Carros viram refúgios para famílias durante o isolamento social

Durante o isolamento social, os automóveis deixaram de ser um mero meio de transporte e se tornaram um local seguro de ver o mundo, nem que seja pela janela

Ailim Cabral
postado em 10/01/2021 19:51 / atualizado em 10/01/2021 20:19
 (crédito: Arquivo pessoal)
(crédito: Arquivo pessoal)

 

Além de todas as perdas e cicatrizes que a pandemia do novo coronavírus deixou, 2020 foi um ano em que aprendemos a viver estacionados. Quarto, sala e cozinha, antes refúgios de descanso e relaxamento, tornaram-se sala de aula e escritório. O lar, que inspirava saudades, em muitos momentos, ficou sufocante. E, para quem pôde manter o isolamento e o home office durante todo o ano, um aliado inesperado surgiu. O carro, antes somente meio de transporte, transformou-se em um oásis móvel, uma maneira de se isolar entre quatro janelas e enxergar o mundo externo por todos os ângulos.

A plataforma de inspiração Pinterest lançou, em dezembro, o relatório Pinterest Predicts que aponta algumas das tendências do ano passado e que devem se manter em 2021. Entre elas, as pesquisas dos usuários relacionadas aos carros chamaram a atenção. Segundo o relatório, a procura por encontros românticos no carro dobraram, enquanto a busca por cine drive-in e kits de emergência para automóvel subiram 190% e 60%, respectivamente.

Para a família do bancário Eduardo Benon, 33 anos, e da servidora pública Débora Benon, 32, nenhuma dessas tendências é novidade. Vanguardista no que diz respeito aos carros como instrumento de lazer, o casal tem uma longa história com viagens terrestres e com o Cine Drive-in, o qual eleva à categoria de “melhor cinema do mundo”.

Passeio cativo da família desde muito antes da pandemia, o Cine Drive-in é onde Eduardo e Débora se sentem mais confortáveis com os filhos, Marina, Theo e Estela Benon, de 12, 7 e 5 anos. Levando os próprios lanches e deixando as crianças confortáveis com travesseiros e cobertores no porta-malas, a família tem o hábito de assistir a todos os filmes em cartaz.

Primeiro, curtem os dois filmes infantis ou voltados para a família e, depois que os pequenos dormem, o casal aproveita o último filme, geralmente com temática adulta, para um momento a dois. Além de proporcionar esse arranjo único, Eduardo ressalta que, com uma família de cinco, seria difícil conseguir assistir a essa quantidade de filmes em um cinema tradicional sem estourar o orçamento.

“Nós amamos. Eu ia quando criança e, hoje, posso levar meus filhos. Além de tudo, somos bairristas. É a nossa paixão. A antes da pandemia, era o único drive-in ativo da América Latina, agora todos estão imitando”, brinca Eduardo.

Três a bordo

No isolamento, com três crianças com aulas on-line e dois adultos em home office, Eduardo conta que o carro virou também sala de reunião das mais exclusivas. É o único lugar possível para fazermos as chamadas sem uma criança surgindo na câmera ou falando alguma coisa quando o microfone estava ligado”, conta.

Em casa desde 12 de março, a família começou a sentir falta das viagens e dos passeios de fim de semana. Eduardo e Débora inovaram, criaram diversos roteiros de city tour particulares. Com uma cesta de piquenique ou passando em drive-thrus, fizeram roteiros cívicos, passearam pela orla do lago e, quando encontravam um lugar vazio e reservado, desciam para lanchar.

As viagens de carro, parte da realidade da família Benon desde antes de Marina nascer, sofreram adaptações. No início da pandemia, ficaram suspensas, mas conforme o tempo foi passando, eles resolveram buscar alternativas. Investindo em hospedagens particulares, como casas de campo no DF e Entorno, os Benon conseguiram escapar e aproveitar cachoeiras e espaços vazios na natureza aos fins de semana.

A viagem de férias da família, planejada desde o fim de 2019 e, claro, de carro, também precisou passar por uma grande adaptação. A família sairia de Brasília, passando por São Paulo, Foz do Iguaçu, Uruguai, Argentina e Paraguai, entre outros destinos que surgissem pelo caminho. Mas, para manter a segurança, diminuíram o roteiro, restringindo ao Brasil e às cidades pequenas e mais vazias, fugindo de aglomerações.

