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Especial

Mulheres que se bastam: mesmo sozinhas, elas viajam e lutam pela família

Na semana em que se celebra do dia delas, a Revista traz histórias de mulheres que descobriram o prazer que é curtir a própria companhia

Algumas mulheres encontraram em si mesmas a felicidade para seguir em frente. Sem depender de ninguém, apesar de todas as dificuldades, elas se bastam. Algumas até preferem essa vida em que a solitude é a única companhia, sem precisar dar satisfações a terceiros. Em comemoração ao Dia Internacional da Mulher, comemorado na próxima quarta, a Revista do Correio traz histórias dessas tantas guerreiras que vivem sozinhas, sejam conquistando o mundo em viagens, sejam batalhando pela família.

E elas conquistam o universo e lutam por si e pelos seus. Conhecem países, não se prendem a lugar nenhum. Não criam raízes e desejam assim. Uma vida mais nômade, acumulando memórias que durem para sempre. Uma dessas tantas histórias é contada por Thaís Rodrigues Alcântara, 39 anos, que começou em 2017 a perambular pelo mundo, como uma obra do destino.

A servidora pública e uma amiga planejaram uma viagem para Aruba e Curaçao, no Mar do Caribe. No entanto, faltando poucos dias para embarcar, a então companheira de férias descobriu que o passaporte estava vencido. Mesmo tentando de tudo, acabou não conseguindo ir a tempo de curtir a diversão. "Como eu não poderia trocar minhas férias, decidi seguir o plano e mantive o roteiro sozinha. Viajei para os dois países, aluguei carro, fiz os passeios e todos os programas curtindo minha solitude e feliz por ter tido coragem para seguir em frente", relembra.

Depois da sensação de estar pela primeira vez fora do Brasil sem ninguém, Thaís conta que queria mais. Sentiu-se mais forte e autoconfiante. Com isso, decidiu fazer novas visitas internacionais e também nacionais, empilhando uma quantidade de lugares que até ela demora a lembrar-se. "Argentina, Estados Unidos, Itália, Portugal, Cuba, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Espírito Santo."

Thaís relata, ainda, que chegou a fazer intercâmbio de um mês para aprofundar o espanhol em Santiago, capital do Chile. Passou 10 dias ao lado de uma amiga, que precisou voltar rapidamente. Mesmo assim, seguiu o plano e ficou o restante da passagem no país sozinha. Terminou o curso, conheceu locais lindos, como o Vale Nevado e o Deserto do Atacama.

Os desafios e dilemas

Obviamente, por ser mulher, as dificuldades seriam iminentes. Culturas diferentes, lugares diferentes. Era preciso estar em constante alerta, segundo Thaís. O desrespeito, de fato, foi, infelizmente, vivido em alguns locais. "Recordo de uma viagem que fiz para a Itália com uma amiga e, quando falávamos que éramos brasileiras, alguns garçons nos olhavam de forma estranha e maliciosa ou soltavam piadinhas inapropriadas", comenta.

Além das brincadeiras cercadas de más intenções, a servidora pública também lidou com golpes relacionados a dinheiro. E, segundo ela, a depender do lugar, o machismo falava muito alto e era necessário ter muito cuidado. Por isso, precisava agir com mais firmeza, sem demonstrar vulnerabilidade. Em certa medida, a postura, de acordo com Thaís, era confundida com indelicadeza ou grosseria. Mas, claro, sem perder a educação ou assertividade.

Ainda que as dificuldades, principalmente por ser mulher, tenham sido tantas, nada paga o preço das experiências. As vivências adquiridas proporcionaram autoconhecimento e uma perspectiva de vida muito plural para Thaís. Abriu sua mente para diversos assuntos e a fez enxergar o mundo com mais respeito às diferenças. "Fizeram total diferença na minha vida", ressalta.

"Estar sozinha é viciante"

Além das viagens solitárias, Thaís tem sua própria casa desde 2018. No carinhoso cantinho, como ela descreve, não mora com ninguém. Conta que foi casada por 10 anos, mas acabou se separando em 2016, chegando a dividir a guarda da cachorrinha de 15 anos com o ex-marido. Depois do divórcio, passou um tempo com os pais, mas achou que a melhor decisão era um lugar só dela.

"Meu lar, doce lar, com direito à louça que sempre sonhei, taças, mesa, cama postas e milhares de ímãs de geladeira dos lugares por onde passei e amei", completa. E muitos podem achar estranho estar distante de tudo e todos, preso à sua própria maneira de viver. Mas, Thaís não. Muito pelo contrário.

