Na segunda Páscoa que passamos em isolamento social e lidando com todas as consequências da pandemia do novo coronavírus, a esperança e a renovação simbólica trazidas pelo feriado cristão são muito bem-vindas, independentemente de crenças religiosas. Em meio aos números assustadores da doença, são muitos aqueles que perderam familiares e entes queridos, às vezes mais de um, e também os que passaram pelo medo de contrair a forma grave da doença e, depois, pelo alívio de se recuperar.
Convivendo com tantas tristezas e incertezas, enxergar a luz no fim do túnel e encontrar forças para continuar pode ser um desafio, mas não é impossível. São muitos os exemplos de pessoas que passaram por grandes dores e, ao se agarrarem à fé, ao amor da família e à alegria de viver, conseguiram sorrir novamente.
Para a psicóloga Maria Clara Martins Pereira Fialho, da Caixa de Assistência dos Funcionários do Banco do Brasil (Cassi), o enfrentamento desse tipo de vivência é muito particular e cada indivíduo busca a sua maneira de lidar com as perdas. “Não existe uma receita ou forma única, mas buscar ajuda profissional, quando necessário, e dar tempo ao tempo são etapas importantes”, acredita.
Maria Clara ressalta que existem pessoas que são, naturalmente, mais resilientes para lidar com a perda ou mesmo com o choque de realidade ao se depararem com a fragilidade da própria vida. A psicóloga explica que as reações dos indivíduos, neste momento, estão relacionadas ao repertório emocional de cada um, que vai sendo formado desde a infância, quando começamos a enfrentar as pequenas perdas.
“A vida é feita de perdas e ganhos, sejam grandes, sejam pequenos, e, desde a infância e adolescência, vamos aprendendo a conviver com isso. As pessoas que valorizam mais os ganhos acabam tendo uma tendência a lidar melhor com as perdas significativas”, acrescenta.
Para ajudar tantas pessoas que estão lidando — algumas pela primeira vez — com grandes perdas, a Revista buscou histórias de pessoas que viveram sofrimentos significativos na pandemia e que, apesar da dor, conseguiram passar pela tempestade e enxergar o sol novamente.
Apoio incondicional da família
A programadora aposentada Eunice Franco Soares, 67 anos, passou pelo medo e pela dor de ver a mãe e o marido hospitalizados ao mesmo tempo com covid-19. Dias depois, enquanto sentia o alívio de ver a mãe saindo do hospital, ela chorava a morte do marido. Em julho de 2020, Eunice e o economista aposentado Alan Soares Miranda, 67, foram buscar a mãe da aposentada no interior de Goiás, para que ela ficasse em isolamento com eles. Mas ao chegar na casa de dona Esmeralda Vieira Franco, 87 anos, o casal começou a ter febre.
De carro, a família voltou para Brasília, onde Alan e dona Esmeralda foram internados. Depois de 20 dias em uma enfermaria, a mãe de Eunice foi liberada. Alan, que foi intubado logo que deu entrada, ficou 33 dias na UTI e não resistiu à doença.
Após 47 anos de casamento, Eunice lembra que, logo que o marido morreu, seu principal sentimento era de que não conseguiria continuar sem o amor de sua vida. “Eu nunca pensei que isso ia acontecer, minha esperança de que ele ia sair era muito grande, eu confiava plenamente”, recorda-se.
Eunice e Alan tiveram três filhos e sete netos. A família unida e amorosa foi fundamental para que a aposentada reencontrasse alegria em seus dias. “A solidão, pela pandemia, foi muito cruel no primeiro momento, a falta de contato com as pessoas, mas minha família me acolheu demais e me deu suporte.”
Logo que Alan morreu, os netos, tomando os cuidados necessários, fizeram um revezamento para que Eunice não ficasse sozinha. Um dos filhos, ao contrair a doença na mesma época, também se isolou na casa da mãe, e a companhia foi fundamental para a matriarca.
No entanto, Eunice comenta que, enquanto a família a estava “vigiando” para ter certeza de que estava tudo bem, ela evitava chorar na frente deles. “Chorava um pouquinho no banheiro. Depois de algumas semanas, percebi que precisava ficar um pouco sozinha para viver meu luto”, comenta.
Planos para o futuro
Quando se viu só e passou a encarar a sua nova realidade, Eunice viveu momentos de encontro consigo mesma e foi assim que, finalmente, aceitou e encarou o luto. “Eu fui realmente ao fundo do poço, quietinha e sem contar para ninguém. Depois de 20 dias de muita dor e sofrimento, eu me levantei de verdade.”
