Especial

Unidas pelo armário: o prazer e as vantagens de compartilhar as roupas

Quantas histórias uma peça de roupa pode contar? Mães e filhas, avó e neta, primas dividem itens do vestuário e, principalmente, afeto

Giovanna Fischborn
postado em 04/07/2021 08:00
O short de bandeiras tem um valor afetivo especial para Ludmila e, hoje, é uma das peças preferidas de Julia: Maria de Fátima também compartilha o guarda-roupa com filha e neta -  (crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A.Press)
O short de bandeiras tem um valor afetivo especial para Ludmila e, hoje, é uma das peças preferidas de Julia: Maria de Fátima também compartilha o guarda-roupa com filha e neta - (crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A.Press)

Quando o assunto é guarda-roupa, sapatos, bolsas, acessórios e até aquela peça statement, com informação de moda, não costumam escapar de um ou outro empréstimo. É comum as filhas explorarem o armário das matriarcas; e irmãs ou primas montarem looks com as roupas umas das outras, quando elas servem para as duas.

Para além da praticidade do uso, esse hábito guarda carinho e acumula memórias. Compartilhar peças de roupa também faz parte de um movimento mais sustentável, baseado no reaproveitamento e no vestir-se com responsabilidade. Em vez de descartadas, elas rodam gerações e duram muito.

Os tênis são praticamente os mesmos, bolsas e roupas são compartilhadas no dia a dia. Já não se sabe mais o que é de uma ou da outra. Ludmila Goes, 36 anos, designer e artesã, e a filha Julia Goes, 15, dividem tudo. Julia se identifica com o estilo mais casual da mãe. Elas gostam, principalmente, de peças fluidas e coloridas. Mãe e filha têm o costume de sair parecidas e dividem o gosto até pelas mesmas estampas.

“É muito legal porque a nossa diferença de idade não é tanta, e nossas personalidades coincidem em vários pontos, então aproveitamos muita coisa uma da outra”, diz Ludmila. Cada uma usa a peça à sua maneira, o que possibilita criar vários visuais. Se Ludmila opta por uma imagem clássica, Julia torna o look mais jovial com alguns poucos ajustes.

A mãe de Ludmila e avó de Julia, Maria de Fátima, 68 anos, não fica de fora desse compartilhamento. Camisas, blusões, saias e calças rodam o armário das três. “Tem uma peça muito especial: um colar de ouro que passou da minha mãe para mim e, agora, para a Julia. Penso que joias, no geral, têm valor financeiro, mas também um valor sentimental enorme”, conta Ludmila.

Um short com bandeiras de vários países foi a peça que acompanhou Ludmila em uma viagem a São Paulo, em 2019, quando ela foi a diversos eventos culturais. Além de bater perna na cidade, essa foi a roupa que ela usou para ir do apartamento do namorado até o Mercado Municipal, a pé. “Queria muito conhecer a região. Foi uma viagem muito significativa para mim, em vários sentidos. A Julia usa essa mesma roupa no dia a dia agora.”

Números do fast fashion

O fast fashion é um modelo de produção pensado para suprir rapidamente uma demanda por roupas, com alta rotatividade de coleções e vendas a preços baixos, lógica comum em lojas de departamentos. Pesquisas mostram que, nesse ciclo, uma peça é guardada por somente 35 dias antes de ser descartada e usada, em média, apenas cinco vezes.

O algodão plantado requer grandes quantidades de água e pesticidas para dar conta do ritmo de produção; o poliéster demora mais de 400 anos para se decompor. Nos Estados Unidos, a estimativa é de que 90% das peças de vestuário vendidas sejam feitas justamente desses dois materiais.

E tem mais: o Programa da Organização das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) aponta que o volume de resíduos urbanos chegará a 2,2 bilhões de toneladas até 2025. Só no Brasil a estimativa de resíduos têxteis é de 175 mil toneladas/ano. Desse total, apenas 36 mil toneladas são reaproveitadas.

Prática sustentável

Coordenador do curso técnico de vestuário do Instituto Federal de Brasília, Adriano Bezerra pontua que resgatar momentos por meio das roupas se contrapõe à correria da contemporaneidade. Dar valor aos laços afetivos é importante em tempos tão efêmeros.

Mas, mais que isso, esse comportamento é importante para aumentar o ciclo de vida das roupas. Adriano explica que o conceito do upcycling, que é dar um novo propósito, com criatividade, àquilo que seria descartado, vem sendo cada vez mais discutido. Segundo ele, o movimento é necessário para rever os impactos negativos da indústria — o gasto de água para confecção de um jeans novo ou o uso de agrotóxicos nas lavouras de algodão, destinados à indústria têxtil, bem como do consumismo na moda.

“Precisamos assumir responsabilidade pelos materiais que compramos e, não muito tempo depois, descartamos”, ressalta. Não só o compartilhamento de peças, mas o aproveitamento delas como matéria-prima para outras criações também é opção para diminuir alguns dos efeitos da moda. Vale juntar retalhos para montar novas peças ou customizar e dar uma nova proposta à roupa.

Futuro

A estilista Fernanda Lorena avalia que não é preciso fazer mais roupas, dado todo o cenário fashion — poluente e carregado. Mas, sim, devemos dividir mais. Na família, não só as joias ou o vestido de noiva ou de debutante têm vez, embora esses sejam artigos tradicionais. As possibilidades são infinitas e, melhor ainda quando o compartilhamento faz parte do dia a dia.

