Especial

Casais homoafetivos celebram a garantia do amor

Em 2021, completam-se 10 anos da decisão do Supremo Tribunal Federal que reconheceu a união estável homoafetiva. Casais dividem com a Revista como o momento mudou suas vidas

Ailim Cabral
postado em 13/06/2021 08:00
Os arquitetos Daniel Mangabeira e Hélio Albuquerque no dia do casamento, o primeiro homoafetivo do DF, há exatos 10 anos -  (crédito: Zuleika de Souza/CB/D.A.Press)
Os arquitetos Daniel Mangabeira e Hélio Albuquerque no dia do casamento, o primeiro homoafetivo do DF, há exatos 10 anos - (crédito: Zuleika de Souza/CB/D.A.Press)

Acompanhar o cônjuge em internações médicas, receber ligações e atualizações sobre o estado de saúde do parceiro, ser incluído em planos de saúde oferecidos por empregadores, adotar uma criança e até poder passar pela imigração do aeroporto juntos são alguns direitos básicos de um casal que vive em união estável ou casamento. Direitos esses que há até pouquíssimo tempo eram negados aos casais homoafetivos.

Desde maio de 2011, porém, essas famílias puderam ter seus direitos reconhecidos (leia quadro), o que é uma vitória por si só e permite uma tranquilidade muito maior na hora de viver o que realmente importa para qualquer casal: uma história de amor. Em junho, mês em que é celebrado o Orgulho LGBTQIA+, a Revista conta a história de amor de casais homoafetivos juntos há mais de 10 anos e como o reconhecimento de direitos, ainda que tardio, afetou suas vidas.

Precursores do amor

Juntos há 16 anos, os arquitetos Hélio Albuquerque, 54 anos, e Daniel Mangabeira, 47, foram o primeiro casal homoafetivo a se casar oficialmente no Distrito Federal. Além da importância do reconhecimento de direitos, o ato teve um valor especial para os dois. “Era algo entre nós. Um papel que mostrava a certeza que nos escolhemos para viver juntos para sempre”, enfatiza Hélio.

Apresentados por um amigo em comum, em uma festa, passaram a noite conversando e o papo continuou pelo ICQ, rede social da época. Os dois marcaram um cinema e ali tudo começou. “É engraçado que eu estava muito tímido, mas interessado nele. Ficava o tempo todo dizendo que poderíamos ser amigos, mas achando que ele não ia querer mais que isso, e ele achando que eu estava dando o fora”, Hélio diverte-se.

Apesar do mal-entendido inicial, o interesse mútuo acabou ficando claro e, pouco tempo depois, Daniel e Hélio começaram a morar juntos e compraram um terreno para construir uma casa. Enquanto planejavam a vida a dois, apesar da aceitação plena das famílias, algumas preocupações práticas começaram a surgir. A construção de um patrimônio conjunto suscitou o desejo do casal de se resguardar. “Vivíamos juntos, crescendo juntos e, de certa forma, queríamos presentear um ao outro com essa certeza e segurança que um papel registrado traz”, explica Hélio.

Assim que foi saiu a decisão do STF, em 2011, os dois não perderam tempo e oficializaram a união estável retroativa, que registrava todos os anos anteriores em que o casal estava junto.

Pouco tempo depois começaram a acontecer, a partir de decisões legais, casamentos homoafetivos pelo país. Orientados legalmente por uma amiga, os dois reuniram documentação baseada nessas outras resoluções antes de enviar o pedido de casamento. “Na época, era tudo novo e ainda não estava regulamentado, então queríamos encaminhar tudo muito certinho para que não houvesse a chance de o juiz negar. Queríamos aproveitar aquele momento, pois não sabíamos o que ia acontecer em seguida, se a decisão fosse revogada, uma vez oficializados, nossos direitos não poderiam ser tomados.”

Em fevereiro de 2012, Hélio e Daniel se tornaram o primeiro casal homoafetivo a se casar no Distrito Federal. A comemoração veio alguns meses depois, em junho, em uma cerimônia planejada com o amor e carinho que todo casal merece.

“É um direito que todos devem ter, uma festa com amigos e família para celebrar uma união de amor. O civil foi reservado e rápido, para aproveitar a oportunidade legal, mas nós fazíamos questão de ter o romantismo, pois o sentimento que nos une é o mais importante”, ressalta Hélio.

Normalização

Hélio e Daniel reconhecem a importância histórica de seu casamento na luta por direitos para a comunidade LGBTQIA+ — diversos casais de amigos, inclusive, buscaram a legalização da união inspirados pelos dois. Mas, à época, o casal chegou a recusar algumas entrevistas a conteúdos mais segmentados.

