Cidade nossa

O sapo regurgitado

Paulo Pestana - Especial para o Correio
postado em 05/12/2021 00:01
 (crédito: kleber sales)
(crédito: kleber sales)

Eram meados dos plúmbeos anos 1960. Acostumado a dar ordens, o sargento Antônio Maciel Pinheiro presidia a TV Nacional de Brasília, então canal 3, e chamou em sua sala o apresentador do programa Talento 70, atração dos finais de semana na emissora. Fernando Lopes, sujeito cordato, que gozava do prestígio de ter sido o primeiro cantor contratado pela emissora, ouviu a instrução:

"Não quero mais que você chame aquele cantor para se apresentar no programa. Não fica bem para nossa emissora", disse o militar travestido de comunicador. Era o final da década de 1960, e "aquele" cantor era Ney de Souza Pereira, jovem enfermeiro do Hospital de Base que também era ator, cantava e havia acabado de interpretar Dindi, canção de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira.

Não havia espaço para contestação, e o jovem cantor, que depois ficou conhecido como Ney Matogrosso, foi vetado. Fernando Lopes havia visto o artista na outra emissora de TV — ele acredita que era o programa de Darlan Rosa, na TV Brasília — e tinha planos para transformá-lo em uma atração permanente, mas, mesmo sem nunca ter servido ao Exército, teve que bater continência para a vontade do sargento-diretor.

Por algum motivo, Ney Matogrosso foi liberado para participar do programa Dimensão, com a cantora Glória Maria, que, por acaso, era comadre de Fernando Lopes. Mas não foi mais ouvido no Talento 70 nem no show de Darlan Rosa, da TV Brasília, que, anos depois, seria reconhecido como artista plástico e virou até nome de prédio, mas, ainda naquele tempo, fez furor como o titio Darlan da TV, que, para espanto da petizada, pintava com as duas mãos ao mesmo tempo.

Nenhuma das apresentações pioneiras de Ney Matogrosso na incipiente programação da televisão brasiliense tem registro em vídeo — naquele tempo, ninguém pensava nisso e, além de tudo, era caro; só a embaixada norte-americana tinha um gravador de vt em Brasília. Talvez, por isso, as apresentações não estejam registradas na ótima e recém-publicada biografia do artista, escrita por Júlio Maria. O livro também deixa transparecer que, na época, Ney tinha pouco interesse em música, o que não é bem verdade.

O cantor continuou exibindo sua voz de tenore bianco no coral do Centro de Estudos Musicais do colégio Elefante Branco, criado pelo maestro Reginaldo Villa de Carvalho e, posteriormente, no Madrigal, do maestro Levino de Almeida, até se mudar para o Rio de Janeiro e começar a fazer história no grupo Secos e Molhados, abrindo a cabeça do país a partir de um videoclipe no programa Fantástico, da TV Globo.

Quando o grupo esteve em Brasília para superlotados shows no Ginásio Nilson Nelson, Ney Matogrosso já era uma superestrela. E a TV Nacional registrou todo o espetáculo. Exibida a gravação, Fernando Lopes teve a oportunidade que esperava para regurgitar o sapo engolido anos antes. Depois que ouviu o sargento elogiar o grupo, não resistiu e falou:

— Sabe esse cantor aí? É o mesmo que o senhor mandou tirar do ar. O nome dele é Ney Matogrosso. 

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