Especial

Mulheres tatuadoras conquistam espaço em meio ao preconceito

Após a diminuição do preconceito com pessoas tatuadas, as mulheres ainda precisam vencer o machismo e se firmarem na profissão

Relatos históricos mostram que as tatuagens são tão antigas quanto às civilizações. Os desenhos na pele são usados há milhares de anos, com diversos objetivos, que vão de demonstração de status a conexões religiosas. Mas um aspecto curioso dos antigos costumes que, infelizmente, demorou para chegar à cultura atual é o fato de que em muitos povos as mulheres eram tão, ou mais, tatuadas que os homens.

Na sua popularização no mundo moderno, as tatuagens foram atreladas tanto ao masculino quanto ao bruto e marginalizado. O processo de naturalização é longo e, apesar de ter passado por uma grande evolução nos últimos 20 anos, ainda precisa avançar.

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Desde a Antiguidade, as tatuagens são mais uma das formas de expressão que o ser humano encontrou para comunicar algo sobre si. E por que esse direito deve ser restringido de acordo com gênero, condição social ou financeira? A Revista conversou com mulheres que veem as tatuagens como parte da própria história e dizem o que pensam ao mundo: uma tattoo de cada vez.

Criadora e criatura, ou melhor, tatuadora e tatuada

A tatuagem entrou na vida de Beatriz Araújo, 26 anos, bem antes da profissão. Desde criança ela era apaixonada pelos diversos tipos de arte e, depois de acompanhar as primas mais velhas em uma sessão de tatuagem, encantou-se.

Aos 12 anos, a adolescente começou a passar as tardes livres depois das aulas sondando um estúdio de tatuagem que ficava perto da escola. Vidrada nos quadros e pinturas das paredes, ficou fascinada com o sentimento de libertação feminina, enfrentamento e expressão que as tatuagens representavam na época. "O corpo vira um veículo de informação."

Ao completar 15 anos, conseguiu convencer a família que estava pronta para dar início à sua jornada pelo mundo das tatuagens. O processo não foi simples, Beatriz precisou lutar para mudar a forma como os parentes viam as tatuagens e, depois disso, claro, convencê-los de que ela era madura o bastante para tomar a decisão de marcar a pele para sempre.

O medo de que a jovem pudesse se arrepender desapareceu pouco tempo depois. Envolvida no universo das tattoos, estudando os desenhos e as técnicas, aos 17 ela viveu a primeira experiência como tatuadora, profissão que exerce há quase uma década.

Hoje, tudo é aprendizado, mas Beatriz sofreu até encontrar seu lugar no meio. Sem o apoio inicial da família, que via a carreira como algo indecente e vergonhoso, enfrentou sozinha uma série de episódios que a desencorajaram e traumatizaram.

"Ter 17 anos e me inserir em um ambiente reinado por homens não foi uma tarefa fácil. O senso comum faz a gente acreditar que o meio é super inclusivo e aberto, mas o sexismo me fez, muitas vezes, questionar se eu pertencia", lembra.

Beatriz só passou a se sentir mais confortável depois que começou a atuar em estúdios femininos, onde se sentia valorizada e respeitada pelas colegas, sem reproduzir o sentimento de competição e vulnerabilidade que antes era imposto a ela.

Obstáculos na sociedade

Hoje, além de tatuadora, Beatriz é estudante de artes visuais e enxerga as artes como recortes da sociedade. "Elas acompanham os processos históricos e reproduzem estereótipos estruturais. O machismo e seus desdobramentos estão presentes nos estúdios de tatuagem."

Fotos: Carlos Vieira/CB/D.A Press - Beatriz Araujo no studio Tattoos.

Nos ambientes corporativo e acadêmico, ela também sente a desvalorização de seu trabalho. A jovem ouviu de professores e colegas que sua profissão era apenas uma forma de ganhar dinheiro fácil. Em um estágio como professora de artes em uma escola de ensino fundamental II, foi orientada a cobrir os braços e o pescoço com roupas de frio. A justificativa era que ela poderia influenciar as crianças de forma negativa.

Quando tentou seguir carreira militar — um dos seus sonhos — foi impedida de se alistar porque uma de sua tatuagens no joelho era visível, o que, para o Estado, tornava seu ingresso inadmissível.

Apesar das dificuldades, Beatriz não se arrepende. Ela comemora, por exemplo, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), de 17 de agosto de 2016, na qual editais de concurso público não podem estabelecer restrições para pessoas com tatuagem. "É um marco dessa mudança significativa e é de extrema importância na luta diária de todas que vivem de arte no Brasil e se expressam livremente", completa.

