A tradição manda a família se reunir para a ceia de Natal, no dia 24 de dezembro. Mas a pandemia do novo coronavírus impõe um dilema: tomar precauções e encontrar, mesmo assim, pelo bem da saúde mental dos que se sentem demasiadamente tristes por não poderem celebrar? Ou persistir no isolamento em prol da saúde física e tentar preencher o vazio apenas com a tecnologia, que permite ligações de vídeo?
Não há resposta certa. Por um lado, de acordo com boletim diário divulgado pela Secretaria de Saúde, a taxa de transmissão no Distrito Federal é superior a 1, o que significa que a pandemia está avançando na capital federal. Por outro, o efeito do isolamento nas pessoas também tem sido grave. De acordo com dados da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, os casos de depressão dobraram durante a pandemia e os de ansiedade e estresse aumentaram em 80%.
A doutora em psiquiatria Alexandrina Meleiro, vice-presidente do Conselho Científico da Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Transtornos Afetivos, afirma que um dos grupos mais afetados foram os idosos. “Muitos idosos ficaram abandonados, deixaram de ir ao médico, de conviver com pessoas”, afirma. Segundo ela, pessoas de 60 anos ficaram revoltadas porque se sentiram envelhecidas e rejeitaram a própria idade, por sentirem, na pele, o preconceito.
O sentimento de solidão, não só entre idosos, como entre outras faixas etárias, fica ainda mais latente durante o período das comemorações de fim de ano, o que contribui para que as pessoas se sintam impelidas a desfrutarem da companhia dos entes queridos. A vontade de estar perto, portanto, passa a falar mais alto.
A psicóloga clínica Rebeca Potengy, 29, adverte que os cuidados para não se deixar levar por essas emoções devem ser redobrados durante o Natal. “Família mexe com o nosso senso de pertencimento, então, é algo muito forte e mobilizador para as pessoas. Eu acredito que o conflito interno vai existir, porque muitos estarão mais motivados a quebrarem o isolamento social.”
*Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte
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Festa adaptada
Os parentes de Fernanda Soares, 24, tanto do lado materno quanto paterno, são todos de Patos de Minas. Religiosamente, em todo mês de dezembro, a família de cerca de 70 pessoas vai para a região mineira se aglomerar em uma animada festa com direito a ceia, amigo-oculto, Papai Noel e tudo o que a época natalina traz de especial. Pela primeira vez, contudo, esse hábito terá de ser alterado, e a família vai se separar.
Como a avó de Fernanda está sozinha na cidade com uma das filhas e isolada desde março, o núcleo familiar da casa de Fernanda decidiu fazer uma quarentena para poder passar o Natal com a matriarca. O resto da família, por sua vez, dividiu-se: alguns vão passar juntos e outros optaram por ficar em casa, longe dos demais.
Mas, para não quebrar a tradição, a família bolou uma complexa forma de manter o amigo-oculto vivo. O sorteio foi feito on-line e cada um mandará o presente do amigo pelos Correios. Para não estragar a surpresa na hora de revelar quem é o remetente, os presentes serão enviados não para o endereço do destinatário final, mas para o de algum parente que passará a noite de Natal com ele. No dia da ceia, todos se encontrarão virtualmente para fazer a “tão esperada” revelação dos brindes.
Para Fernanda, o Natal tem um significado especial, afinal, é a única época do ano em que todos estão juntos para celebrar. “Para mim, o Natal é a melhor época do ano. Gosto do clima, de trocar presentes, de fazer as comidas e encontrar os parentes”, diz. Um momento memorável para ela é quando todas as luzes são apagadas, anunciando que o Papai Noel — ou melhor — o tio fantasiado de roupas vermelhas e gorro, chegou para distribuir os presentes.
Exame antes da ceia
Há quem faça planos de fazer teste de covid-19 na família antes do grande encontro a fim de garantir a segurança de todos. O diretor-técnico do Laboratório Sabin, Rafael Jácomo, no entanto, explica que o teste viral PCR com resultado negativo não exclui a possibilidade de estar infectado. “Existem momentos da infecção e, de um dia para o outro, o contexto muda muito. Uma carga viral que não foi detectada num dia, aumenta no outro e passa a ser”, detalha.
De acordo com o Centro de Controle e Prevenção de Doenças, agência norte-americana, as medidas de prevenção durante as festas de fim de ano são de cunho comportamental: uso de máscara, manter distância das outras pessoas, lavar as mãos com frequência e evitar colocá-las na máscara, nos olhos, no nariz e na boca. O órgão também sugere encontros a céu aberto.
Encontrar ou não encontrar, para Jácomo, são decisões individualizadas, avaliando riscos e benefícios. Para ele, existem casos de familiares que não veem os parentes idosos há muitos meses, o que traz uma dificuldade emocional. “A gente tem que decidir se assume aquele risco ou não. O que não dá é para achar que não vai ter risco por conta de um PCR negativo ou um IGG positivo”, explica.
O IGG positivo é o teste que mostra que a pessoa já teve a doença e já tem anticorpos contra ela. Segundo o profissional, apesar de haver apenas casos isolados de reinfecção, não há segurança para afirmar que pessoas que já tiveram a covid-19 podem abandonar os cuidados de prevenção própria e de terceiros.
União de forças
O Natal, para Geiza Alckmin, 53 anos, é sinônimo de magia, amor e união. Desde pequena, a economista nutre uma relação especial com esta época do ano. Graças ao espírito imaginativo da mãe e às tradições natalinas passadas de geração a geração, como as histórias fantasiosas sobre o Papai Noel e o costume de decorar um pinheiro — tirado direto do quintal da tia-avó —, Geiza guarda lembranças preciosas. “O momento da ceia era superesperado, uma verdadeira comoção. A gente fazia contagem regressiva e acendia todas as luzes da casa. Só podíamos iniciar a ceia depois de fazer uma oração”, conta.