Apesar de entenderem que o amor representava também um ato político, os arquitetos não buscavam, necessariamente, levantar bandeiras com o casamento, mas, sim, celebrar a felicidade da união como qualquer outro casal faria. “Naquele momento, o importante para nós era mostrar a normalidade do nosso amor e felicidade. Participamos de uma matéria em uma revista de casamento, ponto. Mas não quisemos participar de uma somente de casamentos gays”, conta.

O casal ressalta que queria tirar o peso do casamento deles como algo diferente ou inédito e mostrar que era algo comum, natural e até mesmo corriqueira, como seria no caso de qualquer união heterossexual. “Não era simplesmente um casamento gay, era um casamento. Era um momento de felicidade, e era isso que gostaríamos de retratar, contribuindo para a normalidade daquele ato”, completam.

O reconhecimento de uma família

Em maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a união estável para casais do mesmo sexo, marcando um momento histórico de legalização de direitos e da legitimação de relações. Dois anos depois, o Conselho Nacional de Justiça, por meio da Resolução 175, autorizou a realização do casamento civil entre casais homoafetivos, assim como a conversão de união estável em civil.

Cíntia Cecilio, advogada especialista em direito homoafetivo e de gênero e presidente da comissão de Diversidade Sexual da OAB-DF, explica que uma das principais vantagens de fazer a união estável antes é a possibilidade de registrar a relação de forma retroativa. Se o casal está junto há 10 anos, esse período é incluído no documento.

Isso é importante para validar o relacionamento que já existia e também como garantia de direitos quanto ao patrimônio construído e compartilhado anteriormente à resolução, por exemplo.

A união estável e o casamento garantem aos casais direitos a planos de saúde, determinação do regime de bens, recebimento de pensão ou seguro de vida em caso de falecimento, além de oferecer mais segurança às partes em caso de divórcio ou separação.

Outro ponto fundamental é a possibilidade de adoção pelo casal. Antes, era feita a adoção solo, em nome de somente um dos pares. A partir do casamento, a criança é adotada pelo casal. “É o reconhecimento de um núcleo familiar com muito amor e que sempre existiu. Da família homoafetiva que pode, a partir do casal, crescer e abarcar a possibilidade de filhos, seja por meio da adoção, seja da reprodução assistida”, ressalta Cíntia.

Encontro de almas gêmeas

Everson e Maurício estão juntos desde 2005: direitos garantidos por união estável e casamento
Everson e Maurício estão juntos desde 2005: direitos garantidos por união estável e casamento (foto: Carlos Vieira/CB/D.A.Press )

O autônomo Everson Brum, 45, e o psicólogo Maurício Bichara Hortêncio de Medeiros, 49, conheceram-se em 2005. O contato inicial foi on-line, com um amigo em comum, no antigo Orkut. Eles gostaram do perfil um do outro, adicionaram-se e começaram a conversar.

Logo no primeiro encontro físico, a conexão foi instantânea e natural e, desde então, os dois não se largaram mais. Seis meses depois, Maurício recebeu um convite, que há muito esperava, para trabalhar em São Paulo. “Fiquei na dúvida se daria certo, encarar a distância com pouco tempo de namoro. Mas, desde o início, tinha sido um encontro de almas gêmeas e, assim, passamos quatro anos e meio entre Brasília e São Paulo”, conta Everson.

Na primeira vez em que Maurício voltou a Brasília, ele já ficou na casa de Everson. E, assim, de longe, com seis meses de relação, o casal começou a morar junto. “Foi rápido, mas natural. Nunca quisemos desistir ou tivemos dúvidas.” Maurício voltou para Brasília e o casal pôde comprar e reformar o próprio apartamento. O psicólogo lembra que já quiseram fazer tudo juntos — um lar que, desde o início, pertencesse aos dois.

Direitos garantidos

Quase um ano depois, veio a decisão do STF e o casal não perdeu tempo. A empresa em que Maurício trabalhava garantia diversos direitos aos cônjuges, independentemente de orientação sexual, mas exigia o reconhecimento de união estável.

Além do direito ao plano de saúde, seguro de vida e pensão, o casal via a importância do documento. Vendo a história de amigos que, quando o parceiro morria, era completamente alienado, tanto do momento de despedida ou de hospitalização, quanto do direito ao patrimônio que construíram juntos, os dois viram a necessidade de se resguardar.

Com algumas dificuldades de aceitação por parte da família de Maurício, o psicólogo tinha medo de deixar o parceiro, hoje marido, desamparado. “Construímos tudo juntos, uma vida inteira, e nosso patrimônio. Seria horrível que o Everson ficasse desamparado, e familiares com quem não tenho nenhum contato herdassem tudo”, ressalta.

