A língua portuguesa tem sido muito achincalhada nesses tempos. Há muita concorrência com tanto neologismo, erro proposital (“é nóis”, por exemplo), estrangeirismo e até invasão visual/sonora, que transforma expressões inteiras em desenhos (emojis, figurinhas). E tem a invasão dos politicamente corretos.
Estava aguardando o início de uma reunião quando as pessoas começaram a chegar. “Bom dia a todos”, repetiam-se com a mesma vibração modorrenta daquela manhã chuvosa, até que o rapaz com calças de feltro xadrez e blusa colorida entrou:
“Bom dia, todes!”. Todes.
Deixei passar. Talvez fossem os ouvidos cansados, entorpecidos pela música eletrônica do bar na noite anterior. Mas a cada intervenção do rapaz eu estranhava — “somos amigues”, “estamos animadics” — parecia uma mistura de Mussum e Zacarias, dos Trapalhões, até que a curiosidade matou o gato; perguntei ao rapaz ao lado: “É língua presa?”.
Temos convivido até com línguas-presas presidenciais, o que em si nunca foi problema. Bem mais graves são as locuções que saem dessas bocas oficiais. A anquiloglossia é um fenômeno natural, quando a membrana que fica sob a língua é menor e atrapalha a dicção. Nada demais.
Não era. Estava mais para língua solta. O colega ao lado me explicou que aquela era a nova forma correta de falar, o idioma inclusivo que acabaria com todo preconceito. Nessa nova forma de se expressar, por exemplo, não cabem mais pronomes pessoais — não existe mais “ele” e “ela”, por exemplo. Virou tudo “íle”.
Se eu já achei estranho quando declararam que estávamos sendo governados por uma presidenta, avalie agora. Depois que descobri que o Tinder — aquele site de namoro — admite 37 identidades de gênero (não é mais sexo), não deveria estranhar nada mais, mas eu ainda não perdi a capacidade de me espantar com a estupidez, o que me parece bom sinal para quem não quer se inoculado pelo vírus da asneira, pelo menos não além da conta.
Soube até que o Conselho da União Europeia lançou um guia de “comunicação inclusiva” para a língua portuguesa. Com tanta gente passando fome, morando nas ruas, injetando-se com drogas pesadas e tocando o terror, os nobres embaixadores deveriam ter outras preocupações na cabeça, mas isso é só a opinião de um idiota sul-americano que fala — e gostaria de continuar falando — a língua de Eça, Machado e Paulo Coelho.
Não sou refratário a novas ideias. Mas o mundo parece nos empurrar para um abismo. Numa outra reunião, a mocinha reclamou que estava sendo desrespeitada. Eu simplesmente pedi desculpas (por algo que não sei) e disse: “Eu não estou lhe desrespeitando, só colocando meu ponto de vista”. Ela respondeu: “Se eu estou me sentindo desrespeitada é porque você está me desrespeitando”. Tá bom, então.
Não me diz respeito se o sujeito quer andar vestido de girafa e falar assoviando como uma girafa, ou assumir a identidade sexual que quiser. Só quero a liberdade de não participar desse desfile de carnaval sem serpentina e loló e saber que elas gostam de ser chamadas de elas, assim como eles gostam de ser eles.
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