Eduardo, Débora e os filhos saíram de Brasília no dia 26 de dezembro e só voltam em 20 de janeiro. Investindo na hospedagem em casas de temporada reservadas somente para eles, vão conhecer Campos do Jordão (SP), a Serra Catarinense e cidades do Paraná. “Além da abstinência de viagens, sentimos que as crianças precisavam de um descanso, um lazer que as fizesse esquecer um pouco tudo o que estamos vivendo”, comenta Eduardo.

É possível acompanhar o passeio de férias da família, além de conferir uma infinidade de dicas de viagens de carro com crianças no perfil que criaram no Instagram (@3abordobr), dedicado a compartilhar a vasta experiência da família em aventuras terrestres.

 

Passeio inaugural

Acostumados a viajar de avião, os servidores públicos Karina, 45 anos, e Jorge Oliveira Castro, e as duas filhas, Maria Eduarda, 17, e Maria Fernanda Castro, 11, viveram em 2020, pela primeira vez, a experiência de fazer uma longa viagem de carro. Com passagens compradas para Santa Catarina, a família viu os números de contaminação subirem e resolveu mudar os planos.

“Quando compramos as passagens, tínhamos a ilusão de que as coisas estariam melhores em dezembro. Faltavam duas semanas para a viagem, não conseguimos remarcar e acabamos perdendo. Isolados desde março, escolhemos manter a segurança, tanto a nossa quanto a dos outros”, comenta Karina.

Rigorosos na quarentena, sem ver quase ninguém desde março, tendo encontrado apenas alguns familiares de longe e de máscara, Karina e Jorge viram a necessidade de oferecer um respiro para as filhas.

Pensando nas possibilidades mais seguras e considerando que a região inicialmente escolhida estava com números altos de contaminação e medidas como toque de recolher, a família resolveu não só abandonar o transporte aéreo, mas mudar também o destino das férias. Foram dois dias e 1.500 quilômetros de estrada até o tão sonhado descanso na Bahia.

A data do passeio também mudou em virtude da pandemia. Para fugir da aglomeração das férias, a família viajou um pouco antes do Natal e voltou para passar o ano-novo em casa. As opções de hospedagem também foram adaptadas para a realidade de 2020. Em vez de hotel ou resort, como estavam habituados, escolheram alugar uma casa. Todas as refeições foram feitas na cozinha da casa particular, nada de restaurantes ou contato com outras pessoas.

Acampamento sobre rodas

O carro permitiu ainda que a família escolhesse as praias mais desertas para explorar o litoral. “Nós passamos a viagem nos chamando de caçadores das praias desertas. O carro nos permitiu essa liberdade e, em quase todos os dias, encontramos praias só para a gente”, conta Karina.

Fugindo dos pontos mais populares, a estrutura para lanches e o conforto também ficaram por conta do carro. Segundo Karina, a família criou uma espécie de acampamento dentro do veículo, com tudo que pudessem precisar. Guarda-sol, toalhas, cangas, cadeirinhas de praia e um cardápio diferenciado em caixas térmicas tomaram conta do porta-malas.

Jorge acrescenta que o carro daria a liberdade para que a família pudesse voltar para casa, caso alguém adoecesse ou acontecesse algum imprevisto. O trajeto, planejado com paradas estratégicas apenas para abastecimento e para usar o banheiro, também se tornou parte da diversão.

O servidor gosta de contar histórias para a mulher e as filhas e aproveitou o tempo juntos para compartilhar conhecimento. As meninas criaram uma playlist musical poderosa e baixaram filmes e seriados no computador, mantendo toda a família entretida. “Foi muito gostoso, superagradável. Gostamos de passar o tempo juntos e foi uma experiência maravilhosa que vamos repetir”, afirma Karina.

E a viagem teve até uma parada inesperada, graças à liberdade proporcionada pelo carro. Na volta para casa, a família passou por Diamantina (MG) e resolveu parar e conhecer a cidade.

Com a ida para o Sul cancelada este ano, Santa Catarina virou o destino da próxima aventura terrestre da família, que pretende explorar mais os estados brasileiros. “Fazemos questão de ir de carro, aproveitando a paisagem e a beleza da estrada, conhecendo lugares diferentes e criando essas memórias afetivas tão boas com nossas filhas”, completa Karina.


Um enlace para as telas de cinema

Inaugurado em 1973, quando a modalidade era tendência, o Cine Drive-in de Brasília passou muitos anos reinando absoluto no Brasil e na América Latina. Com a pandemia e as medidas de isolamento e distanciamento necessárias, esse tipo de cinema voltou a fazer sucesso. Enquanto os clientes cativos do Cine Drive-in brasiliense ficaram até com ciúmes ao ver o seu cantinho com filas de carro intermináveis, algumas outras alternativas surgiram pela cidade, mas nenhuma com a mesma estrutura.

