostava. Tivemos a certeza de que aquele rapaz nunca mais seria visto nas redondezas.

Era uma mesa de homens casados — dois muito casados, já que estão na terceira tentativa — e apenas um ficou calado, absorto pela conversa anterior. Parecia ruminar a conversa que ouvira, provavelmente mais atentamente que os demais.

Reclamar do casamento é coisa normal na confraria dos botecos. Numa outra roda, um amigo passou apertado depois que a mulher ligou pela terceira vez na convocação que todos — uns mais, outros menos — obedecemos e, por engano, ligou o viva voz do telefone. Todos na mesa ouviram os berros e palavrões que saíram do aparelho.

Meio sem graça, ele disse: “Algumas vezes ela gosta de soltar os cachorros”. E ele continuou ali, sem arredar o pé, para dizer que não era mandado. Mas desligou o telefone.

Voltando ao amigo que ouvira a DR. Ele continuou bebendo seu uísque, sem participar da conversa, até que alguém lhe perguntou alguma coisa e fez cara de quem não ouviu ou não entendeu. O que está havendo? Problemas? Podemos ajudar? — as perguntas vieram de todas as bocas, demonstrando aquela cumplicidade masculina que algumas mulheres tanto invejam.

Disse que estava tudo bem, que não era nada no trabalho e que só estava abismado com a conversa do casal que se expôs ao mundo — ao nosso mundo, pelo menos. Ao mesmo tempo, disse, achou bonita a coragem de explorar problemas que estavam enfrentando, como casal, achando bonito quando saíram de mãos dadas e se beijaram quando o rapaz dava partida no carro. E abriu o coração: “Tem uma semana que minha mulher não fala comigo”.

O silêncio durou segundos que pareceram eternidade, foi quebrado pela voz troante do Maurição, que estava apartado: “Aproveita, amigo; esse é aquele tal silêncio que vale ouro”.

 

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