Foi nessa estranheza que ela se encontrou. "Estar sozinha não é ruim. Na verdade, é viciante. É um autocuidado diário, é saber se acolher, fazer o que quiser quando quiser, sem cobranças além das suas. São escolhas personalizadas todos os dias. Eu amo ter um cantinho só meu, com as minhas coisas e que atende todas as minhas necessidades. Eu me sinto muito tranquila, independente, e a sensação de liberdade ninguém tira quando você se sente em paz."

Arquivo pessoal - Thaís começou a viajar sozinha, por acaso, em 2017

Uma forma de viver

“Quando se fala em mulher viajando sozinha, nunca é só sobre a viagem.” A frase de Livia Lopes Lacerda, 33, ilustra o desejo que muitas têm em se redescobrir e adquirir mais confiança para si. Conhecer-se melhor, ser independente e descobrir que é capaz de viver livre. Tais ensinamentos, como descreve ela, são para a vida toda.

Livia já visitou mais de 44 países desde que começou essa saga e busca por autoconhecimento, em 2011. No início, assim como no caso de Thaís, foi obra totalmente do acaso. Ia viajar com a irmã para o Morro São Paulo, na Bahia. Mas a companheira teve que fazer uma cirurgia de emergência e acabou não indo. Com tudo pago, não teve outro jeito.

“Na época, eu nem pensava em viajar sozinha, não tinha tanta informação sobre o assunto, nem redes sociais, mas acabei criando coragem e indo sozinha mesmo. E foi a melhor decisão que tomei na minha vida. Foi incrível, conheci pessoas maravilhosas e, depois dessa primeira, um mundo totalmente novo se abriu pra mim. A viagem seguinte foi, também sozinha, para a Espanha, cerca de dois meses depois”, recorda-se.

Vida na internet

E com tantos registros e lembranças guardadas, Livia decidiu colocar na internet os lugares paradisíacos que encontra mundo afora. No entanto, a ideia completamente inocente acabou dando espaço para uma oportunidade ainda maior: influenciar mulheres na web.

“A minha ideia era só colocar nas redes para minha família saber onde estava. A cada viagem que eu fazia, minhas redes cresciam mais. Fiz uma viagem de um mês, sozinha, pela Grécia, em 2015. De repente, muitas pessoas começaram a me seguir”, acrescenta.

E, neste mesmo ano, embarcou em outra aventura, dessa vez para o Havaí. Ali, percebeu a quantidade de pessoas que começaram a acompanhar o seu mochilão era, de fato, expressiva. Com isso, viu que o simples compartilhamento de experiências poderia lhe render um trabalho nas redes sociais. Hoje, ela acumula cerca de 995 mil seguidores no Instagram.

Naturalmente, o público majoritário é feminino. Lá, ela encoraja as mulheres a fazerem o mesmo. Não se apegarem e decidirem estar mais livres, apenas preocupando-se com seus sentimentos e sonhos. Ajuda, ainda, muitas pessoas que estão prestes a viajar, dando dicas de lugares e, principalmente, sobre segurança. “As nossas experiências são sempre diferentes das masculinas. Sempre falo para as minhas seguidoras se informarem sobre o destino em que vão e também se informarem com outras mulheres”, recomenda.

Além de influenciadora, Livia atua como assessora jurídica, o que torna mais fácil os momentos de lazer, já que o trabalho home office possibilita que ela estar em qualquer lugar do mundo. Mas, antes, ela dava os seus pulos para conseguir se programar. “Sempre trabalhei muito. Por isso fazia muitas horas extras e conseguia emendar com férias, feriados, prolongar um fim de semana. Conseguia viajar sempre, mesmo com apenas 30 dias de férias por ano.”

Arquivo pessoal - Livia já percorreu mais de 44 países mundo afora

Quando a independência vem de família

A vontade de estar sozinha pode vir de referências que estão perto de nós e é um atestado legítimo de independência para a mulher. Crescer com alguém que esbanja liberdade torna impossível ver o mundo de uma perspectiva só, especialmente quando se vem de uma relação construída por amor genuíno.

Lia e Gaia Bigaton são essas mulheres. Lia saiu de casa aos 16 anos para morar sozinha em Florianópolis, começou a viajar sem companhia e conheceu muito bem a região litoral de Santa Catarina. Aproveitou a adolescência para desbravar o mundo e acumular experiências e, em 2001, tomou a decisão de morar na Europa.