Os momentos compartilhados com os filhos e netos e o nascimento de mais um neto, em dezembro, foram devolvendo a Eunice a alegria e, apesar da saudade constante, a dor começou a dar tréguas. Ela aproveitou para renovar toda a casa para trazer novos ares. No começo, a aposentada revela que não conseguia pensar no dia de amanhã ou no futuro, mas o planejamento de um novo projeto a ajudou a dar sentido à vida. A casa ganhou até um ateliê para ela costurar.
A aposentada também ressalta o quanto suas orações foram importantes no processo de luto e que sua fé deu a ela a certeza de que a vida continua e que ela e Alan vão se reencontrar. “É muito consolador, e foi um ponto crucial na minha história. Quando eu achava que não ia conseguir, pedia a ajuda de Deus para me levantar, por minha família, e, na hora, eu sentia uma melhora no astral”.
Fazendo preces sozinha e com amigos por meio de chamadas de vídeo, a religiosidade foi também um incentivo ao estudo. Eunice passou a ler mais sobre sua crença e a participar de grupos de estudo on-line, o que ainda ajuda a combater a solidão.
A importância de viver o luto
A psicóloga Maria Clara Martins Pereira Fialho explica que a pandemia trouxe uma dificuldade no que diz respeito ao processo do luto pela impossibilidade das despedidas a que estamos habituados, como os velórios e enterros. “Esse nosso rito de despedida permite que se inicie o processo de aceitação. A impossibilidade do velório deixa uma lacuna no luto.”
Ela comenta que não é possível suprimir essa lacuna e é importante acolher o sofrimento da forma que as pessoas conseguirem elaborar essa questão. “Ficou mais difícil aceitar e entender, do ponto de vista emocional, que aquela pessoa se foi.”
A psicóloga Bettina Correa, do Grupo de Telemedicina Iron, acrescenta que a impossibilidade de ver o corpo ou dar um último adeus faz com que as pessoas preservem por mais tempo a sensação de que a qualquer momento a pessoa pode entrar pela porta de casa. Viver o luto, falar sobre o ente querido, chorar e se permitir sentir o que aparecer dentro de si são alguns aspectos do processo, porém, não existe uma receita ou forma única de lidar com as perdas e o luto. Só depois de se permitir vivenciar a perda é que se inicia o processo de aceitação.
A fé que sustenta
A aposentada Marly de Castro Silva, 76, teve um ano difícil em 2020. Ela perdeu mais de um ente querido para a covid-19. Entre parentes próximos e mais distantes, Marly calcula a morte de 15 pessoas nos últimos 12 meses. E, ainda assim, encontra forças para ter esperanças.
Em julho, veio o primeiro baque, uma das sobrinhas de Marly, Maria Maciel da Silva, 57 anos, não resistiu às complicações da covid-19 e morreu. A aposentada conta que tinha Maria como uma filha. “Ela morou comigo na adolescência, me ajudou a cuidar dos meus filhos e eu sou a madrinha da primeira filha dela”, conta.
Antes da pandemia, as duas se encontravam pelo menos uma vez por semana e se falavam todos os dias por telefone. Marly lembra que foi muito doloroso não poder se despedir de forma adequada, consolar e ser consolada pessoalmente pelo restante da família.
Buscando suporte no marido e nos três filhos, principalmente na filha que mora com ela, Marly se agarrou ainda mais na fé, que dividia com a sobrinha. Pouco tempo depois, o marido de uma das irmãs dela também foi vítima da covid-19.
Sem se deixar abater
Marly admite que todo o processo de luto e recuperação não estava sendo fácil, mas que suas orações diárias e idas ocasionais à igreja, com máscaras e medidas de proteção, a ajudaram a se manter firme. Em outubro, porém, Marly viu uma irmã sucumbir ao câncer de mama.
Em meio a tantas perdas, a aposentada conta que começou a ter algumas dificuldades em administrar os sentimentos. “É um abalo muito grande para qualquer pessoa. Além do fortalecimento das missas diárias que eu acompanho, procurei também uma psicóloga.”
Toda semana, Marly tem uma sessão on-line com a profissional. Ela conta que antes tinha resistência à terapia, mas uma das filhas a incentivou. “Foi muito bom, me faz muito bem. Mesmo com todo o apoio da oração e de Deus, é importante buscar todos os meios para que possamos nos sentir melhor”, afirma.
Ministra de eucaristia, Marly acredita que buscar a Deus é o que a ajuda a continuar vivendo bem e em paz, mesmo com tantas dores. “Eu me emociono com a delicadeza de Deus na minha vida. Em nenhum momento, eu me desesperei ou desabei. A fé me sustenta e levanta”.
