Muito além de um simples ingrediente, a baunilha nativa do Cerrado (Vanilla Pompona) surge por meio das marcantes orquídeas amarelas, carregando um enorme potencial. Semelhantes ao formato de uma banana, suas favas e sementes são as responsáveis pelo aroma e o sabor adocicado que conhecemos.
Mesmo sendo conhecida como baunilha do Cerrado, não encontrada apenas uma espécie no bioma: Vanilla bahiana e Vanilla chamissonis são outras encontradas. Essas variações são altamente adaptadas ao segundo maior bioma do Brasil, com muitos diferenciais. Podem se desenvolver em matas de galeria e em áreas minimamente preservadas, e possuem perfis aromáticos mais complexos, com notas que vão desde o adocicado clássico até nuances florais e amadeiradas.
O que muitos não sabem é que a baunilha se origina de orquídeas do tipo Vanilla, assim como a baunilha é conhecida em outros idiomas. É considerada a segunda especiaria mais cara do mundo, atrás apenas do açafrão, e, apesar do seu alto custo, é muito visada e utilizada pela gastronomia e indústria de cosméticos.
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Trabalho árduo
Cultivar baunilha demanda tempo, paciência e envolve uma complexidade de manejo e cultivo. As mudas precisam ser plantadas próximas a suportes ou em árvores de apoio, que irão sustentar e guiar o desenvolvimento das plantas, e sua irrigação deve ser observada e controlada, já que requerem pouca água e bastante matéria orgânica. No Cerrado, produtores adaptam as técnicas de cultivo às necessidades da planta, com a regulação de umidade e temperatura.
O ciclo da planta exige ao menos três anos do plantio até a primeira floração. A polinização é feita à mão, uma flor de cada vez, pois o pólen da orquídea baunilha é inacessível para a maioria dos insetos. Após esse árduo processo, leva mais nove meses a um ano para amadurecerem e serem colhidas no momento certo.
A mudança da cor para um tom amarelado ou acastanhado na ponta é um indicativo de que a baunilha está começando a ficar madura. Mas o processo não para por aí: a fragrância marcante e o sabor só aparecem depois do processo de secagem, cura e maturação, que envolvem outras diversas etapas.
Turismo
Segundo Carlos Morais, técnico da Emater-DF, no Distrito Federal, atualmente, 42 famílias estão envolvidas diretamente com o cultivo de baunilhas, com 18 dessas fazendo parte da Associação de Produtores de Baunilhas, recente criação que completou um ano de fundação em maio de 2015.
Apesar do crescimento, os produtores locais ainda enfrentam desafios; por outro lado, projetos colaborativos são postos em prática. A Emater-DF desenvolve estratégias para incentivar a produção e o comércio associado ao turismo rural, oferecendo assistência técnica, elaboração de projeto de crédito, organização rural, processamento, comercialização, cursos, oficinas, visitas, excursões e treinamentos para capacitação e desenvolvimento da produção local.
Agora, produtores, pesquisadores, técnicos, chefs da alta gastronomia e empreendedores locais estão trabalhando em prol de um propósito: transformar essa riqueza natural em uma nova aposta para o turismo rural e local no DF. Com isso, a Rota da Baunilha do Cerrado ganha destaque, em que todos aguardam ansiosos por produtos de qualidade.
"A baunilha agora faz parte da rota da fruticultura, que é um projeto maior coordenado pela Codevasf em parceria com a Emater. Esse trabalho ainda está em construção, com parceiros de todo o país, e ainda não temos volume de produção suficiente para tratar de uma rota exclusiva da baunilha. A rota da baunilha no DF vai se consolidar com a participação de todos os atores envolvidos no processo, investindo no comércio solidário, associado ao turismo", explica o técnico da Emater DF.
Sabor único
Para quem busca diferentes vivências, longe dos roteiros tradicionais, as propostas em torno da baunilha podem ser uma ótima opção. No Distrito Federal, a Quinta das Baunilhas, localizada na região do Lago Oeste, oferece uma experiência turística e gastronômica aos visitantes.
O que motivou Ângela Maria de Oliveira, proprietária da Quinta das Baunilhas, a unir o cultivo da baunilha com a experiência turística foi sua produção própria, iniciada em 2019, aliada ao desejo dos moradores da região de desenvolver uma atividade de turismo rural, para fortalecer a luta pela preservação ambiental da região.
De início, os visitantes caminham pelo vasto espaço e são convidados para se deliciarem e se aquecerem com um café, chá ou chocolate quente com baunilhas e um pão de queijo saído do forno. São surpreendidos com a grande plantação e chamados para terem um contato direto com a baunilha, suas flores e suas favas em crescimento. É explicado sobre a origem, o processo de cultivo e o tratamento das baunilhas para entenderem a colheita.
Por fim, o ápice do passeio: os visitantes se dirigem à casa de Ângela, uma experiência íntima e aconchegante, e é servido um delicioso e farto café da manhã ou brunch, com a baunilha sendo a protagonista principal. “Não temos um menu fixo, mas, com certeza, temos pratos deliciosos e aqueles especiais, preparados com baunilhas. Além de degustarem pratos preparados com baunilhas, nossos visitantes podem adquirir mudas e favas, extratos, pó, pastas e calda de baunilhas, além de souvenirs bordados”, detalha.
Segundo a proprietária, a demanda de público é bastante variada e atende desde famílias, casais em datas comemorativas, até grupos corporativos e temáticos, além de observadores de pássaros, trilheiros, turistas nacionais e estrangeiros.
Essência X extrato
Mesmo sendo originado da baunilha e frequentemente tidos um mesmo produto, possuem grandes diferenças entre si. O ponto principal que distingue é que a essência é uma forma sintética, já o extrato é natural, feito da própria fava, passando por menos processos.
A essência se inspira no sabor e no aroma da baunilha de forma artificial .É encontrada com maior facilidade por ser barata, com isso, a maioria dos alimentos e produtos que encontramos vem da essência e não do extrato. Em contrapartida, o extrato, por ser natural, tem sabor mais intenso e refinado, alto custo e é o preferido da alta gastronomia.
Muito além de um negócio
“Foi há cerca de 10 anos que a gente começou, graças ao meu pai, que sempre gostou de produzir espécies diferentes em casa.” E assim nasceu o projeto Vale do Torto, segundo Alice Bartholo, estudante e uma das responsáveis pela produção.
Alice e a família sempre tiveram uma forte ligação com a natureza e decidiram investir no negócio com uma produção estritamente familiar. Rubens Bartholo, seu pai e advogado, conheceu a baunilha do Cerrado por meio de um colega. Foi amor à primeira vista.
“Estive na região dos Kalungas, em Teresina de Goiás, consegui umas mudas da orquídea e comecei o cultivo. Com dois anos de plantio, elas começaram a florescer. A literatura sempre indicava por volta de três anos, e elas se anteciparam. Achei que eu colheria dois ou três frutos e colhi bem uns 200. A partir daí, vi que o negócio produzia mesmo e fui aumentando e ampliando a plantação”, relata como transformou um hobby em um negócio sustentável.
A procura por produtos naturais e genuínos têm impulsionado o mercado global da baunilha, criando novas oportunidades para produtores artesanais como a família de Alice e Rubens. Entre os produtos feitos pela Vale do Torto estão cachaças e licores, pastas e extratos, açúcar baunilhado e as tradicionais favas curadas e maturadas, desejados pelo Brasil e por todo o mundo, com pedidos constantes o ano inteiro.
“Muitas pessoas estão plantando baunilha e, com isso, acho que vamos ter uma produção, em breve, um pouco mais expressiva. Temos encomendas do exterior que não conseguimos atender. Por exemplo, pedidos de 10 quilos por mês, equivalente a 120 quilos por ano”, reflete Rubens sobre o cenário do mercado atual. Apesar do reconhecimento internacional, a prioridade da Vale do Torto é abastecer o mercado brasileiro. A escolha é estratégica: mesmo com uma safra considerada excelente, a produção ainda é limitada.
“Tem muitos chefs franceses que procuram a nossa baunilha, mas eu prefiro manter aqui, para as pessoas daqui consumirem. Temos poucos produtores no Cerrado, especialmente aqui no Distrito Federal. É difícil encontrar outras famílias cultivando, então priorizamos nosso público local”, explica Alice.
