Especial

Meu corpo e eu

Ailim Cabral
Jéssica Eufrásio
postado em 01/05/2022 00:01
 (crédito: Minervino Júnior/CB/D.A.Press)
(crédito: Minervino Júnior/CB/D.A.Press)

A relação do personal chef Douglas Cardoso Gonçalves, 31, com a própria sexualidade teve, além do sentimento de culpa pela busca por prazer, mais um agravante: a orientação sexual. Crescer ouvindo que tinha algo errado no jeito dele gerou um peso que o perseguia sempre que se permitia explorar e vivenciar o que lhe dava prazer — se relacionar com outros homens.

Com esse fardo, que se tornava maior do que o bem-estar proporcionado pelas interações com pessoas que o atraíam, Douglas decidiu se fechar completamente. "Só recentemente comecei a me aceitar, não apenas como gay, mas a amar meu corpo, conhecê-lo, descobrir onde e como eu sentia mais prazer. Essa foi a primeira etapa para que eu pudesse experimentar prazer com alguém", conta.

Douglas é categórico sobre a importância do diálogo natural sobre sexo para que pudesse ter uma vida mais feliz: "Quando você tem conhecimento, sem culpa, sem medo de parecer vulgar, consegue curtir os momentos, sentir e dar prazer". O personal chef acredita que o movimento do bem-estar sexual hoje será essencial para que menos pessoas passem pelo que ele enfrentou e tenham a oportunidade de experimentar práticas saudáveis antes dos 30 anos, sem tantos traumas.

Vivendo uma experiência semelhante à de Douglas e de tantas outras pessoas, a artista, maquiadora e técnica em enfermagem Katrinna Luna Souza, 33, conta que, apesar de se interessar pelo próprio corpo desde a adolescência, ainda tem dificuldade de conversar sobre alguns assuntos. Ela se identifica como travesti e iniciou o processo de transição aos 30 anos. Quando mais nova, morria de vergonha de entrar em uma sex shop. "Eu me escondia e tinha medo. Hoje, compramos produtos eróticos como se estivéssemos em uma loja de roupas, com a maior tranquilidade."

Fã de lingeries chiques e cheias de renda, Katrinna lembra que a questão de gênero também era um tema mais difícil na juventude dela. Agora, sente-se mais à vontade para buscar e comprar o que a agrada. "É legal que as lojas já vendem e expõem os produtos de uma forma não binária. Não tem aquela coisa de uma parte de homem e uma para mulher. Qualquer pessoa pode usar."

A travesti ressalta, também, a importância de ensinar às pessoas como os produtos podem ser usados para dar prazer de acordo com cada corpo, além dos cuidados necessários com higiene, bateria e todos os demais processos que envolvem qualquer outro tipo de compra.

Um vibrador para chamar de seu

A capacidade de distinguir texturas, sabores, imagens, cheiros e sons faz parte da natureza humana e leva a uma busca constante por experiências sensoriais. Entre elas, vivências sexuais. Com um olhar sobre novas exigências, um público mais aberto ao autoconhecimento e à quebra de padrões que, por muitos anos, rodearam esse tema, empresas e empreendedores têm investido em formas de auxiliar nessa jornada.

Quem teve contato com lojas de produtos eróticos há alguns anos provavelmente se lembra da variedade limitada dos itens. Inspirada em contextos da pornografia, parte considerável dos estabelecimentos oferecia mercadorias, quase sempre, em formatos falocêntricos. De poucos anos para cá, porém, o universo de produtos voltados ao sexo passa por transformações. Não é difícil encontrar brinquedos — para adultos — que apostam na descontração, na irreverência, em cores e em formas diversas de alcançar o prazer.

O que antes carregava um estigma mais pesado, e que pela própria estética podia ser motivo para constrangimento, tornou-se algo mais leve, com produtos feitos de materiais macios e de qualidade superior. Empreendendo no mundo erótico há 10 anos, a sócia-proprietária da Egalité, Luana Lunerz, 29, lembra que, quando começou na área, esse tipo de produto ficava escondido em cantos escuros, mas que, em sua origem, sex shops eram lugares de cuidado com a saúde.

Criada na Alemanha, nos anos 1960 e por uma mulher, a primeira sex shop do mundo se chamava Instituto da Higiene Conjugal e era voltada para a saúde sexual feminina. Além de brinquedos sexuais, Beate Uhse oferecia conselhos e dicas sobre métodos contraceptivos.

Luana se surpreendeu ao descobrir sobre a iniciativa de Beate e em como as mulheres demoraram a retomar esse protagonismo, enquanto tudo o que se referia ao prazer sexual era voltado e criado por homens. Ela acredita que o tabu contribui para esse tipo de visão e afasta as mulheres da busca pelo prazer. "Para nós, a culpa é ainda pior. Recebo muitas mensagens de mulheres que nunca gozaram e acham que tem algo de errado com elas", lamenta.

Nesse contexto, Luana focou sua produção no prazer mais igualitário. "Eu me esforço para criar um espaço acolhedor e falar sobre tudo, inclusive sobre como usar os produtos voltados para nosso prazer, sem vergonha", completa.

A partir das próprias demandas e da percepção sobre a ausência de espaços receptivos para o público feminino, Izabela Starling e Heloisa Etelvina decidiram mudar esse cenário, em 2018, quando criaram a PantyNova.

Longe da proposta de ser uma sex shop, a empresa se posiciona como uma loja de bem-estar sexual. "Nossa história começou a partir de uma dor muito pessoal nossa, diante da falta de um lugar acolhedor onde se encontrassem produtos eróticos. Éramos consumidoras e nos sentíamos intimidadas", conta Izabela.

