Especial

Enxergando todos os tons de pele

As chamadas peles de cor, que não se encaixam no conceito caucasiano, precisam de atenção e cuidados especiais, seja na estética, seja na dermatologia

Ailim Cabral
postado em 11/07/2021 08:00 / atualizado em 30/09/2021 09:53
Neto de japonês, Daniel Matsumoto fez um procedimento de peeling que deixou manchas no rosto: falta de preparo com peles amarelas -  (crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A.Press                       )
Neto de japonês, Daniel Matsumoto fez um procedimento de peeling que deixou manchas no rosto: falta de preparo com peles amarelas - (crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A.Press )

Fazer um procedimento em uma clínica de estética ou em consultório de dermatologia parece algo simples, que requer alguns cuidados básicos, como buscar referências ou indicações de locais e profissionais confiáveis. Porém, para algumas pessoas, especialmente aquelas que não têm pele branca, esse processo pode ser mais complicado, problemático e até doloroso, inserido em um contexto de racismo estrutural e falta de conhecimento.

A nossa sociedade se formou em um conceito eurocêntrico, e é possível perceber o racismo estrutural que persiste no Brasil. Ele vai além de ataques racistas. Pode ocorrer de forma não intencional e, muitas vezes, passar despercebido por quem não é uma das vítimas. No mundo da beleza e da estética, ele se faz presente na falta de conhecimento, de produtos e de procedimentos voltados para pessoas caucasianas. Em um país onde 57,3% da população não se declara branca, é difícil acreditar que a maioria dos serviços seja pautada de acordo com a pele branca.

Neto paterno de japoneses e filho de um descendente de japonês com uma brasileira, o tatuador Daniel Matsumoto, 30 anos, não imaginava que carregaria um reflexo da ignorância de uma sociedade pautada na pele branca no próprio rosto. Ao completar 30 anos, ele decidiu fazer tudo que vinha adiando ao longo dos anos. Entre as pendências, estava um procedimento para tratar algumas manchinhas de sol que tinha no rosto.

O primeiro passo foi começar uma pesquisa sobre o que poderia ser feito. Daniel descobriu na internet que existiam técnicas e tipos de laser que não esquentam muito a pele e, por isso, seriam melhores para pessoas não caucasianas, mas teve dificuldade de encontrar estabelecimentos preparados em Brasília.

Em maio, depois de buscar referências, escolheu uma clínica de estética bem conceituada e com valores mais altos que a maioria presente no mercado. Confiante, Daniel conversou com uma esteticista que garantiu que as manchas poderiam ser tratadas por meio de um peeling químico não invasivo.

Frustração

Depois da consulta inicial, o tatuador voltou a pesquisar e se deparou com uma série de relatos de pessoas de cor que tiveram problemas após esse tipo de procedimento. Outro aspecto que o incomodou foi perceber que a maioria das pessoas que falavam sobre o assunto não era brasileira, o que ressaltou que o assunto é pouco abordado por aqui.

“Descobri que, nos EUA, existem clínicas voltadas para people of color, termo usado por lá e que define pessoas não brancas, justamente por existir esse problema de a maioria dos procedimentos serem voltados para caucasianos”, conta. A insegurança voltou, e Daniel desmarcou. Depois de explicar suas dúvidas para a profissional e expor o histórico de seus problemas com acne e inflamação, que poderiam atrapalhar o processo, foi tranquilizado por ela.

“Mesmo falando sobre o tom da minha pele, da propensão à inflamação, da questão da hiperpigmentação, ela me garantiu que eu poderia, sim, fazer e que daria tudo certo, lembra. Ansioso para se ver livre das manchas, Daniel confiou. Ele também se colocou no lugar da profissional e lembrou que não se sente bem quando clientes não confiam no que ele diz sobre sua área de atuação.

