Cidade nossa

Na roda gigante

Paulo Pestana
postado em 26/11/2020 18:43 / atualizado em 26/11/2020 18:45
 (crédito: Editoria de arte)
(crédito: Editoria de arte)

Há poucos lugares mais opressivos que sala de espera de médico. Com essas clínicas coletivas, em que pacientes de vários doutores esperam o chamado num cômodo único, a coisa piorou muito; é um jugo coletivo e nada solidário. Ninguém ali quer saber da angústia do vizinho de cadeira, talvez como fuga para suportar melhor a própria agonia.

Como não sou fã desses programas de culinária — embora exibido sem som seja bem mais atraente — tentei entabular uma conversinha com a mocinha ao lado, mais na base do desabafo pela demora do atendimento do que de outra coisa. Não deu muito certo, porque ela estava acompanhada. De um telefone.

A mocinha até tentava responder, mas não tirava os olhos e os polegares do telefone, digitando sem parar, alternando entre o WhatsApp e o Facebook com uma precisão de malabarista do circo Garcia. Em certo momento, como se estivesse mesmo no picadeiro, ela tirou outro telefone da bolsa e atendeu a uma chamada sem parar de digitar.

Não prestei atenção na conversa porque não sou (muito) enxerido; fiquei pensando de um tempo em que não havia nada disso e a sala de espera era bem menor e recheada de revistas velhas e de páginas sebosas.

Eu mesmo estava ali com uma geringonça eletrônica, com os jornais do dia à minha disposição, tentando me distrair antes de ouvir o vaticínio do doutor, mas desconcentrado como um bode solto, por causa de uma repentina anosmia, embora o lugar estivesse cheio de gente com seus odores.

O passado me salvou: lembrei de um tempo em que era possível se esconder do mundo nem que fosse por alguns minutos para recarregar as baterias, de quando era possível ter longas férias, de quando se preenchia uma folha de cheque sem levar susto porque estávamos em mais um fim de novembro. Olhei de novo para a mocinha e não gostei da cara do mundo novo que fizemos.

Ela continuava a teclar seus diálogos, provavelmente com mais de uma pessoa, tal a velocidade das frases. Estava totalmente absorta naquele mundo; e eu pensava: mesmo nesse ano confuso, ninguém mais consegue parar por um minuto. E me lembrei de uma amiga muito querida que em alguns finais de tarde largava tudo para subir na roda gigante da Nicolândia, só para apreciar o espetáculo que o pôr do sol oferece.

E recorri à minha tabuleta eletrônica para buscar por uma velha poesia do Drummond. Estava lá, como tudo, ao alcance de um dedo: “Quem teve a ideia de cortar o tempo em fatias,/ a que se deu o nome de ano,/ foi um indivíduo genial. /Industrializou a esperança/ fazendo-a funcionar no limite da exaustão. / Doze meses dão para qualquer ser humano/ se cansar e entregar os pontos./ Aí entra o milagre da renovação e tudo começa outra vez/ com outro número e outra vontade de acreditar/ que daqui pra adiante vai ser diferente…”

A leitura ficou por aí. O número da senha apareceu no visor. Era minha vez.

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