Cidade nossa

Por uma goiaba alucinógena

Correio Braziliense
postado em 29/05/2022 00:01
 (crédito: Caio Gomez)
(crédito: Caio Gomez)

Fui obrigado a cortar mais uma goiabeira que nasceu sem pedir licença, certamente semeada por um passarinho que frequenta o quintal. Não é a primeira, e o motivo foi o de sempre: os frutos pareciam nascer habitados por bichos, quando não vinham com a casca rachada, dura e cheia de nós.

Pelejei para que as goiabas viessem sãs; só não apelei para agrotóxico porque nessas coisas de veneno é melhor não mexer. De água de fumo a saquinho de pano, foram várias as receitas usadas, mas o bicho de goiaba é um ser admirável, um resiliente, quase uma barata.

O bicho, óbvio, não nasce na goiaba; chega inoculado por uma mosca, vira uma lesminha e, quando a fruta cai no chão, forma um casulo de onde sai à imagem e semelhança da mãe, uma mosca-das-frutas que vai voar até achar uma goiabeira.

Quando menino, perguntavam: quando morde a goiaba, prefere encontrar um bicho, meio bicho ou nenhum bicho? Era melhor encontra um bicho, que poderia ser tirado; meio bicho era sinal que a outra metade estava na boca; e nenhum podia ser sinal que o bicho já estava no bucho.

Bicho de goiaba, goiaba é, diz o matuto, mas não é agradável dividir o prato com o bigato (sim, este é o nome da larva). E, ademais, o matuto que nos perdoe, mas não é porque galinha só come milho que vira cereal e pode ser comida pelos veganos.

Bigato é proteína; não faz mal a ninguém, até porque na hora em que estiver no estômago, o suco gástrico dá seu jeito. Ao contrário, pode fazer bem; significa que ninguém usou agrotóxico — termo que, por lei, deve ser substituída por defensivo agrícola, o que prova que, para os parlamentares que aprovaram a novidade, o que faz mal à saúde é a semântica.

Ainda pensei nos passarinhos que podem se alimentar da fruta e do bicho, mas parece que até eles preferem jabuticabas, brotos de pêssego e amoras. Nenhum deles deu uma bicada sequer nas goiabas e o pé foi ao chão, até porque estava atrapalhando as babosas.

Goiaba, melhor comprá-las. Outro dia mesmo, parado no sinal, comprei uma bandejinha cheia delas. "É vermelha?", perguntei, sem saber por quê. "Claro, doutor", respondeu o rapazinho. Em casa, lavei os frutos — bonitos, grandes — e mordi: claro, era branca. Pior: parecia que eu estava comendo isopor molhadinho; não havia sabor.

Deve ser um tipo de goiaba para quem não gosta de goiaba, pensei. Para quem não gosta de nada, aliás. O que é muito estranho.

Goiaba tem cheiro forte, sabor pronunciado; quando colocada no tacho, minutos antes de virar goiabada, o aroma invade todo o ambiente; e quando o açúcar é misturado, vai ainda mais longe — a proporção é brutal: meio quilo de açúcar para cada quilo de goiaba batida e coada. A vizinhança toda fica sabendo quando o doce é mexido para não grudar.

Ultimamente, tenho procurado uma goiaba alucinógena do tipo que a ex-ministra Damares Alves, que agora deu de pedir voto, comeu quando era criança e viu o Nazareno. Se for dessas, pode até ter bicho.

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