Daniel tomou, então, todos os cuidados e seguiu as recomendações. Depois de enviar fotos para a clínica, ele foi chamado para um retorno e ganhou pomadas e remédios que deveria usar. Passaram-se algumas semanas e o rosto do tatuador não cicatrizou. Depois de consultar dois médicos dermatologistas, descobriu que precisaria esperar a inflamação passar para avaliar a extensão real do problema. Com o rosto manchado, ele pode fazer alguns tratamentos que eliminem as manchas, mas o problema pode se tornar crônico.

“Não posso tomar sol, não posso sair sem protetor, não posso mais ir à praia com tranquilidade porque, se eu tomar um pouco de sol em qualquer região do corpo, as manchas podem voltar. Se eu não cuidar, elas podem se tornar permanentes. Fiquei muito chateado”, lamenta.

Passando protetor solar com fator 70 a cada três horas, usando medicamentos orais com melanina e outros produtos e sem poder tomar banhos muito quentes, Daniel sente que se houvesse mais informações sobre peles não brancas disponíveis e se os profissionais recebessem uma formação mais inclusiva, tudo teria sido evitado.

O tatuador lembra, ainda, que em um dos retornos à clínica, indagou a uma atendente se esse tipo de inflamação também era comum em pessoas brancas e ficou surpreso ao perceber que a mulher não entendeu o questionamento, por considerá-lo branco. “Fiquei mais confuso ainda, como pessoas que trabalham com pele diariamente não compreendem a existência da pele amarela?”, questiona.

“Minha autoestima ficou muito abalada, e cheguei a chorar com tudo isso e ter uma fase depressiva. Trabalho com tatuagem, eu me importo com estética e entendo como uma marca feia pode afetar a vida de alguém”, lamenta.

O tatuador entrará com um processo contra a clínica e garante que não é pelo dinheiro, mas, sim, para que mais gente enxergue a existência de pessoas não brancas e o tema seja discutido com mais seriedade e frequência. “É o óbvio. Ter o direito de receber um tratamento no mesmo nível de uma pessoa branca, com os mesmos cuidados, mesmos estudos e pesquisas. Pagamos o mesmo preço, e não consigo ver isso como aceitável.”

Diversidade

De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2019, 42,7% dos brasileiros se declararam brancos; 46,8%, pardos; 9,4%, pretos; e 1,1%, amarelos ou indígenas

Para ter mais segurança

Escolha um profissional que transmita segurança e o deixe à vontade para perguntar sobre a formação dele.
Pesquise sobre o profissional escolhido e busque referências.
Busque um profissional que tenha experiência em tratar peles semelhantes à sua.
Pergunte sobre as possíveis complicações e como elas podem ser tratadas, se ocorrerem.
O dermatologista André Moreira ressalta: “Pergunte, pergunte e pergunte”. Só faça o procedimento quando se sentir totalmente seguro..

Skin of color

Os termos em inglês skin of color e people of color se referem a um grupo de pessoas com peles pretas, amarelas, indígenas e latinas. Ou seja, não caucasianas. As peles de cor, em tradução livre, são diversas e apresentam entre si uma série de diferenças e particularidades, mas, segundo o dermatologista André Moreira, o principal ponto em comum é a maior propensão à pigmentação.

Ao ter alguma doença, inflamação ou até um trauma na pele, as pessoas de cor têm mais chances de desenvolverem manchas — condição chamada de hipercromia pós-inflamatória. Esse é o principal motivo pelo qual é necessário um cuidado e um estudo específico na hora de indicar produtos e procedimentos para esses grupos étnicos.

Outras particularidades que pedem um olhar mais cuidadoso da dermatologia e da estética são produção maior de oleosidade e alterações anatômicas próprias de cada grupo étnico que precisam ser consideradas na realização de procedimentos com preenchedores.

A coordenadora do Departamento de Cosmiatria Dermatológica da Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD), Edilea Bagatin, explica que qualquer procedimento que agrida um pouco mais a pele promove uma reação inflamatória. Isso estimula a produção de melanina, podendo causar a hiperpigmentação.O que ela ressalta é que a hiperpigmentação pode acontecer mesmo em procedimentos bem-sucedidos, feitos com todos os cuidados. O importante, nesses casos, é o acompanhamento médico.