Outro ponto abordado é a educação sexual. Por meio de conteúdos nas mídias sociais, a equipe da PantyNova tenta quebrar tabus em torno de assuntos como masturbação, orgasmo, prazer, vibradores, mulheres com vida sexual ativa e, claro, relacionamentos afetivos. Tudo com bastante descontração.

"Sempre fomos uma marca pautada no conceito de comunidade. Tudo o que lançamos veio de conversas muito abertas e percebemos que fazia mais sentido comunicar para todes. Antes, focávamos mais no público feminino, mas temos inserido itens para pessoas com pênis também", ressalta Izabela.

O pioneirismo da marca com o conceito de nutrição da sexualidade como forma de favorecer o autoconhecimento e de contribuir com a autoestima inspirou negócios semelhantes, e o segmento deslanchou, especialmente, no ano passado. Com mais pessoas em casa, a demanda aumentou. "O grande diferencial é que nossa equipe é formada quase que totalmente por pessoas LGBTQIA , mulheres. Fomos os primeiros a trabalhar com itens que não eram fálicos, para atender a todes", completa Heloisa.

E por que não, nosso?

Quando pensou em abrir a No Ponto, sete anos atrás, a empresária Beatriz Luca, 25, queria oferecer uma experiência próxima aos clientes. Comprometida com a testagem dos produtos, ela própria decidia, como uma curadora, o que funcionava bem e, portanto, merecia ser compartilhado. Hoje, ao lado do parceiro profissional, o namorado e co-owner da marca, Samuel Dacher, 36, a empresária consegue disponibilizar itens para todos os gostos, sejam para pessoas com pênis ou vagina.

Em um espaço descontraído, colorido e acolhedor, na 506 Sul, a No Ponto vende desde geis lubrificantes até sex toys para se divertir em dupla ou por conta própria. "Percebemos uma mudança grande de cinco anos para cá. Antes, havia muitos produtos falocêntricos, pensados por homens. Hoje, os itens são de melhor qualidade, em silicone, recarregáveis, divertidos e capazes de levar ao orgasmo em menos de dois minutos", conta Beatriz.

A proposta de incentivar experiências positivas é um dos objetivos da marca desde o início. E essa meta pressupõe um entendimento importante, segundo ela: "Seu prazer não depende de outra pessoa". Coincidentemente ou não, a definição do mote, o fato de Beatriz e Samuel serem um casal e o ambiente receptivo da loja têm ajudado a atrair cada vez mais clientes. "Alguns homens até preferem falar comigo. Mas, também, passamos uma imagem mais leve da sexualidade, porque falamos disso com naturalidade, que não é errado sentir prazer nem investir nisso para um momento seu, de se conhecer e se conectar", diz Samuel.

Com uma loja de peças de vestuário em couro sintético, a empreendedora Anna Carolina de Araujo, 27, confirma que, independentemente do gênero, não há limite para a criatividade quando o assunto é sexualcare. Nos últimos dois anos, ela viu crescer a procura pelos produtos, tanto para uso individual quanto para casais hétero e homoafetivos. "Meu público sempre foi mais feminino. Mas, na pandemia, muitos homens me procuraram. Geralmente, os gays buscavam itens para o dia a dia, para ousar mais. Entre os heterossexuais, houve bastante compra para presentear as companheiras, principalmente por aqueles casados há muitos anos", detalha a dona da Pour Mademoiselle.

Seja para apimentar a relação, seja para apreciar a autoimagem, os produtos caíram nas graças do público, conta Anna Carolina. E o que nasceu como algo voltado à sexualidade tem se expandido para um negócio do ramo fashion. "As pessoas são muito visuais. Tem o lado do fetiche, sim, pois não é algo que se vê diariamente. Se você tem vontade de fazer algo, se joga. Não tenha medo do julgamento, porque ele sempre vai existir", recomenda.

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  • Douglas demorou para explorar a própria sexualidade, mas hoje vive sem amarras
    Douglas demorou para explorar a própria sexualidade, mas hoje vive sem amarras Foto: Arquivo Pessoal
  • Katrinna tem uma sexualidade plena, mas ainda tem certa vergonha em falar sobre o tema
    Katrinna tem uma sexualidade plena, mas ainda tem certa vergonha em falar sobre o tema Foto: Arquivo Pessoal
  • Sócia-proprietária da Egalité, 
Luana defende o prazer igualitário
    Sócia-proprietária da Egalité, Luana defende o prazer igualitário Foto: Jociele Rodrigues/Divulgação
  •  26/04/2022 Crédito: Minervino Júnior/CB/D.A Press. Brasil.  Brasilia - DF. Bem Estar sexual. Sex Shopping no Ponto Bia (Beatriz) proprietária.
    26/04/2022 Crédito: Minervino Júnior/CB/D.A Press. Brasil. Brasilia - DF. Bem Estar sexual. Sex Shopping no Ponto Bia (Beatriz) proprietária. Foto: Minervino Júnior/CB/D.A.Press
  • Sócia-proprietária da Egalité, 
Luana defende o prazer igualitário
    Sócia-proprietária da Egalité, Luana defende o prazer igualitário Foto: Egalite/Divulgação
  • Sócia-proprietária da Egalité, Luana defende o prazer igualitário
    Sócia-proprietária da Egalité, Luana defende o prazer igualitário Foto: Egalite/Divulgação

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