Além de fazer muito sucesso para quem precisava sair de casa e se desligar da realidade por algumas horas com bons filmes, o Cine Drive-in começou a ser procurado por igrejas, shoppings e até mesmo imobiliárias e concessionárias para eventos diferenciados, nos quais os convidados pudessem permanecer em seus veículos.

A sócia-administradora do Cine Drive-in, Marta Fagundes, conta que o ano foi surpreendente para o cinema. No início da pandemia, depois de cerca de 40 dias sem funcionar, retomamos os trabalhos com as regras de segurança e público reduzido para que se mantenha uma vaga de distância entre cada veículo. “Quando reabrimos, com apenas 200 vagas, achamos que não teria muito público. Foi uma surpresa imensa ver as filas enormes na nossa portaria”, revela.

Com a casa cheia todas as noites e a visibilidade, Marta viu o espaço ser mais valorizado não só pelos clientes, mas também pelas distribuidoras e pela indústria cinematográfica no país. Com diversos lançamentos ao longo do ano, a administradora acredita que as pessoas passaram a enxergar o grande potencial do Cine Drive-in. “Este ano, tivemos até dificuldade de encaixar todos os filmes que as distribuidoras queriam passar, foi realmente inesperado e interessante”, comenta Marta.

Além dos filmes, a partir de maio, Marta começou a receber propostas diferenciadas, como formaturas, eventos de dança e até casamentos. “Foi muito bacana, as pessoas gostaram muito e, para nós, poder ser esse espaço seguro que proporcionou — e proporciona — alegria em um ano tão difícil é um privilégio”, afirma.

Do telão

O vendedor Pedro Henrique Marques de Souza e a instrutora de inglês Maria Eduarda Santos de Melo Santana de Souza foram um dos casais que escolheram se casar ao ar livre, no Cine Drive-in, com os convidados dentro de seus veículos, assistindo às bodas pelo telão.

Para o casal, o cinema é uma novidade. Apesar de terem nascido em Brasília e saberem da existência do local, só conheceram o Cine Drive-in em 2020, em eventos promovidos pela igreja que frequentam. E se surpreenderam ao saber que ele já tinha sido palco de um casamento.

Noivos desde 31 de dezembro de 2019 e frustrados pela impossibilidade de realizarem o sonho do matrimônio em 2020, interessaram-se pela ideia de imediato. Em quatro meses, o planejamento foi feito e, há um mês, Maria Eduarda e Pedro se casaram sob os olhares amorosos dos amigos e familiares.

Para Maria Eduarda, o mais especial foi poder se casar com o avô presente na cerimônia. “Antes da pandemia, almoçava com ele todo sábado e eu não o via pessoalmente desde março. Vê-lo de longe, de dentro do carro, compartilhando esse momento com a gente, foi muito importante”, emociona-se a recém-casada.

A avó de Pedro, assim como outros familiares e amigos de grupos de risco. também puderam comparecer ao casório. “Algumas pessoas estranharam, até questionaram se era verdade, mas, no fim, todo mundo aproveitou e gostou. Foi a nossa forma de reunir quem amamos de maneira segura para todos”, comenta Pedro.

Agora, o Cine Drive-in se tornou um espaço especial para o jovem casal, que pretende passar muitas de suas noites de encontros curtindo filminhos no conforto do próprio carro, no mesmo lugar em que uniram suas vidas.

Notícias pelo celular

Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.


Dê a sua opinião

O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.

  • Eduardo, Débora e os filhos, Marina, Theo e Estela, transformaram o carro em segunda casa
    Eduardo, Débora e os filhos, Marina, Theo e Estela, transformaram o carro em segunda casa Foto: Arquivo pessoal
  • Fotos: Arquivo Pessoal
Karina e as filhas, Maria Eduarda e Maria Fernanda: férias diferentes, com viagem para a Bahia de carro e hospedagem em casa
    Fotos: Arquivo Pessoal Karina e as filhas, Maria Eduarda e Maria Fernanda: férias diferentes, com viagem para a Bahia de carro e hospedagem em casa Foto: Arquivo pessoal
  • O tão esperado
    O tão esperado "sim" de Pedro Henrique e Maria Eduarda foi transmitido pelo telão do Cine Drive-in Foto: Arquivo pessoal
Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação