Se ter uma mãe, aquela figura com quem compartilhamos segredos, angústias, tristezas e alegrias, já é bom, imagina poder contar com duas? É essa a formação que configura os dias e os laços afetivos de algumas famílias: duas figuras maternas cheias de amor e histórias inesquecíveis para dividir com os filhos.
Angélica Maria, 46 anos, e Geórgia Neder, 50, conheceram-se há 21 anos em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul. Tudo parecia perfeito, até que, depois de um tempo juntas, por conta de uma discordância, acabaram se separando: Geórgia queria ter filhos; Angélica, não.
No entanto, o amor das duas era tão forte que a separação não se sustentou por muito tempo. Mesmo com medo, Angélica decidiu topar o desafio e diz não se arrepender nem um pouco. “Resolvemos que o filho seria da Geórgia, embora eu sempre fosse ficar por ali. Hoje, nem eu entendo como isso seria na prática ou na minha cabeça. Estive nas consultas de pré-natal e no parto, fui parabenizada pela obstetra tal qual os pais são. Então, eu fui mãe antes mesmo de ele nascer”, conta a advogada sobre o filho Vinícius, concebido por meio de inseminação artificial, hoje com 19 anos.
Depois disso, a família cresceu. E muito! O casal tem, hoje, sete filhos — alguns foram adotados e outros vieram por reprodução assistida. São eles: Vinícius, 19, Giovanni, 12, Miguel, 11, Luíza, 8, Gabriela, 7, e Ruth e Esther, gêmeas de 3 anos.
Todos moram juntos numa chácara na Fercal. Lá, eles têm uma rotina bem agitada, e cheia de alegria e momentos únicos. Angélica, que antes nem cogitava ter filhos, hoje consegue desempenhar com maestria o papel de mãe multitarefas: “É uma loucura total! Muitas vezes, estamos atendendo a briga entre dois deles e, antes de conseguirmos resolver, chega um terceiro, sangrando”, relata, com bom humor. “Geórgia é enfermeira em hospital, logo, trabalha em escalas. Quando ela está de plantão, fico em casa atendendo a tropa.”
Para Geórgia, a vida foi ressignificada e redimensionada após a maternidade. “Eu era um coração pequeno. Com a chegada de cada filho, o meu mundo agigantou-se em medos e certezas. E o amor e a força aqui dentro só aumentaram. Sou uma pessoa melhor, porque eles nasceram da gente e para a gente”, afirma a enfermeira, que gestou os filhos que vieram por reprodução assistida. “Espero, de coração, que nossa história dê esperanças a outras pessoas que sonham com a maternidade”, completa.
As mães contam que as crianças ficaram felizes com a participação nesta reportagem. Infelizmente, alguns dos pequenos foram vítimas de preconceito por parte dos colegas de escola que, provavelmente, reproduziam o comportamento preconceituoso dos pais. As mamães corujas, no entanto, sempre orientaram os filhos a não se abalarem.
“Em uma ocasião, os colegas disseram ao Vinícius que o pai dele era ‘viado’. Ele respondeu: ‘Não tenho pai’. Veio o contra-ataque: ‘Então sua mãe é sapatão’. Ele se saiu lindamente nesse dia e afirmou: ‘É mesmo, as duas, inclusive!’ E nada mais lhe disseram”, relata Angélica.
Minhas mães e eu
A estudante Giovanna Tati, 21, também conta ter sofrido preconceito na época da escola, uma vez que é filha de duas mães. Apesar de ter passado por situações bastante desconfortáveis e absurdas, a jovem encarou tudo de cabeça erguida, como sua família a ensinou. “Acho que o primeiro ponto que precisa ser melhorado é o jeito como as famílias formadas por casais homoafetivos são tratadas. As pessoas me veem como um experimento de laboratório, sempre questionando a dinâmica da minha família, como se fôssemos extraterrestres”, desabafa.
Soraia Braga Lopes, 53, uma das mães de Giovanna, é servidora pública aposentada, casada há 30 anos com Carmem Lúcia, 48. As duas se conheceram graças a uma coincidência do destino, em um bar em Taguatinga. Depois desse encontro, não se desgrudaram mais e, após conquistarem a sonhada estabilidade financeira, decidiram que teriam uma filha. Um amigo do casal se dispôs a contribuir com o material genético.
“Durante toda a vida, a Giovanna sempre me chamou de ‘amor’, e Carmem, que a gerou, de mãe. Agora que está adulta, chama nós duas de mãe”, conta Soraia. “É maravilhoso ser mãe, ter formado uma família, nós somos muito unidas, e a Giovanna é uma filha maravilhosa.”
De primeira viagem
A história de Jacqueline e Manuella começou com a distância. As duas passaram três anos apenas como amigas, mas, quando uma delas ficou um tempo fora do país, elas se aproximaram ainda mais. As chamadas de vídeo intermináveis mostravam que um lindo romance ainda aconteceria. E assim foi. Desde que Jacqueline pisou no aeroporto, não se desgrudaram mais. Conquistaram muitas coisas juntas, como casa e emprego. Casaram-se e, agora, realizarão mais um sonho: o de serem mães.
“Decidimos ter um filho desde o primeiro dia juntas. Já era uma vontade individual nossa, que aumentou ainda mais, justamente por ver esse sonho de criança de cada uma sendo compartilhado pela outra de forma tão sincera”, conta a estudante de direito Jacqueline Canavarro, 31, que está gestando o bebê, após inseminação.
Inspiradas a ajudar outras mulheres na mesma situação, Manu e Jac decidiram criar um perfil no Instagram (@comduasmaes) para compartilhar dicas, anseios e experiências. Antônio, primeiro filho do casal, chegará em algumas semanas. “Nós sonhamos com esse momento desde que éramos crianças, e jamais nos permitimos abrir mão disso apenas por sermos lésbicas. O nosso filho será a concretização da nossa família e o retrato da nossa resistência”, alegram-se as futuras mamães.
Amor incondicional
Naiara e Janaína são mães do Gabriel, 9, e Guilherme, 10. O processo de adoção dos dois foi iniciado por Janaína, quando ela estava em outro relacionamento. Após a separação, a ex-companheira optou por tirar o nome da ação, mas, para ela, desistir não era mais uma alternativa. Após quatro longos anos de espera, os meninos, finalmente, chegaram e começaram a se adaptar à nova realidade. Janaína passava pelo mesmo processo, tentando se conhecer como mãe solteira. Foi aí que ela conheceu Naiara.
“Quando a gente começou a namorar, foi tudo muito intenso, muito rápido. Tinha uma pessoa de que estava gostando, começando a namorar e, ao mesmo tempo, duas crianças que estavam no processo de chegar num lugar novo. No início, entrei na vida deles como tia. Não imaginava que, no meio do nosso caminho, me tornaria mãe. Isso, para mim, foi muito lindo, muito intenso”, conta a fotógrafa Naiara Demarco, 31.
Para ela, o sonho de ser mãe sempre existiu, só não imaginava que a realização viria de forma tão rápida e genuína. Independentemente do longo processo burocrático que a companheira tinha enfrentado sozinha, Naiara participou da adaptação das crianças, o que fez com que a vida em família se iniciasse antes mesmo de ela perceber. Gabriel e Guilherme, que antes a tinham como tia, passaram a chamá-la de ‘mamãe’ naturalmente.
“Ser mãe é se doar e se entregar com tudo o que você tem de melhor e pior. Acho que é um amor incondicional por isso. A gente não ama porque a pessoa é isso ou aquilo, a gente ama a pessoa apesar do que ela nos mostra nos momentos de fragilidade ou raiva”, afirma Naiara.