Edilea acrescenta que existem dois tipos de melanina na pele e todos possuem as duas formas, mas em proporções diferentes. A eumelanina tem coloração marrom a negra e a feomelanina, tons mais avermelhados e amarelados. Nas peles brancas e negras, predomina a eumelanina e nas asiáticas e indígenas, a feomelanina.

Contraindicação?

André Moreira não gosta de se limitar e dizer que existem tratamentos que não devem ser feitos. “O que precisamos entender é a necessidade de cada paciente e adequar os procedimentos à pele de cada um.” O dermatologista conta que diversos pacientes reclamam que já ouviram, por exemplo, que não podem fazer laser, o que não é necessariamente uma realidade.

Segundo o especialista, há inúmeras formas de usar a tecnologia do laser em tratamentos dermatológicos e que, certamente, é possível adequar e planejar de acordo com as particularidades daquela pessoa. “O fato de o paciente ter pele preta ou asiática não é um limitador da realização de procedimentos. Ele vai ser adequado para cada pessoa. E a forma de decidir isso é com uma formação que abrace e entenda a diversidade”, ressalta.

André explica que existem profissionais que buscam se aprofundar no estudo de peles negras e amarelas. “No meu caso, é pela vontade e necessidade de criar um espaço seguro para a comunidade na qual estou inserido”, completa. O médico se identifica como um homem negro e acredita que a ancestralidade da sua pele deve ser celebrada e protegida. Buscando fazer a sua parte para diminuir essa desigualdade, ele é membro e professor da Skin Society of Color, uma associação médica internacional voltada à dermatologia de pessoas de cor, criada em 2004.

André explica que a base de aprendizado dos serviços de residência médica no Brasil é no Sistema Único de Saúde e, segundo o Guia de Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, de 2017, a proporção de pessoas que consultaram um médico durante os últimos 12 meses anteriores ao estudo é maior entre as pessoas brancas (74, 8%) do que entre pretas (69,5%) e pardas (67,8%).

Estudos também mostram que a quantidade de fotos de peles pretas, amarelas, latinas e indígenas em livros de grandes autores da dermatologia são infinitamente menores que as de peles brancas.

Como atende uma grande quantidade de pessoas de cor, o dermatologista conta que quase diariamente percebe alívio dos pacientes, que se sentem gratos ao ver que André tem conhecimento para tratar de peles não brancas. “Não era para ser assim, as pessoas não deveriam ter medo de ir ao dermatologista e sentir que o médico não enxerga as particularidades da sua pele”, lamenta.

Apesar do atual contexto, André destaca que, quando atende um paciente preto que descobre novas possibilidades para se cuidar e sai feliz de um atendimento, sente que está fazendo um trabalho bem-feito e de relevância. “Ser um dermatologista que aborda não só os detalhes da nossa pele, mas que enxerga as dificuldades derivadas do racismo estrutural que sofremos todos os dias e que atua na busca de soluções é o que me dá forças.”

O medo das complicações

Modelo trans, Sierra Veloso dos Santos sonha em fazer laser para acabar de vez com a barba, mas não tem coragem
Modelo trans, Sierra Veloso dos Santos sonha em fazer laser para acabar de vez com a barba, mas não tem coragem (foto: Arquivo pessoal)

A modelo, influencer e estudante Sierra Veloso dos Santos, 21, deseja muito fazer depilação a laser, mas nunca teve coragem, em virtude da cor da sua pele. Com a pele negra mais escura, ela tem medo de passar pela despigmentação e segue adiando o tratamento.

Como deseja fazer o procedimento no rosto, para eliminar totalmente pelos indesejados, a possibilidade de uma complicação é mais assustadora. “Sou uma mulher trans, então estou sempre agredindo meu rosto, passando gilete para tirar a barba e queria muito fazer a definitiva, com laser. Mas o risco de ter o rosto manchado não vale a pena. Se eu me sentisse segura e pudesse fazer, seria uma mudança incrível na minha vida e na autoestima”, comenta.

