Cidade nossa

O desprezo é uma arma quente

Paulo Pestana - Especial para o Correio
postado em 22/05/2022 00:01
 (crédito: Maurenilson Freire)
(crédito: Maurenilson Freire)

Precisei comprar um computador novo e, quando fui usá-lo pela primeira vez, demorei uns bons minutos para encontrar o ponto de interrogação. Acho que faz sentido. Embora seja produto estrangeiro, é o retrato de uma época em que as pessoas têm tantas certezas que não se importam mais com perguntas. Ou com fatos.

Sou repórter. Fui educado para perguntar e raramente tenho resposta para alguma coisa; pelo menos que me satisfaçam. Mas ninguém mais se permite ser ignorante sobre nada, o que só aumenta a ignorância geral de quem enxerga o Google como oráculo, que tem resposta até para o sentido da vida. Mas saber — ou fingir saber — não basta mais: é preciso ter posição, opinião.

Pitaco foi um dos sete sábios da Roma antiga, colega de Tales, Solón, Bias e outros autores de aforismos inscritos no templo de Apolo, em Delfos. Quis o espírito inzoneiro e sestroso do brasileiro, definições registradas na Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, que nesta terra de palmeiras — pindorama — pitaco fosse transformado em substantivo, sinônimo de palpite.

E nunca se viu ou ouviu tanto pitaco. Todo mundo parece ter opinião formada sobre tudo, num festival de certezas que, ao contrário do que pretende, só mostra que a estupidez é ilimitada. O mundo se transformou num grande balcão de bar que, como se sabe, é o bastião da verdadeira liberdade de expressão. A diferença é que ali há espaço para o desprezo, que é a única coisa que segura o ser humano. Mais do que a vaia.

Nelson Rodrigues dizia que não há nada mais consagrador que a vaia. "A grande vaia é mil vezes mais forte, mais poderosa, mais nobre do que a grande apoteose. Os admiradores corrompem", disse. A vaia é estrepitosa, o desprezo é silencioso — e o silêncio machuca, não tem a dramaticidade consagradora.

O desprezo é remoído, alimenta o que o ser humano tem de pior, picha as paredes brancas do caráter e, da mesma forma que os espíritos-de-porco fazem nos muros urbanos, sujam. As redes sociais estão tomadas por pichadores; gente que não tem o que dizer e tenta borrar a produção alheia. Escondem-se no anonimato.

O pichador de boteco é de outra categoria, tem brio; defende o que diz com a bravura dos vikings, ainda que seja uma rematada estupidez. E os companheiros defendem o direito de qualquer bárbaro dizer o que quiser — só não o livram do desprezo.

A noite estava alta e o nível da garrafa baixo quando ele levantou a voz para dar uma opinião sobre o aumento dos casos de covid. "Eu acho" — começou mal. "Que isso é conversa para vender vacina, ainda mais essa vacina aí que não funciona", concluiu. Noel Rosa já tinha escrito que quem acha vive se perdendo, mas hoje o povo só ouve Anitta ("Rebolei delícia, ui, tô acesa, eu sou sua rainha, mas gosto de safadeza").

O achômetro era baseado nos "especialistas", essa ridícula figura dos nossos tempos e o bárbaro ficou esperando a vaia. Não veio. Todos se viraram para a TV para ver as emoções de Vila Nova e Tombense.

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