Cidade nossa

A vida das moscas

Paulo Pestana - Especial para o Correio
postado em 10/07/2022 00:01
 (crédito: Caio Gomez)
(crédito: Caio Gomez)

Dizem que o uirapuru só canta quando está fazendo ninho.

Eu, que só conheço o canto do uirapuru porque o Silvestre Gorgulho me deu um relógio que, a cada hora, canta um passarinho diferente, fingi concordar - há de se convir que não dá para contrariar quem tenta puxar um papo a partir de uma afirmação dessas. Mas não fui adiante. E nem poderia. Entendo bulhufas de passarinho.

— A gente reclama que a vida é curta, mas uma mosca só vive por 10 dias.

Eu, que estava no balcão, tomando um chope, pensando na vida, olhei para o sujeito que eu nunca havia visto antes e meneei de leve a cabeça, sem palavras. Nem saberia o que dizer.

Minha cultura inútil não é desprezível — sei até o nome do cavalo e do cachorro do Fantasma, que aliás um dia foi chamado de Fantasma Voador, mesmo sem saber voar. Sei até que Bonnie & Clyde morreram alvejados por 187 tiros. Mas de mosca nada sei além da perturbação que causam.

— Dizem que avestruz esconde a cabeça num buraco. Na verdade, elas encostam o ouvido no chão para ver se tem predador chegando.

Acabaram todas as dúvidas. Eu estava diante de um conversador. Tem gente que tem essa necessidade de puxar conversa com estranhos, mas era uma situação diferente, um sujeito de cultura pouco comum no bar, onde, normalmente, a gente encontra especialistas em outras áreas: futebol, mulher, cachaça, pescaria. Até poesia.

É preciso dizer que eu tenho uma espécie de imã para esses achamorrados e assemelhados; eles costumam me notar, se achegam e puxam uma conversinha mole. Mas se é para puxar papo furado, melhor seria falar da periclitante situação do Flamengo. Ou da separação da Simone e Simaria, as quais eu nunca tinha ouvido falar. Ou ainda um assunto mais relevante: a conjunção carnal de Jove e Juma, em Pantanal. Mas o camarada só queria saber de mosca, avestruz e passarinho.

O maçante é, normalmente, um sujeito de princípios, não aceita muito bem as críticas e reparos. Gosta de falar sozinho, expor fatos que aticem a curiosidade alheia e provoquem uma resposta que vira uma conversa comprida. E um dos truques para se livrar da sina é não dar cabimento, evitar reações, muito menos assertivas — sim, eles não têm dúvidas, só certezas. Todas absolutas.

— Cabra firme mesmo era o Gandhi, que dormia pelado ao lado de mulheres também nuas para pôr sua abstinência à prova.

Difícil não comentar essa. Mas como não se sabe o que vem depois, achei melhor ficar quieto; até porque não me interesso muito pela vida sexual nem dos filhos de Gandhi, quanto mais do pai.

Tudo acaba. E o caboclo vai-se embora, surpreendentemente, sem lançar um novo petardo. É acompanhado discretamente pelos olhos; há sempre o perigo de uma meia volta. Foi-se. Vou tomar meu chopinho em paz, mas um amigo me interrompe:

— Lê aqui: na Suíça, quem mora em apartamento não pode dar descarga depois das dez da noite! 

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