A especialista pontua que tanto itens atemporais quanto peças do momento vêm ganhando espaço em negócios de aluguéis de roupas, on-line e físicos, e tornam a moda cada vez mais acessível. Segundo Fernanda, essa troca nas famílias e entre amigas é a essência por trás da economia compartilhada nesse segmento. A moda, com essa dinâmica, vem bebendo de negócios como Uber e AirBnb, que funcionam no esquema colaborativo.

“O consumidor do futuro não quer mais uma roupa da moda, mas uma roupa com propósito. Vem analisando e valorizando essa quebra de paradigma. Vai querer uma roupa que não passou por trabalho escravo, que não vira plástico quando jogada fora”, explica.

Tal mãe, tal filha

Paula Guimarães e Roseana Pingret dividem não só o guarda-roupa, mas também a afinidade com o mesmo estilo
Paula Guimarães e Roseana Pingret dividem não só o guarda-roupa, mas também a afinidade com o mesmo estilo (foto: Arquivo pessoal)

Para Roseana Pingret, 57, empresária, e Paula Guimarães, 32, policial militar, mãe e filha, faz total sentido investir em boas peças, que proporcionem conforto e durabilidade. “Sempre que vamos comprar uma roupa que demande maior investimento, avaliamos se ela atenderá a nós duas”, contam. As roupas mais atemporais, que Roseana usava com trinta anos, ainda estão guardadas e, hoje, são usadas por Paula com a mesma idade.

Elas contam que, quando moravam juntas, a troca era diária. De peças do dia a dia a roupas para ocasiões especiais. “Eu vivia no guarda-roupa da minha mãe. Hoje em dia, sempre que vou à casa dela, faço um pit stop pelo armário e levo uma mudinha de peças para devolver depois”, brinca Paula, que diz considerar ter um guarda-roupa adicional.

A prática é facilitada não só porque elas usam o mesmo tamanho. É a afinidade, sobretudo, que faz a diferença. Elas dificilmente escolhem um look sem pedir a opinião da outra. E, assim como acontece em muitas relações de mãe e filha, Roseana conta que, à medida que Paula ficou adulta, ela mudou o olhar que tinha e passou a compartilhar do mesmo estilo que a mãe. “Às vezes, eu visto uma roupa sem pensar muito e depois percebo que ela é toda da minha mãe. Eu acho isso o máximo”, conta Paula.

Mesmo com as mesmas peças, os looks são superadaptáveis. O truque é que a mesma blusa aparece em composição diferente para cada uma. Usada com calça, para Roseana, e com saia, para Paula, por exemplo.

Versatilidade

As primas Isabel Ribeiro e Letícia Hohmann usam a mesma blusa, só que de maneiras diferentes: cumplicidade até na hora de se vestir.
As primas Isabel Ribeiro e Letícia Hohmann usam a mesma blusa, só que de maneiras diferentes: cumplicidade até na hora de se vestir. (foto: Arquivo pessoal)

As primas Letícia Hohmann, 21 anos, e Isabel Ribeiro, 22, também são superparceiras. Como parece ser de praxe entre parentes que se dão bem, elas exploram o guarda-roupa uma da outra no dia a dia. As duas gostam de estampas e modelagens com cara de verão.

Contudo, as diferenças de personalidade se refletem na ocasião que cada uma escolhe para usar as peças. Isabel, que já morou em cidade de praia, é acostumada a usar roupas fluidas e estampadas no dia a dia, que ela define como um “estilo praiano”. Letícia, apesar de se identificar com esse visual, busca equilibrar a paleta mais vibrante com jeans e peças lisas.

Por isso, quando Isabel pretende usar algo mais sóbrio, recorre à prima. “Quando ela quer uma peça mais formal, pede para mim. Eu tenho um macaquinho de paetê que ela usou para ir a um jantar, mas ela usou mais porque precisava para a ocasião, não por ser o estilo dela.”

As primas lembram de uma blusa que Isabel comprou e emprestou para Letícia. Depois, Letícia quis até comprar outra no mesmo modelo que a da prima. “Tem, também, um vestido que minha prima usa em situações casuais, de rotina. Esse mesmo vestido lembro que usei para o noivado do meu tio, porque considero a roupa mais para um evento de fim de tarde, mais arrumadinho.”

Para assistir

No melhor estilo “uma roupa, várias histórias”, o filme Quatro amigas e um jeans viajante, baseado no livro de mesmo nome, traz a história de um grupo de amigas que dividem a mesma calça jeans. A peça serve perfeitamente em cada uma das meninas e as acompanha nos altos e baixos da adolescência, rendendo boas histórias e mantendo as quatro unidas durante as férias.

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  • As primas Isabel Ribeiro e Letícia Hohmann usam a mesma blusa, só que de maneiras diferentes: cumplicidade até na hora de se vestir.
    As primas Isabel Ribeiro e Letícia Hohmann usam a mesma blusa, só que de maneiras diferentes: cumplicidade até na hora de se vestir. Foto: Arquivo pessoal
  • Paula Guimarães e Roseana Pingret dividem não só o guarda-roupa, mas também a afinidade com o mesmo estilo
    Paula Guimarães e Roseana Pingret dividem não só o guarda-roupa, mas também a afinidade com o mesmo estilo Foto: Arquivo pessoal
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