Um pouco de história

Egípcios, pictos, polinésios e povos indígenas das Américas já se tatuavam. Com diferentes técnicas e objetivos, registros na pele foram encontrados em múmias e confirmados em diversas culturas ao redor do mundo por meio de estudos sociológicos e antropológicos.

Entre os polinésios, elas eram usadas como símbolos de poder e hierarquia; no Japão, como status de nobreza. Entre os maoris e povos da América Central, os desenhos estavam relacionados a guerras e batalhas. No Antigo Egito, as marcas no corpo eram uma forma de conexão com o divino.

As tatuagens acabaram sendo difundidas no mundo moderno por meio dos marinheiros, o que trouxe um estigma negativo. Foram associadas aos que viviam à margem da sociedade e aos presos, que usavam as marcas para serem identificados.

Hoje, os desenhos alcançaram um status de arte e, além da forma de expressão, muitas pessoas os usam como formas de eternizar momentos, lugares e pessoas importantes, além de uma forma de se sentir próximos do que amam.

Em um momento de pura adrenalina, após a formatura na faculdade de educação física, Deusa Braga Macedo, 65 anos, fez sua primeira tatuagem. Hoje, a flor desenhada para marcar o fim de uma fase tão importante tem mais de 30 anos de história.

Fotos: Arquivo pessoal - A primeira tatuagem de Deusa, feita há mais de 30 anos

Mesmo inserida em um ambiente mais liberal, nem sempre suas tatuagens eram vistas com naturalidade. Na profissão de educadora física, os desenhos a tornavam mais descolada e moderna. Ainda que existisse o choque inicial, ele quase sempre era seguido por um "combinou muito com você!"

Dentro de casa as coisas foram diferentes. A arte precisou ser escondida do pai por um tempo e, mesmo depois de conformado, ele deixava claro que não gostava da tatuagem — relacionava com um estigma de rebeldia e transgressão. Por mais que os comentários negativos não tenham afetado sua decisão, os preconceitos sofridos também ficaram marcados em Deusa.

Quando foi conhecer a família do namorado, ele pediu que ela cobrisse a tatuagem para causar uma boa impressão em seus pais. "Como era a primeira vez que os via, aceitei. Mas avisei que isso não ia se repetir. Se eles fossem me aceitar de verdade, teria que ser como eu sou, com ou sem tatuagem", lembra.

A flor na perna acabou não sendo um obstáculo, Deusa e o atleta Washington Macedo, 59, somam mais de 27 anos juntos. O vestido vermelho escolhido por ela para subir ao altar causou muito mais surpresa do que o delicado desenho na pele.

Anos depois, Washington seguiu o exemplo da mulher e tatuou o símbolo do Canastra Warrios, um campeonato de ciclismo em São João Batista da Canastra (MG). Sua participação no evento foi marcante e ele quis registrar o momento para sempre. A homenagem rendeu até frutos inesperados: a organização da competição garantiu que o atleta terá acesso gratuito a todas as provas em que participar.

E como muitos filhos que seguem o exemplo dos pais, não demorou muito para que a filha do casal, Diana Braga, 25, quisesse ostentar rabiscos na própria pele. Aos 12 anos, ela fez o pedido para os pais, que disseram que a autorização só viria aos 18. Assim que chegou à maioridade, Diana usou o primeiro salário para bancar o sonho. Ela foi além e, hoje, é a mais tatuada da família, com 13 desenhos colecionados nos últimos seis anos.

"A mudança de mentalidade das gerações é visível. Desde os traços, as cores e os estilos, até a mentalidade das pessoas. Minha filha, com certeza, não seria vista da mesma forma se tivesse nascido na mesma época que eu, e ainda bem que isso mudou", completa Deusa.

Preconceito dos dois lados

Tatuadora há cinco anos, Larissa Azevedo, 27 anos, reconhece e comemora a diminuição do preconceito contra pessoas que têm tatuagens, mas pondera que o cenário sempre foi mais atrasado para elas. Primeiro, o estigma contra homens tatuados diminuiu. Eles deixaram de ser enxergados como marginais para serem vistos como revolucionários e modernos. Já as mulheres da mesma geração não tinham o privilégio de carregar essas características como elogios.

Com o passar das gerações e a resistência de mulheres que tiveram a ousadia de não se conformar, a tatuagem passou a ser mais aceita e bem-vista nas peles femininas. E um ponto fundamental foram as mulheres do outro lado da agulha.