Em 2015, os dois resolveram converter a união estável em casamento civil. Depois de ver a informalidade do cartório, eles desistiram de se casar ali e optaram por uma pequena cerimônia em casa. “Seriam 12 pessoas, com pais e testemunhas, e, quando vimos, virou uma festa para 150 pessoas”, ri Maurício. O convite do casório foi pelo Facebook e a recepção, descontraída. Segundo os noivos, “uma mistura, mas que até hoje amigos dizem que foi a melhor festa a que já foram”.

Além da celebração do amor e da garantia de direitos, o casal conta que o peso de chamar o parceiro de marido ou esposo é algo importante para eles. “Acho que é uma questão social, mas tem um peso maior dizer esposo, em vez de namorado. Parece que aquilo traz uma seriedade para a relação, além de usarmos alianças de ouro, como qualquer casal. Parece bobeira, mas não é. Temos os mesmos desejos e direitos que qualquer casal”, comenta Everson.

30 anos de amizade e 20 de romance

Maria Eliana e Helen gostam de viajar: quando oficializaram a união, elas andavam com o documento
Maria Eliana e Helen gostam de viajar: quando oficializaram a união, elas andavam com o documento (foto: Arquivo pessoal)


“Se você viver 100 anos, eu quero viver 100 anos menos um dia.” A citação, atribuída ao escritor A. A. Milne, é a frase que define o casal, segundo as servidoras públicas aposentadas Maria Eliana Brandão, 64, e Helen Silveira de Alcântara, 54. Amigas de muito tempo, viram o romance florescer depois de 10 anos de amizade. Juntas há duas décadas e casadas há nove anos, afirmam que a base de uma relação bem-sucedida é a cumplicidade, a amizade e muito companheirismo.

O apoio da família e dos amigos também é importante para as duas, que optaram pela união estável, pelo seu caráter retroativo, e, logo em seguida, a converteram em casamento. “O casamento te dá todos os direitos civis que qualquer pessoa tem, e isso é fundamental para dar uma estabilidade nas burocracias da vida prática”, ressalta Eliana.

Viajantes por natureza, as duas também falam sobre a facilidade de passarem pela imigração juntas, e lembram uma situação médica em que Helen estava internada e uma enfermeira dificultou o acesso de Eliana até ela afirmar, categoricamente, seu papel de esposa.

No início, Helen e Eliana andavam até mesmo com uma cópia da certidão para onde iam, pois já precisaram comprovar a relação. “Hoje, não precisamos mais disso, tem uma naturalidade maior, mas foi uma luta grande”, ressalta Helen. Para as duas, os documentos são apenas papéis que garantem direitos. “É para garantir esses direitos. Mas o que vale mesmo é nosso sentimento e história”, afirmam.

E a história é cheia de marcos, que vão além da festa de casamento que reuniu amigos e familiares de todo o Brasil para celebrar a união. Fãs de esportes, as duas já curtiram jogos olímpicos, copas do mundo e campeonatos pan-americanos ao redor do globo. “Olhamos para trás e vemos tudo que vivemos juntas, é muito orgulho e amor. Toda vez que comemoramos, agradecemos o quanto é bom estarmos juntas”, garante Eliana.

Em 30 de junho, sem poder viajar ou passear, as duas contam que os 20 anos de união serão celebrados de uma forma diferente e especial, dentro de casa. 

Dia dos Namorados mais que especial

Enrique e Sandro mostram, com orgulho, o documento de união estável
Enrique e Sandro mostram, com orgulho, o documento de união estável (foto: Arquivo pessoal)

O Dia dos Namorados de 2021 teve um gostinho especial para o ator e empresário Sandro Christopher, 49, e para o empresário Enrique Caballè Marimon, 54. O casal completou 10 anos de namoro e união ontem e, apesar do isolamento, fez questão de comemorar o momento em um jantar romântico, em casa.

No primeiro “encontro” deles, somente Enrique viu Sandro. Assistindo a uma peça em que o marido estava em cartaz, ele se encantou com o talento de Sandro e ficou bastante interessado, mas deixou de lado. Pouco tempo depois, o Facebook sugeriu o perfil de Sandro para Enrique, e ele não hesitou em mandar uma solicitação de amizade e enviar uma mensagem de fã. “Eu vi, respondi agradecendo e aí não paramos mais de conversar”, lembra Sandro.

