A adoção de animais é um ato de compaixão, especialmente quando eles se encontram em situação de vulnerabilidade e maus-tratos. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que só no Brasil existam mais de 30 milhões de animais abandonados, sendo cerca de 10 milhões de gatos e 20 milhões de cães. Mas, e quando acolher se torna uma compulsão e ocasiona problemas a todos os envolvidos?
Os hoardings ou acumuladores de animais são indivíduos que possuem um transtorno mental, registrado pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), que é caracterizado por uma compulsão em abrigar bichos sem ter condições financeiras, emocionais e habitacionais.
Segundo o professor de medicina veterinária do Ceub Lucas Edel Donato, apesar de a acumulação ser discutida desde a década de 1980, ainda há poucos trabalhos realizados sobre o tema no Brasil. “A acumulação começou a ser discutida entre pesquisadores e entre a própria saúde pública na década de 1980, quando os animais entraram no escopo do transtorno de acumular coisas, que até então se restringiam a objetos. Com a domesticação e aumento dos vínculos com os animais, os bichos acabaram participando desse processo”, explica.
Em 2019, o professor iniciou um projeto de iniciação científica para tentar conhecer a situação de Brasília em relação aos acumuladores de animais. Inspirados por um trabalho inédito realizado em Curitiba, o pesquisador e alguns alunos decidiram investigar a realidade da capital. A missão, no entanto, não foi fácil, devido à falta de evidências e informações para ter acesso a essas pessoas.
Perfil dos acumuladores
Utilizando estratégias de abordagem e com base em um guideline com perguntas específicas sobre a condição, eles conseguiram identificar alguns perfis de acumuladores, que no geral são mulheres acima de 50 anos com algum tipo de alteração mental. “Baseado nas perguntas, com o resultado adquirido pelas pontuações, é possível chegar a um denominador comum para identificar se a pessoa tem as características de ser um potencial acumulador”, afirma Lucas.
*Estagiária sob a supervisão de José Carlos Vieira
Um sinal de alerta
Psicoterapeuta e professor do Ceub, Carlos Augusto de Medeiros ressalta que o principal critério para identificar um acumulador é observar se a quantidade de animais dentro da habitação está interferindo nos demais aspectos da vida dela. Isso é um sinal de alerta para qualquer excesso comportamental.
Perdas de entes queridos, carências e forte sentimento de responsabilidade tendem a ser fatores desencadeadores do transtorno. “Também é comum que a pessoa adote um animal por se compadecer com o sofrimento dele, e quando ela se dá conta, não tem mais uma noção de quão realístico é adotar um novo bicho, então ela vai acumulando até se perder nesse processo. Acontece uma desvinculação com a realidade. A pessoa passa a acreditar que mais um não vai fazer diferença, quando na verdade já passou do limite há muito tempo”, acrescenta o psicoterapeuta.
Problemas do transtorno
Um dos maiores problemas relacionado à falta de condição estrutural para manter os animais é a transmissão de doenças. “Como essas pessoas não deixam o animal isolado e dão vacinas antes de introduzi-lo ao ambiente com os outros animais, devido à aglomeração de animais doentes com os saudáveis, a doença infecciosa é transmitida facilmente”, analisa Lucas. Os ambientes também tendem a ser insalubres, promovendo riscos de infecções não só para os animais, como também para os humanos.
Além disso, ele aponta que os bichos ficam estressados em razão da questão da dominação do território e da reprodução, o que gera sofrimento. No caso dos humanos, a vivência em um ambiente com condições alimentares e habitacionais precárias, somada à falta de interação social são os prejuízos centrais. “Mesmo que esses acumuladores tenham condições financeiras, tem uma condição de ambiente que não é propicia nem adequada para manter um indivíduo saudável”.
Adoção consciente
Para adotar um animal é necessário não só entender qual o papel que ele vai ocupar na vida da família, como também respeitar a personalidade e as necessidades básicas dele. “Quem adota um animal tem que ter o entendimento e a responsabilidade de que é um ser vivo. A primeira coisa que temos que fazer é uma análise sobre o lugar desse animal na nossa vida e se estamos dispostos a sacrifícios”, destaca Danyela Nardelli, diretora do Projeto Adoção São Francisco.
Danyela é uma das idealizadoras do Projeto São Francisco, uma ONG que abriga, em média, 120 animais no interior de uma chácara e oferece todos os cuidados necessários para o bem-estar deles. Além dos que ficam na chácara, o projeto também custeia, com ajuda de doações da comunidade, a permanência de animais em lares temporários.