Arquivo pessoal - A tatuadora Larissa Azevedo e alguns dos seus desenhos: traços delicados
Arquivo pessoal - Desenhos criados e tatuados por Larissa Azevedo
Arquivo pessoal - Desenho criado e tatuado por Larissa Azevedo

Larissa tem o próprio estúdio e tanto ela quanto outras jovens tatuadoras sabem a importância de quem veio antes delas, vivendo e trabalhando em ambientes majoritariamente masculinos. Ela lembra que quando dividia estúdios com colegas homens, mais de uma vez, passou por situações constrangedoras, ouvindo comentários e brincadeiras machistas enquanto atendia.

Em alguns lugares, os colegas davam a ela tarefas como limpar e arrumar o estúdio e quase nenhum cliente era direcionado para sua mesa. "Claro que melhorou muito, mas ainda existe esse machismo no meio. Além de ser ruim para as profissionais, incomoda as clientes, que podem até desistir de tatuar, em situações assim", lamenta.

Com um estilo de traços finos, tatuagens coloridas e delicadas, Larissa desejava trabalhar em um espaço que refletisse sua arte. As paredes brancas do seu estúdio têm poucos desenhos, todos eles criados por ela. Prezando pelo atendimento humanizado e por desenhos únicos, a jovem se encontrou no nicho das tatuagens afetivas. Sendo responsável pela primeira tattoo de muitas pessoas, a maioria delas conta uma história preciosa.

Entre 100 clientes, apenas dois são homens, mas isso não a incomoda. "Acho que é muito de estilo. O fine line é mais delicado e, normalmente, mais escolhido por mulheres, mas, sem dúvidas, muitos homens ainda têm preconceito em se tatuar com mulheres", acredita.

Atendendo mulheres de 10 a 75 anos, com uma maioria de clientes entre os 30 e 40 anos, Larissa acredita que a mudança de mentalidade, finalmente, beneficia mulheres que sempre quiseram marcar momentos importantes na pele, mas tinham medo do preconceito.

Guru e Lino

Apaixonadas por Brasília, pela arte e uma pela outra, a estudante Helena Maria Rodrigues, 19 anos, e a servidora pública Ana Maria Rodrigues, 52, resolveram eternizar na pele uma ilustração de Pedro Sangeon, o criador do Gurulino, pelos traços de Davi Braz.

 

Arquivo pessoal - Tatuagens de Ana Maria e Helena

Mãe e filha são fãs de Pedro e de Gurulino há anos. Contemplativo e espirituoso, Lino ganhou o coração das duas. Em desenhos espalhados pela cidade e no Correio, um cara comum em uma viagem pelo seu universo interior sugere reflexões de forma simples e criativa. A partir de pequenas adaptações, a arte saiu dos muros e foi parar na pele.

"É um abraço aconchegante que forma um coração envolvido por algumas plantinhas. O equilíbrio perfeito entre nós. A mãe, Guru, amorosa e espiritualizada, e a filha, Lino, cética e curiosa, unidas por um laço eterno", derrete-se Ana Maria.

Como servidora pública, Ana Maria revela já ter ouvido comentários negativos sobre suas tatuagens no ambiente de trabalho, além de alguns olhares carregados de julgamento. Mas as experiências com o preconceito não a impediram de se expressar.

Feliz com a mudança significativa de mentalidade dos últimos anos, ela não se preocupa com a filha, que tem maturidade para ser ela mesma e se expressar como deseja.

Muitas pessoas, mesmo que não tenham vontade de tatuar, elogiam os desenhos e a coragem da dupla. Os comentários, sobre o desenho e o significado, são somente elogios, e elas acreditam que todos acabam se sentindo um pouquinho abraçados com todo afeto e carinho que a história transmite.

Entre mãe e filha

A experiência de fazer uma tatuagem juntas foi marcante. Ana Maria é fã da arte de se colorir faz tempo e já tinha feito algumas — várias — tatuagens antes, mas Helena é nova nesse mundo. "É muito especial, vou ter para sempre essa lembrança da primeira tatuagem ter sido com a minha mãe", diz a jovem.

Poder participar do processo da primeira tatuagem da filha também tem grande significado para Ana Maria — foi mais uma etapa que elas concluíram, ou iniciaram, juntas. "Ela reconheceu minha independência, mas quis mostrar que vai estar sempre comigo, mesmo depois da maioridade", acrescenta Helena.

Para decidir o traço, o estilo e as cores, elas entraram em um consenso, encontrando um meio termo, que foi reproduzido pelo tatuador Davi Braz, com autorização de Pedro. Mesmo com o nervosismo natural do momento, as duas chegaram seguras e confiantes e saíram de lá com zero dores ou arrependimentos. E as próximas tattoos solo já estão sendo planejadas, mas as duas não negam uma nova colaboração.

*Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte

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