Por Daiara Tukano
O rio me ensinou a correr, pular e mergulhar para voltar a ser peixe, imaginando ser um passarinho.
Até hoje, não sei se são os peixes que voam na água ou os pássaros que nadam no ar, mas sempre quis brincar com eles: respirar e encher o coração para não afundar e me permitir ser leve. Quantas vezes me deixei levar pela corrente e precisei dar umas boas braçadas para voltar a pôr o pé na terra? Pulei nas cachoeiras, mergulhei até onde deu, me esquivei dos redemoinhos, subi os igarapés e entendi que os rios têm muitas cabeças.
Nosso povo canta aos rios, chegamos aqui remando e hoje continuamos na canoa da transformação, entendemos que, assim como os rios, tudo se transforma e que nossa vida vem das águas. As águas da grande avó do universo, que brota como leite dos seios das montanhas até o mar: os rios correm na terra e no céu.
Quando ouvi que o rio era um grande avô, fiquei imaginando meu avô menino e entendi que a mãe do rio é a floresta; entendi o amor profundo que faz brotar de seu seio a essência da vida e a doçura das crianças que já nascemos livres.
Aprendi a nadar nas praias de areia branca do Rio Negro, meus avôs nasceram no Apaporis e no Tiquiê, onde as águas escuras fazem um espelho perfeito do céu para brincar com as estrelas. Meu coração mora nas curvas da Amazônia.
Onde nasci, passa um rio chamado Tietê, lembra uma criança triste e abandonada que não recebe o amor que merece. Chorei ao ver o Rio Doce: envenenar um rio, assim como uma criança, devia ser inaceitável para todos nós.
O amor que os povos indígenas sentimos por nossos rios e nossas terras mães não se mede em palavras, talvez em cantos. Ser povo nativo é mais que pertencer a um território, é ser filho e saber que o rio corre em nossa veia e que nossa carne é a própria terra, por isso o que dói neles dói em nós. Nosso sentido é ser livres, amar e cuidar a terra, assim como os demais seres vivos.
Cada gota que cai uma hora sobe para o céu, assim os rios que correm no céu chovem na terra: chovem para a terra respirar, não adianta tentar prender o rio, a água vai continuar correndo, pulsando nas veias da terra. Assim, os povos indígenas continuamos marchando, dançando e cantando os cantos aos rios. No Brasil, Chile, Bolívia, onde for preciso, água mole em pedra dura, por gota a gota de chuva, por gota a gota de sangue, a revolução é indígena.
Da série jovens pensadores brasileiros, esta semana temos Daiara Tukano, artista visual, pesquisadora em direitos humanos e ativista indígena.
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