Cada tipo de baunilha cultivada carrega uma identidade própria — aromas singulares, biotipos distintos e uma conexão profunda com a natureza. Como, por exemplo, a floração da espécie do Cerrado começa em agosto, período de seca, e floresce até novembro, na primavera, se adaptando às condições e às necessidades da espécie. Com presença ativa nas redes sociais, especialmente no TikTok, a estudante compartilha o dia a dia do cultivo, desmistificando o processo e aproximando o público desse universo com diversas curiosidades.
Verdadeira especiaria
A pluralidade da baunilha permite que ela seja usada de diversas formas. Elionara Hoehne, aromaterapeuta e perfumista botânica, tem uma produção focada nos derivados, como chás e açúcar, perfumes botânicos, além do diferencial, as cerimônias ritualísticas de cacau com baunilha.
Seu interesse surgiu após seu primeiro contato na preparação de seus perfumes, quando, ao sentir o cheiro da baunilha pela primeira vez, foi amor à primeira vista e, no fundo, sentiu, de alguma forma, um apego familiar. Com isso, descobriu uma conexão ancestral com as orquídeas baunilhas. Seu tio-bisavô, o reverenciado botânico Frederico Carlos Hoehne, deixou uma rica contribuição e catalogou uma grande quantidade de orquídeas, dentre elas várias baunilhas que levam seu sobrenome no registro botânico, a espécie Vanilla bahiana Hoehne.
"O aroma icônico da baunilha já havia marcado presença na minha família e, para minha surpresa, eu estava fazendo uma reconexão", conta. Além desse resgate ancestral, o que motivou Elionara a trabalhar com a especiaria foi entender o impacto positivo que ela provoca nas emoções e a riqueza de seu aroma, já que a baunilha tem cerca de 300 compostos aromáticos. "Imagine só um perfume com baunilha natural, é um luxo, diferentemente dos perfumes industrializados de grife, que só possuem a cópia sintética de uma única molécula aromática da baunilha", exalta.
Os produtos são totalmente produzidos artesanalmente, em parceria com produtores do Goiás e do DF, respeitando as etapas, sem pressa, em total sintonia com a natureza. Seu principal propósito é inspirar o prazer na vida das pessoas, com afeto, malemolência, acolhimento, com nutrição e apuração dos sentidos.
Sua maior realização na área da perfumaria, segundo a aromaterapeuta e perfumista, tem sido realizar toda a formulação e produção de perfumes personalizados, que resulta em uma verdadeira jornada aromática, em que o cliente participa do processo e escolhe cada nota olfativa que irá compor seu perfume. "Muitas pessoas me procuram para recriar, na composição natural, seus perfumes de grife, seja por ter saído de linha, seja por terem desenvolvido alergia aos sintéticos ou mesmo para terem uma experiência pessoal com o poder dos aromas naturais."
Ritual
Um rito tradicional das antigas civilizações do México, envolvendo o preparo e ingestão da bebida do cacau 100% puro, sem adição de químicos, era tradicionalmente usado em rituais de cura, celebrações e conexão com o divino. Elionara Hoehne tem esse diferencial em seu catálogo e oferece a cerimônia em retiros e eventos fechados.
A união da baunilha com o cacau, segundo ela, proporciona diversos benefícios. Por um lado, o cacau é rico em teobromina, um estimulante natural que aumenta a energia, o foco, a sensação de bem-estar e ativa nosso estado de felicidade. Já a baunilha, além de adoçar o paladar, traz um aroma reconfortante e acolhedor, e também possui propriedades antioxidantes, anti-inflamatórias, digestivas e calmantes.
"Durante a cerimônia ritualística, além de tomar a bebida preparada com muito zelo e amor, os participantes se beneficiam de uma programação que envolve música, meditações guiadas, aromaterapia, expressão corporal ou ioga e até a dança para os mais dispostos. Lembrando que a bebida do cacau era servida apenas aos nobres e guerreiros em celebrações. Hoje, devido à popularização dos frutos, temos o privilégio de todos poderem acessar essa bebida sagrada e milenar", explica.