Arquivo pessoal - Gaia e a mãe viajaram o mundo praticamente sozinhas

Apesar da mudança, a transição mais impactante da sua vida só aconteceria em novembro daquele mesmo ano, quando Gaia nasceu. Ela, que até então tinha sido sozinha, tinha agora uma companhia para explorar o mundo, mas ela esperou a Gaia desmamar e a primeira viagem só iria acontecer em 2003.

Lia explica que desde criança planejava viajar e conhecer outros lugares e, mesmo sendo mãe tão jovem, não achava justo com ela mesma ou com Gaia deixar de viver seu sonho porque teve uma filha. "Fiz o mesmo percurso, mas de formas diferentes," conta. Elas foram para Barcelona, na Espanha e não pararam mais. "Em três verões na Europa, visitamos Ibiza, Formentera, Grécia e muito da Itália, pois a família paterna da Gaia é de lá."

Arquivo pessoal - As duas encontraram uma na outra o amor e carinho que precisavam

Lugares exóticos

No final de 2005, deixaram a vida em Barcelona para irem ao sudoeste asiático, na Tailândia. Lia reduziu um apartamento em duas mochilas e uma mala, ficaram três meses na ilha de Koh Phangan e conheceram muita gente interessante. "A natureza era exuberante, tínhamos uma moto, e passeamos bastante, fazia massagens, morávamos em cabanas na praia e comíamos muito bem."

"Um completo caos, mas fascinante!", comentou Lia quando colocou os pés em Bombaim na Índia, em 2006. No avião, ela conheceu uma mulher de origem sueca que estava indo visitar o lugar onde sua mãe a adotou. Após contar sua história, pediu para que a dupla viajante fosse com ela, e elas foram. "Era um orfanato da Madre Teresa de Calcutá, em meio ao subúrbio de Bombaim. Havia um lindo jardim, onde ficava a casa das crianças. Era tudo muito limpo e organizado, havia muito amor ali."

Depois, optaram por morar em Goa, lugar que Lia descreve como a Bahia da Índia. Elas moravam perto da praia, conviviam com pores do sol exuberantes e Gaia até experimentou uma escola com crianças locais, que não deu muito certo pela violência escolar na região. Mas, naquele momento, Gaia já sabia falar cinco idiomas com 4 anos de idade. "Estávamos sempre fazendo coisas legais, a escola dela foi essa", relata a mãe.

Arquivo pessoal - Desde pequena, Gaia roda o mundo ao lado da mãe

Mãe e filha vivenciaram experiências incríveis. Para Gaia, os prós da situação eram extraordinários. Por mais que fosse uma criança e não tivesse noção das experiências que obteve, conviveu com uma multiplicidade enorme de culturas antes dos 6 anos. "Imagine você, uma criança, percebendo lugares tão diferentes uns dos outros como: Índia, Grécia, Alemanha, Tailândia, Espanha e Chapada Diamantina," expõe Gaia.

Mas, infelizmente, os perrengues existem, e Lia brinca que a hora de carregar as malas era um desafio. Ela acredita que o medo é sempre o mesmo e pode acontecer em qualquer lugar, o de ser violentada sexualmente, ou roubada, e isso poderia acontecer com qualquer um.

Na Índia era mais seguro, estar com uma criança era visto como algo sagrado, ela só não podia mencionar que era mãe solo. Mas o maior desafio, de fato, foram as doenças infecciosas e intoxicações. "Pegamos várias doenças que não identificamos, por isso tivemos que tomar muitos remédios, com medo de que algo pior pudesse acontecer," descreve Lia. Ela diz que, se pudesse fazer algo diferente, viajaria mais, mas reforça que viajar com uma criança é uma enorme responsabilidade, que não pode ser romantizada.

O aniversário de 5 anos da Gaia aconteceu em uma vila no norte da Tailândia, entre Laos e Vietnã. Lá, as pessoas eram budistas e, na época, estava acontecendo um festival onde se acendiam lanternas de papel deixadas para voar no céu, iluminando tudo. "Organizamos uma festa para ela, apareceram crianças de todo o lugar do mundo, acendemos cinco lanternas e cumprimos a tradição que diz que, se colocamos todos os nossos sonhos nas lanternas, elas voam alto para o céu, fazendo com que a divindade as escute", lembra Lia.

