Especial

Inclusão on-line: os desafios educacionais dos alunos especiais

Aprender a estudar a distância foi um dos inúmeros desafios impostos pela pandemia. E, quando se trata de alunos especiais, eles se tornam ainda maiores

Para Marcíria Castellani, o fato de Pedro não estar indo à escola dificultou o processo de socialização do filho
 -  (crédito: Arquivo pessoal)
Para Marcíria Castellani, o fato de Pedro não estar indo à escola dificultou o processo de socialização do filho - (crédito: Arquivo pessoal)
Correio Braziliense
postado em 02/05/2021 08:00 / atualizado em 30/08/2023 16:21

Quando o alarme do despertador toca, é hora de acordar, lavar o rosto, escovar os dentes e ir para a escola, mas sem sair de casa. Para boa parte dos estudantes, assim tem sido a rotina desde que a pandemia começou. Ligar o computador ou o celular virou a forma de se encontrar com os professores e os colegas, e o aviso de “gravação iniciada” tornou-se o novo sinal de que uma aula começou. Para alguns alunos, porém, o desafio de se adaptar a esse novo contexto é ainda maior, uma vez que é preciso ter que lidar com um outro obstáculo, para além dos impostos pelo isolamento: a acessibilidade.

Estudantes com algum tipo de deficiência, seja física, intelectual, visual, auditiva ou múltipla, enfrentam uma luta diária no caminho para a aprendizagem. É que, na escola, existiam profissionais capacitados para atender cada tipo de especificidade e para criar laços, pedagógicos e afetivos, com o aluno. Em casa, nem sempre os familiares têm a mesma sensibilidade para ensinar as crianças ou tempo para despender com elas. Além disso, era no ambiente escolar que a maioria desses alunos tinha a chance de vivenciar os mais diversos tipos de experiências, fundamentais para o desenvolvimento cognitivo e social.

“Meu filho fica ocioso em quase todo o horário que deveria estar na escola. Esse tempo, na maioria das vezes, ocasiona comportamentos inadequados, fica ainda mais sozinho e não busca outras pessoas da família para interagir ou brincar”, relata a assistente social Marcíria Castellani, de 44 anos, mãe do Pedro, 7, com o laudo de Transtorno do Espectro Autista (TEA). “Ele é uma criança não verbal, com baixo nível de autonomia, necessitando de supervisão constante. Por mais que os pais busquem informações e que a escola se esforce para realizar a orientação à família, não se compara ao olhar e à atuação do professor no processo de ensino.”

Antes da pandemia, Pedro frequentava a escola pública diariamente, com algumas terapias no contraturno. Segundo a mãe, ele estava bem adaptado e era possível perceber aprendizados significativos, como a intencionalidade na comunicação, o reconhecimento de alguns números, cores, letras e, principalmente, um avanço no aspecto social, percebido por meio da relação com os outros. “Pegava a mochila em sinal de satisfação”, conta Marcíria.

“Esse momento de ausência de aula presencial tem comprometido muito o desenvolvimento do Pedro e, acredito, de outras tantas crianças com autismo, que, por vários motivos, não conseguem participar e ter o devido aproveitamento de aulas remotas. Espero que a vacina chegue logo a todas as pessoas e que o retorno presencial seja seguro e o mais breve possível”, completa a assistente social.

Ensino especial no DF

Nas escolas públicas do Distrito Federal, os alunos com deficiência são matriculados nas classes especiais ou nas classes comuns inclusivas. Nas primeiras, há um número bem reduzido de estudantes e o conteúdo é direcionado às especificidades de cada aluno. Nas segundas, o número de estudantes também é reduzido e eles contam com um Atendimento Educacional Especializado, realizado pelas salas de recursos, onde os profissionais elaboram e organizam recursos pedagógicos e de acessibilidade dos estudantes à aprendizagem.

Desde que o ensino remoto foi instituído para conter a disseminação do novo coronavírus, esses alunos continuam recebendo o apoio especializado por meio de vários canais, como

WhatsApp, contatos telefônicos, e-mail e aulas on-line pelo Google Meet. Os que não têm acesso à internet ou não conseguiram se adaptar às atividades remotas podem buscar o material impresso preparado pelos professores na escola.

No entanto, algumas perdas em relação ao presencial, infelizmente, são perceptíveis. “Os estudantes com deficiência encontravam nas unidades escolares oportunidades de interações sociais e aprendizados, muitas vezes vivenciadas quase exclusivamente nesses espaços”, explica Vera Barros, psicóloga e subsecretária da Educação Inclusiva e Integral.

O papel da escola, que sempre foi fundamental na formação de qualquer pessoa, agora se faz ainda mais necessário. Além de educar, ensinar e acolher, é preciso também entender as necessidades de cada aluno e adaptá-las ao cenário que estamos vivendo. Segundo Vera, uma das grandes questões vivenciadas pelos profissionais de educação é sobre atingir todos os estudantes, considerando suas individualidades e dentro de seus contextos sociais e domésticos, para elaborar estratégias pedagógicas adequadas às suas condições.