Apaixonada pela causa animal, ela também acolhe seis cães e seis gatos dentro da própria casa. Segundo a administradora, o processo de acolhimento desses animais envolve paciência e amor. “É apaixonante pegar um animalzinho debilitado e repleto de traumas, porque ver o animal desabrochar do e voltando a confiar novamente no ser humano é a coisa mais linda do mundo”, relata.
Ela ainda argumenta que se a pessoa não consegue garantir dignidade de vida para os animais, então ela não pode acolhê-lo, o que é o caso dos acumuladores. “A gente entende que é um problema social, pois infelizmente, no nosso país, não existem programas voltados para acumuladores de animais. O acumulador até pode amar aquele animal, mas é um amor doentio, porque ele não oferece qualidade de vida para ele”.
Wellington Fabiano Soares, vice-presidente do Abrigo Flora e Fauna, que possui cerca de 800 animais sob cuidados e oferece auxílio à comunidade, acredita que a castração dos pets é um dos pontos cruciais para evitar a acumulação. “Muitas vezes o acumulador se torna acumulador por uma boa ação, mas como ele não castra o animal, o mesmo começa a se reproduzir e ai no fim a pessoa começa a ter tantos bichos que não consegue dar atenção e dar o que o animal precisa. Por isso, é essencial focar na castração”, diz.
Para o vice-presidente, ao pensar em adotar um animal é importante não só ter vontade, mas também estar disposto a promover bem-estar para o animal. “O essencial é adotar com o coração e não com os olhos porque o animal vai viver vários anos, é mais um integrante da família. Não basta ter só vontade, tem que querer dar qualidade de vida para o animal”, recomenda.
Amor incondicional
A coordenadora do Grupo de Estudos sobre Direitos Animais e Interseccionalidades (Gedai), Vanessa Negrini, tem sob tutela 13 gatos e quatro cachorros encontrados nas ruas. Depois de perceber que não tinha condições de abrigar mais bichos, ela parou de resgatar. “Hoje, não faço mais resgates, justamente porque sempre há o risco de você ter que ficar com o animal resgatado permanentemente e penso que estou no limite da minha capacidade pessoal para cuidar com responsabilidade dos atuais”, justifica.
Para ela, é preciso ter tempo para se dedicar ao cuidado dos animais. Sendo uma grande protetora e dona de um amor incondicional pelos bichos, ela defende que é preciso ser resiliente para defender a causa. “Quem entra na proteção animal precisa se fortalecer emocionalmente e saber buscar ajuda quando necessário. A demanda por resgate e situações extremas de abandono e violência são enormes. Por isso, o protetor precisa ter consciência de seu limite pessoal, sabendo que também precisa cuidar da própria saúde física e emocional para continuar ajudando os animais”.
Como solucionar?
Na visão do psicoterapeuta Carlos, o acúmulo de animais é um problema de saúde pública de competência do Estado. “Se a gente pensar no sentido macro, o Estado poderia diminuir drasticamente esses casos de acúmulo de animais se a proteção animal fosse realmente incentivada e patrocinada. O próprio Estado deveria incentivar mutirões de castração de animais em situação de rua e campanhas mais incisivas para diminuir o abandono dos animais e a adoção e compra de forma irresponsável”, pondera.
Além do suporte do Estado e da comunidade, como um todo, é essencial que o acumulador tenha atendimento terapêutico. Para Carlos, a partir do reconhecimento do problema, é preciso descobrir o sentido que a acumulação ocupa na vida da pessoa. “O que vai ser trabalhado na terapia é o desenvolvimento de outras formas de se relacionar com o ambiente para que essa posse de grande quantidade de animais perca espaço e a pessoa comece gradativamente a se desfazer deles, por meio de doações para instituições”
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Etapas para se tornar um acumulador, de acordo com o professor de medicina veterinária, Lucas Edel Donato:
1ª A etapa inicial do acumulador é a que a pessoa recebe os animais por uma demanda espontânea e entende que por uma questão moral, ele tem essa responsabilidade de cuidar desse animal;
2ª Na próxima etapa de evolução do acumulador, ele começa, além dessa relação de acolhimento, a ir atrás desse animal. Só que a diferença entre o primeiro e segundo, é que o primeiro ainda tem uma noção racional de que abrigar uma grande quantidade de animais pode causar danos e sofrimentos, enquanto na segunda fase essa noção deixa de existir.
3ª A terceira etapa piora ainda mais essa condição, é o caso mais grave. É quando a gente observa que os acumuladores ficam indiferentes à dor do animal, não se preocupam com cuidados veterinários e usufruem deles.
Obs: Segundo o professor, a maioria dos perfis está na segunda etapa, isto é, pessoas que perderam um pouco a noção de espaço, possuem um grande apreço pelos animais, mas não entendem que o recebimento deles está gerando risco tanto para elas, quanto para os bichos.