Ed Alves/CB - Gaia Sofia se inspira na mãe

Exemplo seguido

Gaia diz que essas viagens definiram a mulher que ele é hoje e para o resto da vida. "Ainda sou jovem, mas observo que sempre fui independente e desapegada, assim como minha mãe, mesmo depois de viver 13 anos em Brasília. Na verdade, não me sinto pertencer a nenhum lugar, mas, sim, a muitos. É completamente natural para mim, não é nenhum problema, me tira o peso de ter que estar em qualquer lugar, porque aprendi a fazer o meu 'lar' onde quer que eu esteja."

Lia finaliza dizendo que essas experiências faz com que você tenha confiança em você e nos seus instintos. Mesmo com uma criança, não permita que os medos sejam maiores e, claro, sempre com a mentalidade de que a prioridade é a segurança da criança.


O amor em estar sozinha

Às vezes, descobrimos que estar sozinha é necessário, independentemente de viagens e experiências. No ano passado, a estudante Luyara Sayure, 20 anos, saiu da casa que dividia com o namorado para morar apenas com o filho de 6 meses. Por viver um relacionamento complicado, achou melhor para sua saúde mental aprender a viver sozinha, por mais desafiadora que a experiência fosse.

No começo, ela relata que era muito difícil lidar com a solidão e as responsabilidades diárias de um bebê pequeno. "Morar sozinha com uma criança é bem difícil, requer atenção para tudo, até para tomar banho é desafiador." Ela também menciona a questão financeira, tudo é um gasto e isso reflete muito no bem-estar.

Porém, Luyara segue dando conta de tudo com firmeza. Sua visão de mundo mudou completamente, diz que saiu da sua bolha e se sente "enfrentando o mundão", com a sensação de que as responsabilidades vão ficar maiores. Por estar sozinha, essa percepção fez com que ela se enxergasse com mais clareza. Por ser muito nova, relata que, às vezes, as situações assustam. Mas diz que aprendeu a ficar mais calma, confiar em si mesma e criou mais maturidade para lidar com as questões da vida.

Não muito diferente das experiências vividas por outras mulheres, ela se viu em situações inesperadas e, com força, determinação e muita vontade, hoje, consegue se sentir satisfeita consigo mesma e todos os dias aprende algo novo com o filho.

Estar sozinha como mulher é se desprender dos esteriótipos e caixinhas ideológicas em que o feminino é colocado. E mulheres como estas são essenciais para mostrar que a solitude é possível, muito bem-vinda e não tem absolutamente nada de errado viver assim.

Ed Alves/CB - Luyara Sayure.

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*Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte 

Arquivo pessoal - Thaís começou a viajar sozinha, por acaso, em 2017
Arquivo pessoal - Depois da primeira viagem sozinha, Thais já acumula visitas em diversos países
Arquivo pessoal - Como ela descreve, ficar sozinha não é ruim, é viciante
Fotos: Arquivo pessoal - Para Livia, viajar sozinha é se redescobrir e viver uma vida mais livre
Arquivo pessoal - As viagens, inclusive, fazem sucesso nas redes sociais, onde acumula 995 mil seguidores
Ed Alves/CB - Thais Rodrigues Alcantara.
Ed Alves/CB - Livia Lopes Lacerda
Fotos: Arquivo pessoal - a estudante Luyara Sayure, 20, com o filho Leonardo de apenas 1 ano
Arquivo pessoal - As duas encontraram uma na outra o amor e carinho que precisavam
Arquivo pessoal - Desde pequena, Gaia roda o mundo ao lado da mãe
Arquivo pessoal - Gaia e a mãe viajaram o mundo praticamente sozinhas
Ed Alves/CB - Revista - Mulheres que vão a luta. Especial Dia das Mulheres. Na foto Thais Rodrigues Alcantara (Laranja), Livia Lopes, Luyara Sayure (mae) com filho Leonardo e Gaia Sofia.
Ed Alves/CB/D.A Press - Revista - Mulheres que vão a luta. Especial Dia das Mulheres. Na foto Thais Rodrigues Alcantara (Laranja), Livia Lopes, Luyara Sayure (mae) com filho Leonardo e Gaia Sofia.
Ed Alves/CB - Gaia Sofia se inspira na mãe
Ed Alves/CB - Luyara Sayure.
Ed Alves/CB - Revista - Mulheres que vão a luta. Especial Dia das Mulheres.
Ed Alves/CB - Revista - Mulheres que vão a luta. Especial Dia das Mulheres.
Ed Alves/CB - Revista -Mulheres que vão a luta. Especial dia das Mulheres.