A boa notícia é que, apesar da carência gerada pelo ensino a distância, os resultados alcançados têm sido satisfatórios, na medida do possível, o que mostra um verdadeiro interesse e determinação, tanto dos alunos quanto das famílias e dos professores. “A adesão às atividades remotas tem sido extremamente favorável, atingindo índices de participação de quase 98% dos estudantes com deficiência”, pontua Riane Vasconcelos, diretora de Educação Inclusiva.

Driblando a saudade

Assim como Pedro, que tem autismo, para a aluna Emanuelle Lacerda Ferreira, 12 anos, com síndrome de Down, ir para a escola significava muito mais do que só a sala de aula. No Centro de Ensino Fundamental 08 de Taguatinga, ela fazia aulas de balé, as quais adorava e podia estar perto das amigas e da professora. A mãe da menina conta que esse tipo de contato, junto com o atendimento do ensino especial, tem deixado um grande vazio na rotina da filha.

“Ela gostava muito de ir para o colégio. A maior dificuldade é que a criança com síndrome de Down não consegue acessar a plataforma sozinha. Fica complicado, porque eu trabalho fora e, para fazer as tarefas, preciso ficar sentada do lado dela, ajudando-a”, desabafa a técnica de enfermagem Adenildes Lacerda, que diz estar fazendo o possível, junto com a professora, para que o aprendizado de Emanuelle não seja prejudicado. “Ela está aprendendo, não igual aprendia antes, mas está conseguindo no próprio ritmo.”

A médica Natália Clarice Meneghel, especialista em neurologia infantil, explica que, no período de pandemia, houve um aumento de transtornos neuropsiquiátricos nas crianças, como ansiedade, tíques motores, agressividade e depressão. Além disso, o tempo excessivo em telas pode ocasionar prejuízos variados, tanto na concentração quanto na qualidade do sono, por exemplo.

“Durante o período fora das telas, o ideal é que a criança vá brincar ao ar livre. Correr, jogar bola, brincar de esconde-esconde, ler gibis, etc. As brincadeiras infantis ajudam no desenvolvimento motor, social e emocional das crianças. No caso dos adolescentes, estar em contato com a natureza ajuda muito também”, acrescenta a profissional.

Outro olhar

Para o estudante Luís Eduardo Fonseca, de 14 anos, com perda total da visão, lidar com o ensino remoto não tem sido tão difícil, uma vez que o recurso do leitor de tela o ajuda a realizar todas as atividades da plataforma de ensino. No entanto, ele sente falta da interação com os professores, dos momentos com os amigos e de tudo o que o ambiente escolar proporcionava.

“Antes da pandemia, eu sempre tentava participar de tudo. Minha vida era bem ativa, participava de torneios de xadrez, do grupo da igreja, dos atendimentos de altas habilidades de manhã e ficava na sala de recursos à tarde”, relata Luís, que estuda no Centro de Ensino Fundamental 15 (CEF 15) de Taguatinga. “Em geral, a plataforma on-line é bem acessível, mas, para a gente que é cego, esse contato com as pessoas é muito importante e faz muita falta”, desabafa.

Para a mãe de Luís Eduardo, Janaína Chaves Fonseca, de 47 anos, apesar de todas as dificuldades impostas pelo ensino remoto, ela e o filho estão fazendo de tudo para que os dias sejam mais leves. “O ideal seria o presencial, mas, no ano passado, todas as notas do Eduardo foram de 8 para cima”, diz a mãe, com orgulho. “Eu falo para ele que as notas devem ser de acordo com o potencial que ele tem, nem mais nem menos, e que ele dê o melhor de si. De vez em quando, tenho que dar uma apertada, porque sabe como é adolescente, deixa tudo para a última hora”, brinca. Além de se esforçar para manter o bom rendimento escolar, Luís Eduardo é um jogador de xadrez nato. Foi campeão juvenil em 2017 e, hoje, participa de vários torneios on-line, ao lado de competidores com ou sem deficiência visual.

Estar mais tempo em casa também abriu caminhos para que o estudante descobrisse um novo hobby: youtuber. No canal Olhar de um cego, Luís Eduardo fala sobre temáticas variadas e se mostra animado para continuar produzindo conteúdo: “Visão e olhar são coisas diferentes. Olhar é algo muito mais aprofundado sobre qualquer tema”, explica o jovem, sobre a escolha do nome com que batizou o canal. “No futuro, quero ser um comunicador”, diz.

Janaína explica que o filho se adaptou rápido ao novo contexto e muitas coisas boas aconteceram na vida dele nesse meio tempo. Por exemplo, antes, todo o material do estudante era em braile; hoje, ele consegue usar o notebook e o celular para realizar as tarefas com total independência.