E Marly não deixa nunca de ter esperança. Ela e o marido já se imunizaram e ela enxerga a vacina como uma das soluções para que cada vez menos pessoas passem pela dor que ela viveu. Na Páscoa, a religiosa vai se reunir apenas com os filhos e o marido e se concentrar nas preces para que possamos sair dos momentos mais difíceis da pandemia.
Um alerta para a saúde
Diferentemente de Eunice e Marly, o aposentado Antônio Fernando da Costa, 74, teve a sorte de não perder pessoas amadas na pandemia, mas ele mesmo deu um susto nas filhas e na namorada. Em outubro do ano passado, Antônio começou a apresentar alguns sintomas da covid-19, mas não se sentia tão mal e não queria ir ao hospital. Com o avançar da doença, Antônio cedeu às insistências e foi até a emergência. No hospital, ao ser atendido, Antônio teve febre pela primeira vez e foi imediatamente internado.
“Foi uma sorte. Eu não tive falta de ar nem febre antes. Quando fiquei mais grave, já foi no hospital, recebendo atendimento”, lembra. Antônio foi admitido e, no dia seguinte, precisou ser encaminhado para a UTI, onde passou 13 dias.
Com 50% dos pulmões comprometidos, foram 15 dias no hospital até que Antônio se recuperasse o bastante para voltar para casa. Sentindo muito cansaço e ficando ofegante em algumas atividades cotidianas, como o banho, Antônio foi orientado a fazer uma série de exercícios respiratórios.
Em dezembro, com foco em se manter saudável, procurou um pneumologista e começou a fazer fisioterapia. Passar pela covid-19 e vencer uma doença que tem feito tantas vítimas foi um alerta para Antônio, que começou a fazer atividade física e cuidar mais da saúde, comprando até mesmo um oxímetro para monitorar a respiração todos os dias.
Sempre otimista
Considerando-se um caso de sorte, apesar da internação, Antônio revela que seu modo de pensar o ajuda a vencer dificuldades. “Já tive três acidentes de carro e, mesmo na UTI, nunca pensei que ia morrer. Eu amo a vida, me considero um felizardo e uso minha força de vontade para me ajudar a vencer os obstáculos”, afirma.
Casado duas vezes, pai de três filhas e avô cinco vezes, Antônio chega a afirmar que, quando descobriu que a sonolência e falta de ânimo eram resultado do coronavírus, sentiu um pouco de alívio. “Não queria estar doente, claro. Mas saber que aquilo não era meu, mas, sim, um sintoma me aliviou, pois sempre fui muito ativo e não queria perder isso”, explica.
Aposentado há mais de 30 anos, ele adora viajar de carro por todo o Brasil e divide o hobby com uma das filhas. Os dois seguem ansiosos para retomar a rotina viajante. Um dos segredos de Antônio para não ter perdido a esperança era pensar em todas as coisas que ainda tem a fazer. “Eu fico em casa, mas não fico parado nunca, mexo no computador, vejo filmes, acordo cedinho, me distraio. Evito o noticiário para não ficar para baixo e tenho fé de que tudo vai melhorar.”
A vida pós-covid
As psicólogas Maria Clara Martins Pereira Fialho e Bettina Correa mencionam que grande parte dos pacientes passam por um processo de ansiedade muito intenso a partir do momento que recebem o diagnóstico positivo para a covid-19, perguntando-se de que forma seus organismos vão reagir ao vírus. Após a recuperação, o sentimento que predomina é de alívio e gratidão.
“Vejo muitos pacientes falando sobre a vontade de se cuidar, valorizar mais vida e ter hábitos mais saudáveis. Em alguns outros, surge também um pouco de culpa pela recuperação enquanto entes queridos morreram, mas esse processo, até certo ponto, também é natural”, comenta Bettina.
Segundo ela, a busca por terapias e crenças religiosas tem se mostrado muito frequente em pessoas que tiveram a doença ou que perderam alguém. A psicóloga ressalta a importância de encontrar um propósito, mas também da presença, mesmo que a distância, da família e dos amigos.
Além dos efeitos nos afetados diretamente pela covid, Maria Clara ressalta a importância de todos cuidarmos da saúde mental, uma vez que a pandemia é um acontecimento inédito para a população. “Temos visto um aumento nos casos de ansiedade, de depressão, de pânico e fobias de sair de casa, De certa forma, todos vivemos isso em graus diferentes. É importante estar atento e buscar ajuda quando isso se torna mais intenso”, recomenda.
Notícias pelo celular
Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.
Dê a sua opinião
O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.