Encontro com o Chef

O cerrado à mesa

Brasiliense resgata as origens paraenses e goianas e cria uma gastronomia vegana que valoriza a cultura e os ingredientes locais

Sibele Negromonte
postado em 19/11/2020 18:18
 (crédito: Ana Rayssa/CB/D.A Press)
(crédito: Ana Rayssa/CB/D.A Press)

Ana Paula Boquadi orgulha-se de sua “anscestralidade gastronômica”. Do lado materno, as origens são paraenses; do paterno, goianas. “Cresci cercada de comida boa e de mulheres que sabiam fazer comida boa.” A avó Maria Ivete, extrativista de açaí e que ficou conhecida por Maria Amassadeira, porque amassava o fruto com as próprias mãos, ensinou a mãe de Ana Paula a cozinhar quando a menina tinha 7 anos — tradição que esta seguiu com a própria filha. Com elas, a chef descobriu o amor pelas panelas e aprendeu os segredos da cozinha do Norte.

Já com a avó paterna, Maria das Dores, conheceu o que há de melhor na culinária goiana. “Ela costumava fazer, aos domingos, empadão goiano e, depois do almoço de família, distribuía uma travessa com cada um dos filhos. Era tradição: às segundas, sempre almoçávamos empadão”, recorda-se. Cearense de nascimento, o avô Jesus Barros Boquadi, escritor e pioneiro, era apaixonado pelo cerrado. “Depois de me tornar chef, descobri um livro dele, Romanceiro goiano, no qual ele fala poeticamente dos frutos do cerrado.”

E as recordações não param aí. “Quando tinha 11 anos, fui visitar o meu avô materno no Pará e ele me levou a uma tribo indígena, que preparou um almoço especial para nós. Aquilo me marcou muito.” E foi nessa mistura genética e cultural que Ana Paula, 32 anos, cresceu e se apaixonou pela gastronomia e pela cultura dos povos dos seus ancestrais.

Quando terminou o ensino médio, como não havia curso de gastronomia na Universidade de Brasília (UnB), ingressou no de pedagogia, em 2007. Logo de cara, viu que poderia, sim, unir a culinária com a educação ambiental — vertente em que decidiu se especializar. “Ver o cerrado como uma ferramenta ambiental abriu o meu lado crítico e político. E comecei a refletir: o que a gente está comendo?”

Nessa mesma época, Ana Paula fez um curso com o médico Alberto Gonzales, autor do livro Lugar de médico é na cozinha, que aborda o poder de cura dos alimentos. Ao conhecer os fundamentos do veganismo, a brasiliense decidiu não só aderir a essa filosofia de vida como também estudá-la a fundo e transformá-la em seu ganha-pão. Com o incentivo do Dr. Gonzales, começou a oferecer cursos de culinária vegana.

Alimentação natural

Em 2014, a brasiliense alugou uma casinha na Vila Planalto e começou a produzir marmitas e a oferecer consultoria a restaurantes veganos da cidade. Surgia, assim, o Buriti Zen. Com o sucesso da proposta, o espaço se tornou pequeno e Ana Paula precisou mudar-se para uma casa maior, na própria Vila. No novo endereço, passou a abrir as portas para receber os clientes. “Transformei a minha sala em um salão com 12 lugares”, relembra. “E passei a promover festivais, com roda de samba, chorinho, jazz, tudo harmonizado com a comida.”

Mais uma vez, o local ficou pequeno e, em 2018, a chef tirou o Buriti Zen da sala de casa e o abrigou em um ponto comercial na 407 Norte. Com mais espaço, Ana Paula pôde fazer o trabalho que sempre sonhou. Criou um grupo de compras coletivas, no qual faz a ponte com pequenos produtores quilombolas da comunidade Kalunga, em Goiás, e passou a investir ainda mais no uso dos frutos do cerrado em suas receitas.

Todos os pratos de Ana Paula, sejam doces, sejam salgados, trazem algum ingrediente do cerrado, com produtos comprados diretamente das mãos de dona Fiota e seu Calisto, agricultores quilombolas. A chef procura valorizar tanto os ingredientes quanto a cultura do local onde são produzidos. “O meu maior prazer é ver alguém dizendo que comeu jatobá pela primeira vez e amou. Esse é o meu grande desafio, tornar os frutos do cerrado palatáveis.”

Ana Paula preza pela sazonalidade dos alimentos, por isso muda o cardápio semanalmente. “Recentemente, fiz um festival do cajuzinho do cerrado, que estava na safra. Criei mais de 20 pratos com ele”, exemplifica. Mas isso não significa que, na entressafra, ela ficará de mãos abanando. “Posso usar os produtos beneficiados, como as polpas, as conservas, as raspas de buriti e de pequi, as farinhas, os óleos e as castanhas. O cerrado é muito rico.”

E, para ela, os ingredientes vão bem com tudo. Basta usar a criatividade: “Faço um pad thay com cogumelos, coquinho azedo e castanha de baru muito saboroso”, garante. A receita que divide com os leitores da coluna, o brownie de jatobá com baru, é uma das que disponibilizou no Terra Madre Brasil, evento que reúne comunidades slow food, agricultores familiares, educadores, cozinheiros e defensores do acesso ao que chamam de alimento de verdade. Ana Paula foi uma das palestrantes do festival virtual, que se encerra hoje.

Levar a cultura e a gastronomia dos povos tradicionais para o mundo, aliás, é um dos prazeres da chef. Ela já representou o Brasil em um evento na França, no qual apresentou os benefícios alimentares do cerrado. Também teve a oportunidade de conhecer a comunidade indígena Kisedje, no Xingu — maior processadora de pequi do mundo.

Os planos de Ana Paula envolvem, agora, um olhar mais atento para os doces — espera oferecer, inclusive, um curso de confeitaria com frutos do cerrado, em janeiro. Ainda este mês, a chef está organizando o primeiro festival do cajuzinho do cerrado, em que promoverá uma semana de capacitação com palestras, oficinas gastronômicas e competições culinárias com frutos do cerrado.

Ana Paula sonha, ainda, em escrever um livro de culinária no qual mesclará receitas e poesias escritas pelo avô e por ela mesma. “Nas minhas pesquisas, descobri que meu sobrenome, Boquadi, significa árvore de jatobá.” Como a árvore, Ana Paula firma-se nas suas raízes para projetar o passado da sua cultura para o futuro.

Serviço
Buriti Zen
Instagram: @buritizen
WhatsApp: 9 8147-5075

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Brownie de jatobá com baru

 (crédito: Ana Rayssa/CB/D.A Press)
crédito: Ana Rayssa/CB/D.A Press

Ingredientes
1 xícara de inhame cozido (255g)
1 e 1/2 xícara de água (300ml)
1/2 xícara de óleo de coco babaçu ou outro óleo (100ml)
1/2 xícara de cacau (50g)
2 xícaras de farinha de jatobá (140g)
1 e 1/2 xícara de açúcar (300g)
70g de chocolate 70%
50g de castanha de baru

Modo de fazer
Bata todos os ingredientes no liquidificador, menos o chocolate e o baru. Coloque a massa em uma assadeira de 20cm, espalhe as castanhas e o chocolate por cima e asse em forno pré-aquecido a 180ºC por 20 minutos.

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