Carregada de significado, a palavra representatividade ganhou proeminência mundo afora e, como consequência natural, os movimentos em direção à valorização das diferenças se intensificaram. No universo da moda, padrões e estereótipos de beleza têm sido desconstruídos, aos poucos, dentro e fora das passarelas. Os novos tempos colocam em evidência modelos reais e realçam a beleza genuína, sem distinção de raça, tamanho e idade.
O booker nacional da agência de modelos Scouting Brasília, Marthan Araujo, tem notado essa transformação no mercado da moda. “De uns anos para cá, o perfil dos modelos mudou muito. Nunca imaginei que, no meu casting, ia ter um número tão grande de todos os tipos de perfis. A busca aumentou bastante. Até nas grandes grifes e marcas, pessoas de todos os tipos passaram a ganhar espaço. Daqui para frente, é isso que vai ser valorizado.”
Para ele, essa reconfiguração é um reflexo das mudanças que a sociedade está vivenciando. “Estou gostando bastante dessa mudança do mercado da moda, acho muito importante. Hoje, as marcas estão investindo em modelos que representam a sociedade e o contexto em que vivemos.”
Imagem e identidade
Para a consultora de imagem e estilo Cáren Cruz, a caminhada só começou, e as modificações em curso ainda precisam ser intensificadas. “Ainda há erros, deslizes, tentativas nesse universo, mas há, acima de tudo, uma pressão para que uma mudança significativa seja de fato gerada. E o mercado da moda, que até então seria o berço ditador, hoje se esforça para caminhar na mesma revolução social, diante de um cenário que até então não prezava pela individualidade, liberdade e respeito às diferenças”, analisa.
A tendência de quebra dos padrões está influenciando até mesmo a identidade de marcas, como é o caso da grife Fenty, da artista pop e empresária Rihanna. Desde o lançamento da label, pessoas com mais de 60 anos, deficientes visuais, modelos plus size e de diferentes etnias dominam a cena dos desfiles e campanhas publicitárias, o que demonstra que o conceito “imagem real” permeia cada vez mais a indústria da moda.
A Calvin Klein é outra marca de peso que tem trazido representatividade. Em 2019, a campanha I speak my truth (Eu falo minha verdade, em livre tradução) contou com a participação de personalidades pop de diferentes fisionomias e estilos, exaltando a mistura de identidades. Já em 2020, a campanha de orgulho da Calvin Klein foi protagonizada pela modelo negra e trans Jari Jones.
A consultora de imagem e estilo acredita que o modo como a pessoa se veste precisa refletir quem ela é. “Existem processos da linguagem não verbais que podem ser usados a favor daquele indivíduo. Nós somos julgados o tempo todo, biologicamente, socialmente, por uma série de fatores. Mas, quando sabemos qual é a leitura que os outros podem fazer sobre nós em cima desse código de vestimenta e tudo o que a gente acrescenta ao nosso corpo e rosto, a gente pode usar isso ao nosso favor”, explica.
Feliz do jeito que é
Quem está exibindo com orgulho o seu "true self" ao mundo é a modelo plus size Daniela Padilha, 45. Há apenas dois anos, ela assistiu a uma reportagem sobre o concurso Miss Bariátrica e se sentiu motivada a retomar a carreira a que já se aventurou na adolescência. “Apesar de já ter uma idade mais madura, resolvi me inscrever para uma seletiva de modelos com quase 200 candidatos, entre homens e mulheres. Eu sempre gostei de modelar. Independentemente de estar ou não na profissão, sempre amei fotografar e trabalhar com a imagem”, conta.
Na época, ela já tinha sido submetida a uma operação para perder peso. Contudo, a razão para a cirurgia não foi por desejar ser magra, mas por querer voltar a ter qualidade de vida, pois o sobrepeso estava trazendo problemas para a saúde dela. Por outro lado, a relação de Daniela com o próprio corpo sempre foi repleta de aceitação.
Definida como “um caso atípico que precisa ser estudado”, nas palavras de amigos e familiares, a modelo tem autoestima para dar e vender. “Sempre fui muito feliz e tive a autoestima elevada, apesar do sobrepeso. Sempre fui vaidosa também, nunca deixei de me maquiar, me produzir, colocar biquíni, nunca desci do salto. O sobrepeso nunca foi um empecilho ou um motivo de tristeza.”
Essa postura positiva foi o que conduziu Daniela às passarelas e ensaios fotográficos. Comentários preconceituosos e desconfortáveis, apesar de poucos, comparados aos elogios, já passaram por seu caminho. Porém, ela manteve a cabeça erguida e não se deixou abalar. “Deve ser muito difícil para as pessoas que são engessadas com aquele padrão de beleza entenderam que uma pessoa com sobrepeso não se esconde. As pessoas acham que eu deveria estar sentada, em vez de dar as caras e ditar na moda”, diz.
Também empresária, mãe, esposa e influencer digital, Daniela é uma representação das mulheres reais. “Muitas ainda se escondem atrás de roupas antiquadas por terem vergonha de expor o que elas acham que é fora do padrão: uma celulite, uma estria. Então, eu sinto que represento muito as mulheres reais, mulheres maduras, mães, casadas ou divorciadas, buscando a sua felicidade com aquilo que elas têm e são”, reflete.
A modelo considera uma grande honra poder mostrar para as pessoas que a beleza não é definida por padrões estereotipados. “As pessoas olharem para a moda e se enxergarem, sentirem-se representadas, é primordial, principalmente no universo feminino. Eu adoro modelar e, cada vez que recebo um convite, eu me sinto lisonjeada de poder mostrar o quanto é possível ser feliz do jeito que a gente é de verdade”.