O dermatologista André Moreira explica que todos os procedimentos e todos os pacientes e profissionais estão sujeitos a complicações. O que faz diferença é o preparo e o conhecimento das necessidades de cada pele, e a forma como uma possível complicação será conduzida e tratada.

Os planos da modelo são encontrar um profissional que tenha experiência em peles negras e que já tenha feito procedimentos semelhantes ao que ela busca. “Mas não é fácil. Infelizmente, ainda são muito poucos os profissionais que têm o foco na nossa pele. Até na maquiagem, mais de uma vez já fui dispensada por maquiadores que não tinham sequer bases para meu tom”, lamenta.

Fã de skincare desde criança, Sierra usa cremes, séruns, argilas, cremes noturnos, tônicos e demaquilantes. No período de seca, sua pele precisa de cuidados extras e ela está sempre buscando referências de produtos que atendam às particularidades de sua pele. Entre as maiores dificuldades, está o protetor solar. Muitos deles deixam a pele negra cinza ou esbranquiçada. “Minhas maiores fontes de informação são outras pessoas pretas. Vejo muitos vídeos no YouTube e, quando vou comprar um produto, vejo se alguém que sigo já usou e indica.”

O principal sentimento da modelo dentro desse contexto é de exclusão. “É um absurdo que em um país como o Brasil isso ainda aconteça. Temos diversas peles e tons. Por que investir em um procedimento que só atende a um público, que sequer é maioria?”, questiona.

A importância da busca por informação

A influenciadora Carol Wanze lamenta o fato de ainda existirem poucos locais especializados em tratar peles negras
A influenciadora Carol Wanze lamenta o fato de ainda existirem poucos locais especializados em tratar peles negras (foto: Arquivo Pessoal)

A influencer e universitária Ana Caroline Wanzeller, 21, conta que a primeira pergunta que faz sobre qualquer intervenção que pretende fazer é: “Como funciona e como reage na pele negra?” O questionamento é fruto de um entendimento de que a maioria das coisas não é feita ou pensada para a pele negra e também do sentimento de responsabilidade que tem com suas seguidoras, que fazem a mesma pergunta a ela.

Com muita vontade de fazer depilação a laser, foi tomada pelo choque e pela frustração ao descobrir que são poucos os lugares em Brasília que têm tipos de laser adequados para pele negra. Conhecida como Carol Wanze nas redes, ela já deixou de fechar parcerias com clínicas de depilação pelo fato de não sentir segurança na forma como sua pele seria tratada. “Eu fiquei bem chateada, me chamaram para a parceria e sequer tinha um laser adequado para mim no local.”

Depois de um ano de muita pesquisa, Carol encontrou uma clínica com o laser ideal para sua pele e descobriu outras clientes negras que se trataram no local. “Senti confiança e resolvi também fazer uma parceria com eles para divulgar para os meus seguidores que, assim como eu, buscam serviços que atendam pessoas pretas.”

Caroline acrescenta que nunca teve um dermatologista negro e que sente falta de encontrar profissionais que, além de compreender melhor sua pele, proporcionem um sentimento de identificação e segurança.

A influencer afirma, ainda, que a falta de informação não atinge só intervenções estéticas, mas o uso de produtos ideais para cada pele, incluindo para cabelo e maquiagem. “Falta muita informação e, por isso, eu me esforço para compartilhar esse tipo de conteúdo no meu Instagram. É importante estarmos inseridos na sociedade de todas as formas. Somos pessoas e merecemos ter cuidado com nossa pele e cabelo como todo mundo”, completa. 

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    Modelo trans, Sierra Veloso dos Santos sonha em fazer laser para acabar de vez com a barba, mas não tem coragem Foto: Arquivo pessoal
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    A influenciadora Carol Wanze lamenta o fato de ainda existirem poucos locais especializados em tratar peles negras Foto: Arquivo Pessoal
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