Pouco tempo depois, eles se encontraram e engataram uma relação, mas sem nenhuma definição. Chegou o Dia dos Namorados e, em uma ligação, uma vez que um estava em São Paulo e o outro no Rio, Enrique comentou sobre a data, mas que os dois não eram namorados. Sandro aproveitou a oportunidade e garantiu que bastava que o outro fizesse “assim” (estalando os dedos) que ele se tornaria seu namorado. No mesmo momento Enrique repetiu o gesto e, este ano, o diálogo completou 10 anos.

Os dois passaram alguns anos na ponte aérea entre Rio e São Paulo, até que Enrique se aposentou e foi morar com o amado. Em 2018, eles oficializaram a união estável. Sandro explica que eles optaram pelo documento por causa da possibilidade de registrar a relação de forma retroativa, garantindo, assim, os direitos do que conquistaram juntos nos últimos anos.

O casamento é o próximo passo, mas o casal está adiando, porque quer fazer a união civil junto com uma cerimônia ecumênica e com elementos do candomblé, a fé do casal. “Queremos fazer em Brasília, onde estamos morando, para ficar mais perto da família nestes tempos difíceis em que vivemos. Estamos esperando tudo melhorar, pois é importante reunir quem amamos nesse momento tão especial”, afirma o ator.

Vacinado, Sandro espera que o imunizante chegue logo para todos, pois a vontade de se casar é grande. “É a chance que eu vou ter de casar na vida e fazer uma festa linda. Além disso, poder dizer que está certo, é normal, somos marido e marido e está tudo bem, é muito importante”, ressalta.

Para Sandro e Enrique, a garantia de direitos é importante e facilitou a vida prática, como planos de saúde, abertura da empresa do casal e assuntos médicos, mas comemorar os direitos adquiridos com tanta luta ao preconceito e amor são o mais importante para o casal. “O mundo já tem muito ódio e intolerância, por que não aproveitarmos todas as chances para celebrar o amor? Nestes tempos de pandemia, valorizar a vida e o amor é mais importante que nunca, e nos dá forças para continuar”, completa.

Marido e marido, esposa e esposa

Roberta Fragoso, procuradora do Distrito Federal e professora da escola do Ministério Público, teve um papel fundamental na mudança dos formulários dos cartórios do DF, junto com o casal pioneiro, Hélio Albuquerque e Daniel Mangabeira.

Mesmo após as decisões do STF e do CNJ, o formulário de casamento dos cartórios, tinha, nos espaços para os nomes dos nubentes, a definição de homem e mulher. “Fiz um requerimento na época para que, no lugar de homem e mulher, estivesse escrito apenas nubentes e, ali, os nomes do casal. Independentemente de ser homem ou mulher — ou trans. O gênero das pessoas não dizia respeito naquele momento”, afirma Roberta.

Apesar de reconhecer o atraso da decisão legal, Roberta ressalta a importância do registro dessas uniões. “Isso permite não apenas a garantia de direitos do casal, mas, também, o reconhecimento da constituição de família, e o direito de ter a própria família, concretiza a ideia de dignidade humana, é algo básico.”

Uma data de orgulho

Com diversas ações, paradas, manifestações e celebrações, em junho é comemorado, mundialmente, o Mês do Orgulho LGBTQIA+. O mês é um momento de ressaltar o orgulho da comunidade e também de lembrar e manter ativa a luta por direitos e por respeito.

A data foi escolhida em virtude da Rebelião de Stonewall. O momento histórico na história LGBTQIA+ aconteceu em 28 de junho de 1969, após a polícia de Nova York invadir o bar Stonewall Inn, famoso por ser frequentado por grupos marginalizados, como drag queens, transgêneros e garotos de programa.

A invasão violenta e truculenta da polícia suscitou revolta naquela noite, e uma multidão se reuniu em protesto. Nos dias seguintes, a comunidade LGBTQIA+ de NY promoveu mais protestos e movimentos e, nas semanas seguintes, surgiram grupos ativistas organizados em busca de direitos básicos. No ano seguinte, no dia 28 de junho, uma multidão caminhou do bar até o Central Park, marcando a primeira parada gay dos Estados Unidos.


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  • Everson e Maurício estão juntos desde 2005: direitos garantidos por união estável e casamento
    Everson e Maurício estão juntos desde 2005: direitos garantidos por união estável e casamento Foto: Carlos Vieira/CB/D.A.Press
  • Maria Eliana e Helen gostam de viajar: quando oficializaram a união, elas andavam com o documento
    Maria Eliana e Helen gostam de viajar: quando oficializaram a união, elas andavam com o documento Foto: Arquivo pessoal
  • Enrique e Sandro mostram, com orgulho, o documento de união estável
    Enrique e Sandro mostram, com orgulho, o documento de união estável Foto: Arquivo pessoal
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