Conquista de minorias
Escolhida para representar o Distrito Federal no concurso Miss Globo, a modelo Amanda Cristina, 21 anos, tem conquistado reconhecimento em nome de todas as mulheres negras. A estatura esbelta e a paixão pela profissão foram os fatores desencadeadores de sua jornada no mundo da moda. A princípio minoria nos camarins, hoje, Amanda já integra um grupo maior de modelos que fogem dos padrões de beleza convencionais.
“No começo, eu me comparava mais, por ser a única, a minoria, mas, aos poucos, fui me aceitando e procurando entender que quanto mais diferente você for das outras pessoas, melhor. A diferença tem que ser valorizada, senão acaba que vira um padrão, algo repetido, do mesmo jeito”, aponta.
O surgimento de novas oportunidades, no entanto, não impediu que desafios aparecessem no caminho dela. Uma vez, antes de um desfile, ela estava arrumando o cabelo no espelho e uma mulher comentou: “Nossa, que horrível”. Atitudes e falas discriminatórias fazem parte da história de Amanda, mas é a esperança em dias melhores que a impulsiona a continuar lutando em busca da realização pessoal e profissional.
“Hoje, as pessoas se interessam mais pela marca sabendo que ela se preocupou em trazer representatividade. As pessoas estão começando a reconhecer a importância disso. Aos poucos, as coisas estão mudando”, acredita. No futuro próximo, ela ambiciona cruzar as fronteiras internacionais e obter experiências em outros países. Afinal, quando se trata dos sonhos, o céu é o limite.
Fora dos padrões
O publicitário e modelo Diogo Duque, 45, guarda uma trajetória de 17 anos com desfiles e campanhas de marcas conceituadas. A largada na profissão de modelo foi dada em terras estrangeiras, mais precisamente, em Barcelona. Sob incentivo de duas primas produtoras de moda, ele fez algumas fotos e passou a buscar oportunidades de trabalho na cidade espanhola.
Após algumas experiências, tomou gosto pela coisa e voltou para Brasília, onde se vinculou à Agência Scouting. Para ele, a profissão de modelo não só se interliga com o papel de publicitário, como também é fonte de diversão. “O mais legal disso tudo é que eu me divirto bastante. Não é a minha atividade principal, mas eu gosto de fazer, não pela vaidade, mas, como sou publicitário, isso de alguma forma se conecta com o meu trabalho por trás das câmeras. E fazendo isso eu percebi que é divertido estar em frente às câmeras também”, brinca.
Tanto do ponto de vista do publicitário quanto do modelo, ele consegue observar que há mais espaço para acolher as particularidades de cada um. “As pessoas que estariam fora do padrão foram excluídas do mercado por muito tempo e, hoje, felizmente, a gente está tendo um outro olhar para isso. O mercado está dando oportunidade para essas pessoas se manifestarem, e manifestarem a sua beleza”.
Para Diogo, a quebra de estereótipos é positiva, até pelo fato de ele se enquadrar nesse grupo fora dos padrões: “Eu não tenho o abdômen trincado, nem o corpo bem delineado e musculoso. Mas acredito que cada um tem o seu espaço. Então, com o tempo, as portas foram se abrindo. Eu estou muito feliz com a minha idade, com a minha fase e acho que tem lugar para todo mundo.”
Apesar de já ter vivenciado situações em que se sentiu pressionado a ter um ideal de corpo, ele não se deixou sucumbir. “Aceitando a diferença, você torna as coisas mais naturais. O mundo é feito de pessoas reais, então é isso que importa. Hoje, cada vez mais importa que a pessoa saiba se expressar e passar o seu valor atrelado ao que a marca quer transmitir.”
O modelo divide a tendência do mercado da moda em dois extremos: de um lado, há quem ainda se apega aos padrões; e do outro, quem valoriza a beleza real. “Hoje, não há limite para que a pessoa atinja a perfeição imaginária. Com todos os procedimentos estéticos existentes, você acaba artificializando algo que deveria ser natural. O apego aos padrões vem perdendo força, enquanto no outro extremo, a beleza real vem ganhando mais força porque se identifica mais com o que a gente é”, analisa.
Narrativas diversas
A brasiliense Quero Melancia nasceu em 2013 com uma proposta “atemporal, democrática e durável”, como se define. A vontade de comunicar quem realmente era inspirou Thais Madureira a produzir as próprias roupas. Foi só questão de tempo para que as pessoas começassem a se interessar pelas peças e a marca fosse idealizada.
Para a estilista, o sentimento de fazer parte do mercado fashion, no entanto, é um misto de felicidade e angústia. A contradição advém do fato de que Thais não compactua com o consumo desenfreado nem com os estereótipos de beleza que coexistem na moda. “Esses padrões, de beleza imposta, a característica de tudo ser temporal e efêmero, tudo ser jogado fora, além de toda a exploração de matéria sustentável e de mão de obra me deixam muito aflita e me faz, às vezes, me sentir mal de estar inserida nesse mercado”.
Ela acredita que o antídoto para superar os aspectos negativos é dar palco a narrativas diversas. “É dar voz a narrativas que não sejam as que já estão padronizadas, que é a dos corpos gordos, negros, trans, fazer com que essas pessoas sejam vistas.” Trazendo modelagens que vão do PP ao GGG e usando modelos negras, plus size e mulheres trans para representar a marca, a Quero Melancia é uma tentativa de democratizar a moda.
Segundo Thais, o pertencimento é a palavra que deve reger o mercado, pois o que é vendido precisa contemplar as características da própria sociedade. “É essencial que o mercado da moda esteja disposto a fazer com que as pessoas se sintam pertencentes quando vão consumir alguma coisa, e não excluídas”, reflete.
* Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte
Notícias pelo celular
Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.
Dê a sua opinião
O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.