O jovem também tenta assimilar o saldo positivo que o ensino remoto trouxe: “Antes, se eu precisasse mandar alguma coisa por e-mail eu não saberia, e agora eu sei. Também consegui vários amigos on-line, que também são cegos e que também gostam de tecnologia, como eu, e isso me ajudou muito. Hoje, eu tenho mais preparo, porque antes temia muito não conseguir”, avalia Luís Eduardo.

Estimular sempre

De acordo com a psicóloga Ana Amélia Ribeiro de Almeida, especialista em TEA e comportamento, para que o desenvolvimento da criança com deficiência seja o melhor possível, é preciso ter, primeiro, uma boa equipe terapêutica, e isso vai depender de cada deficiência. Segundo a profissional, a família e a escola são partes fundamentais dessa equipe, uma vez que a criança ou o adolescente sempre estão inseridos num contexto, expostos o tempo todo a estímulos. Por isso, todos devem seguir o mesmo objetivo e falar a mesma linguagem, para que esses estímulos tornem-se habilidades concretas.

“A estimulação, quanto mais precoce, mais eficiente será. Colocar a educação como prioridade é fundamental quando se trata de desenvolvimento, principalmente o desenvolvimento atípico, que é o caso das crianças com deficiência. É preciso ter um olhar bem direcionado e muito cuidadoso para minimizar os prejuízos do ensino a distância”, explica Ana Amélia.

Para a psicóloga, a retomada ao ensino presencial, quando acontecer, no caso da rede pública, também deverá ser cautelosa e individualizada. “Alguns acabaram se acostumando com a rotina em casa, então vamos precisar de um período de adaptação progressiva, respeitando a resposta de cada aluno e sempre focando no bem-estar dele. As crianças autistas, por exemplo, têm uma necessidade de rotina muito grande e são muito rígidas a essas rotinas. Qualquer mudança, se não for bem antecipada, pode causar um sofrimento enorme”, pontua.

Por fim, a profissional ressalta a importância da inclusão no ensino: “A pandemia escancarou que, ou a gente faz uma inclusão bem-feita, ou precisamos nos questionar sobre o que estamos fazendo. Não é nenhum favor fazer inclusão de crianças e adolescentes com deficiência, é um direito que eles têm”.

Vantagens tecnológicas

A professora do Atendimento Educacional Especializado (AEE) do Centro de Ensino Fundamental nº 12 de Taguatinga, Larissa Mitsue, conta que o período de pandemia foi e está sendo um momento de muitos desafios, mas também de muitos aprendizados. Para ela, é gratificante perceber o desenvolvimento dos estudantes que tinham inúmeras dificuldades em se adaptar ao ensino a distância e, de repente, já conseguem responder às atividades, preencher formulários, anexar arquivos, assistir a aulas pelo Google Meet e tirar dúvidas por mensagens de texto.

Foi o caso de Duwesley Nogueira Chaves, de 14 anos, com deficiência intelectual. Em 2020, todos os materiais do jovem eram impressos, já este ano, ele consegue acessar a plataforma com facilidade, acompanha algumas aulas on-line e comparece aos atendimentos remotos da Sala de Recursos. “Eu não acho tão difícil este ano, mas ano passado, sim. Faço meus deveres no final da tarde ou de manhã. As aulas no computador a pessoa não aprende muito, não. E não sou só eu, todo mundo. Era melhor estar no colégio com todos, mas a pessoa tem que assistir”, afirma o estudante.

“De uma certa forma, eles foram forçados a lidar com essas ferramentas que, com certeza, farão parte de toda a sua vida acadêmica daqui pra frente e que, também, serão necessárias neste mundo tecnológico”, explica a professora. “Estamos todos juntos e vamos passar por isso. Apesar de todas as perdas que a pandemia nos trouxe, sinto-me honrada em fazer parte desse processo de aquisição de conhecimento coletivo”, reitera.

Segundo Larissa, é preciso que a escola trabalhe de forma integrada, acolhendo tanto os estudantes quanto as famílias, para que ninguém se sinta desmotivado ou desassistido. Nos atendimentos individualizados da Sala de Recursos, ela procura manter conversas informais com os alunos para estabelecer vínculos, além de trabalhar as habilidades que são importantes para os conteúdos de sala de aula. Jogos, formulários com dicas e vídeos explicativos com linguagem simples são algumas das metodologias acessíveis utilizadas pelos professores regentes para atingir os estudantes com maiores comprometimentos cognitivos.

“É necessário que reconheçamos que todos os estudantes, independentemente de suas necessidades e dificuldades, têm potencial para aprender. Para que eles tenham uma aprendizagem significativa, é importante que tenhamos a sensibilidade de entender que cada um tem o seu ritmo e maneiras diferenciadas de aprender”, completa a professora.

*Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte

 

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