Neste ano, a reunião familiar terá um formato mais intimista e, ao contrário do habitual endereço na capital paulista, terá como palco a residência de Geiza em Brasília. Na casa dela, aliás, os preparativos estão a todo vapor: luzinhas adornam a fachada, bolas coloridas compõem as paredes e um presépio gigante ocupa o hall de entrada.
Os ânimos para a noite de Natal, por sua vez, estão abalados por dois motivos: o primeiro é a pandemia do novo coronavírus, que obrigou que a quantidade de convidados fosse reduzida, e o segundo foi a morte recente do pai de Geiza. O acontecimento foi inesperado e reforçou a urgência do núcleo familiar mais próximo de se unir para recarregar as forças. “Nós precisamos estar juntos e nos fortalecer nesse momento de dor. Se nos juntarmos, vamos ter mais força para suportar essa perda e seguir em frente”, desabafa.
Apesar do infortúnio, Geiza ainda está motivada para o Natal e com esperança no propósito divino. “Eu acho que, este ano, Deus vem falar mais nos nossos corações que tem um propósito maior na nossa vida. Eu acredito que, se nós finalizarmos e começarmos o ano recarregados por essa energia e sentimentos positivos, podemos nos abastecer para ter um ano promissor.”
Culto ao que passou
O processo de luto faz parte dessa época de passagem de um ano para outro. Segundo a psicóloga Rebeca Potengy, as festas de fim de ano são, simbolicamente, um ritual em que as famílias se reúnem para elaborar perdas. “A família é um suporte afetivo para que a gente assimile algumas dificuldades subjetivas. A sociedade como um todo está vivendo um luto coletivo. Alguns de forma direta, porque perderam parentes, mas quase todo mundo conhece alguém que foi atingido pela covid-19 e teve algum tipo de complicação”, esclarece.
Por isso, devido à impossibilidade de se encontrar com os familiares no Natal, perder esse suporte familiar, em um momento tão difícil, é um desafio. “As pessoas se reúnem para, de alguma forma, poderem reverenciar essas pessoas que partiram do nosso sistema familiar. E, como este ano elas não vão poder se reunir, será mais difícil elaborar essa perda, e o processo de luto também será comprometido”.
Os efeitos dessa conjuntura estão sendo sentidos nos consultórios de psicologia. De acordo com Rebeca, o fato de a procura por consultas estar maior e de as pessoas estarem mais melancólicas durante este período é uma tendência natural. Logo, o Natal adquire mais importância do que uma simples “festa de fim de ano”. Ele é um acontecimento essencial para a superação de dificuldades e para o entendimento de que um ano se passou e que, com ele, um novo ciclo se inicia.
Como uma alternativa para esse cenário que se apresenta, a psicóloga recomenda que as pessoas ressignifiquem esses processos de uma forma mais individual, sem precisar estar lado a lado de quem ama.“O momento atual pede que estejamos mais introspectivos. Nós temos recursos para trabalhar essa melancolia de uma forma mais introspectiva. Podemos trabalhar no processo de ressignificar essas pessoas importantes, ter saudade e lembrar delas de uma forma isolada, entendendo o lugar que exercem, mesmo a distância”.
Estando perto ou longe, sempre há como celebrar e expressar amor por aqueles com quem se constrói laços eternos: a família.
Plano interrompido
Todo ano, a família da produtora Sabrina Tosi, 24, reúne-se para celebrar o Natal. Este será o primeiro na vida em que não passará com os pais. Normalmente, a família, formada por cerca de 30 pessoas, faz um amigo-oculto para os adultos e outro para as crianças. Cada um leva um prato para compor a ceia. Cada ano, é na casa de um. No último, foi na dos pais dela. Família reunida, aglomerada, se abraçando, trocando beijos. Coisas das quais ela vai sentir falta.
Este ano, seria só ela, a irmã, o cunhado e os pais. Mas, se tem uma coisa que 2020 tem mostrado é que é difícil prever o amanhã. O plano foi estragado por um diagnóstico positivo de covid-19, pouco tempo antes da publicação desta reportagem. Sabrina está doente, isolada em casa.
Brasiliense que mudou para a capital paulista no início de 2019, viria passar o feriado com a família, pois considerou que o risco valia a pena. Ela manteria o isolamento até a viagem, tomaria todas as medidas necessárias no aeroporto. E, quando chegasse a Brasília, não abraçaria os pais, apesar da saudade.
Agora, ela precisa ficar mais isolada do que nunca. Morando com alguns amigos, não pode nem sair do quarto, até os resultados deles saírem. Se também estiverem infectados, fazem um isolamento conjunto e poderão passar o Natal juntos. Se não, ela ficará sozinha. Chateada, imagina que se sentirá sozinha, mas entende que é pelo bem da família. A tecnologia deve ser usada para aproximá-los um pouco e aliviar a tristeza.
Sabrina costumava vir a Brasília a cada três meses, mas a pandemia fez com que esse intervalo se prolongasse por bem mais tempo do que filha e pais gostariam, o que não é fácil. “Eu tinha optado por ir, para eles não se sentirem tão sozinhos e eu também não ficar aqui sem ninguém.” Mas o contexto mudou.
No início da pandemia, o pai teve uma pneumonia e ficou internado com suspeita de covid-19, o que assustou muito Sabrina. Ele esteve na unidade de terapia intensiva por alguns dias e não pôde receber visitas, até que a suspeita fosse descartada, o que finalmente aconteceu. “Foi uma sensação horrível, porque eu estava longe. A gente não sabia se era ou não, estava no início, chorei muito, passei mal de preocupação”, relembra.