A esposa, Janaína Fernandes, 37, alegra-se ao dizer que a maternidade é algo que ultrapassa a própria vida. “É cansativo, é exaustivo, mas, se tomada num conjunto, pode ser encarada como um investimento. Não para ter um retorno para você mesma, mas ele vai construir outras coisas e continuar a sua história de alguma forma”, reflete.
Famílias homoafetivas no Brasil
Em 2011, o STF reconheceu a união estável homoafetiva como entidade familiar. Quando se fala em adoção por casais homoafetivos, na legislação brasileira, não há qualquer restrição. Na verdade, os requisitos são os mesmos para os casais heterossexuais — procura-se a Vara da Infância e da Adolescência e inicia-se o procedimento de investigação da família, com a juntada de documentos, comprovação de casamento ou união estável e outros diversos processos burocráticos.
Em relação à reprodução assistida, um provimento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de 2016, determina que filhos de casais de dois pais ou duas mães podem ser registrados no nome de ambos ou ambas, sem haver qualquer distinção quanto à ascendência paterna ou materna.
Para a advogada Cíntia Cecílio, especialista em direitos homoafetivos e de gênero, apesar dos avanços, ainda há muito a ser feito: “A população LGBTQIA+ não tem nenhuma proteção legal, uma vez que tudo que foi conquistado até agora foi através de jurisprudência. Para se ter uma ideia, tem projeto de lei que corre há 20 anos no Legislativo, como a aprovação para criminalizar a LGBTfobia, por exemplo, e até hoje não foi votado. Então, não existe legislação que nos proteja”, afirma a profissional, que também é uma mulher lésbica.
Além da luta por igualdade e visibilidade, as famílias homoafetivas, na maioria das vezes, precisam lidar com outro inimigo invisível: o preconceito. Há quem tente argumentar que filhos de casais homossexuais possam, de alguma forma, sofrer influência vinda dos pais, gerando complicações no desenvolvimento da criança ou confusão quanto à orientação sexual dela. Essa linha de pensamento, porém, não se sustenta.
Segundo a psicóloga Paloma Silva Galvão, uma pesquisa da Associação Americana de Psicologia apontou que não há um único estudo que tenha constatado que filhos de pais homossexuais tenham qualquer prejuízo significativo em relação aos filhos de heterossexuais. Além disso, pesquisas apontaram que a taxa de homossexualidade de meninos e meninas é igual em ambas as modalidades familiares. Uma delas revela, inclusive, que mais de 90% dos filhos adultos de pais gays se consideravam héteros.
“A saúde mental e a felicidade individual dependem da dinâmica da família, e não da forma como ela está estruturada”, explica. “Estudos mostram que filhos de casais homoafetivos aceitam melhor a diversidade, tratam de uma forma mais natural, tanto casais homoafetivos quanto casais heterossexuais”, pontua.
Quem é o pai da relação? A resposta é ninguém!
A psicóloga Paloma Silva Galvão explica que a dinâmica familiar homoafetiva, muitas vezes, é questionada, mas está muito mais vinculada ao desempenho de funções. “Alguns papéis são mais associados à mãe; outros, ao pai; Mas isso vai depender muito da forma como aquela família se adapta e se vê nesses papéis. No caso de duas mães, se uma se identifica mais com a tarefa de dar banho, trocar a fralda, dar comida, e a outra desempenha outros papéis, é porque elas se identificaram com essas funções, independentemente de ser homem ou mulher.”
A profissional ressalta a importância de essas famílias buscarem se fortalecer psicologicamente, uma vez que o preconceito, infelizmente, existe. “A população LGBTQIA+ está exposta e vulnerável diariamente. Por isso, é preciso arranjar meios de se proteger dessas violências diárias que eles sofrem em vários níveis”, cita Paloma, que sugere algumas formas de encorajamento individual e coletivo: “Procurar terapias com psicólogos que sejam sensíveis à temática de gênero e sexualidade, unir-se, ter uma rede de apoio para desabafar e criar laços com pessoas confiáveis”.
*Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte
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