Não sei se dá para precisar a data, mas seria útil saber quando é que o Brasil começou o processo que redundou neste cinismo todo. Há tempos, vivemos uma epidemia moral que vem acabando com a fama cordata do brasileiro; viramos iconoclastas, detratores, ridículos. Cuspimos para o alto como se não houvesse gravidade.
Foi Antístenes quem, 400 anos antes de Cristo, definiu a doutrina cínica, baseando-se na vida dos cachorros. Ele defendia que os humanos também deveriam ser como os vira-latas, livrando-se de apegos, pudores e convenções sociais para viver sem riquezas ou comodidades. Ficaria orgulhoso de ver o Brasil.
O mais importante, hoje, parece ser destruir reputações. Desde que, como nas fábulas de La Fontaine, os animais irracionais ganharam voz pelas chamadas redes sociais, o negócio galopou. E assim vamos nos divertindo jogando bosta em quem consegue se destacar de alguma forma.
Por isso, é alvissareiro se deparar com um livro como De casaca e chuteiras, em que Silvestre Gorgulho traça um inédito paralelo entre Brasília, Pelé e JK. Gorgulho é fascinado por história e suas datas, e entre suas múltiplas atividades sempre se destacou por ter uma invejável coleção de amigos.
Eternamente inquieto, desconhece o significado de palavras como impossível, impensável, inaceitável ou qualquer outra que apresente o prefixo que se refere a negação ou privação. Amigos passaram anos chamando-o de sonhador, poeta — e ele levou a sério; reuniu poesias no livro Luau de mim, lançado em plena pandemia.
Mas em De casaca e chuteiras, que vem com o subtítulo A era dos grandes dribles na política, cultura e história, ele ergue um monumento a heróis brasileiros, como se estivesse imbuído de acabar com essa era de cinismo. A partir de uma confluência de datas, ele traça linhas evolutivas das histórias de Pelé e JK para mostrar uma época em que o Brasil começou a ter orgulho de si próprio.
E tudo começou quando ele recebeu a incumbência de pedir a Oscar Niemeyer o projeto de um monumento em homenagem a Pelé que seria erguido em Santos, a cidade que ele apresentou ao mundo. Gorgulho não apenas conseguiu cumprir a tarefa como teve a ideia de pesquisar sobre o incontestável rei do futebol, encontrando muitos pontos em comum com a história de Brasília e seu fundador.
Nas pesquisas, Silvestre Gorgulho descobriu até que dona Celeste, a mãe de Pelé, não queria ver o filho jogando bola. Tinha medo de ele ter o mesmo destino do pai, Dondinho, tido como grande craque, mas que quebrou a perna jogando pelo Atlético Mineiro e passou muitas dificuldades.
O livro está sendo lançado na semana em que Pelé completa 80 anos de idade e é um grande almanaque sobre o Brasil do final dos anos 1950. É também um antídoto contra o baixo-astral desses dias em que perdemos tantos amigos — uns para o vírus, a maioria para a falta de razão — e que nos lembra que ainda é importante ter ídolos.
Ou, então, podemos seguir o conselho de Antístenes e vamos viver como vira-latas.
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