Quando recebeu o diagnóstico de HIV, em 1988, época em que isso representava quase uma sentença de morte, o ativista dos direitos humanos e militante da luta contra a aids Christiano Ramos, 58 anos, acreditou que não teria futuro. No entanto, mesmo com muitos medos e preconceitos, transformou a dor em luta e fundou a ONG Amigos da Vida, que presta apoio multidisciplinar às pessoas vivendo com HIV/aids em situação de alta vulnerabilidade social. A trajetória dele é reflexo de um movimento que, em diferentes vozes e gerações, mostra que a epidemia do vírus continua a desafiar o Brasil, mas também revela caminhos de resistência, ciência e esperança.
Em 2023, o Brasil registrou 46.495 novos casos de infecção pelo HIV, revelando um retrato complexo da epidemia. O perfil das pessoas diagnosticadas mostra uma predominância masculina: 73,3% dos casos ocorreram em homens contra 26,7% em mulheres. A juventude aparece como a faixa etária mais atingida, com 63% das notificações concentradas entre 20 e 39 anos. Entre os adolescentes de 15 a 19 anos, os números são menores, mas 4,3% das novas infecções ocorreram nessa faixa etária, o que indica um início precoce da exposição.
Reconhecido historicamente por ter uma das respostas mais rápidas e abrangentes ao HIV, o Brasil garantiu acesso ao tratamento pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e hoje conta com 859.100 pessoas em terapia antirretroviral. Ainda assim, o país convive com desafios para além das barreiras médicas, pois o caminho até os serviços de saúde ainda é marcado por estigma, discriminação, homofobia e transfobia. De acordo com Christiano Ramos, quando descobriu que tinha sido contaminado com o vírus, não tinham medicações que controlassem o HIV, então escondeu o diagnóstico da família por sete anos, pois tinha medo de adoecer e levar sofrimento para eles.
Ao assumir a sorologia publicamente, o ativista foi acolhido pelos parentes, mas sofreu preconceito no próprio local de trabalho. "O garçom que servia o gabinete parlamentar onde eu trabalhava separou meu copo, xícaras e talheres", conta. Mesmo assim, ao iniciar o tratamento, retomou a vida em sua plenitude, tornou-se um militante da luta contra a aids e, hoje, vive com o vírus há 37 anos.
O infectologista Vinícius Borges destaca que o preconceito é uma das maiores barreiras da luta contra o HIV. "Muita gente evita se testar por medo do estigma de um resultado positivo. E quem recebe o diagnóstico pode abandonar o tratamento se não tiver acolhimento", afirma. "O HIV nos ensina que saúde não é só remédio, é também empatia, escuta e combate ao estigma."
Uma faceta complexa
A dona de casa Amanda Costa (nome fictício), 46, sofre preconceito na pele. Além de receber olhares condenadores frequentemente, chegou a ser demitida de um supermercado quando souberam que ela era portadora do HIV. Amanda contraiu o vírus aos 23 anos do então namorado, que ela desconfia que sabia que era soropositivo, mas não se cuidava e passou para ela. "De primeira, foi desesperador, demorei a me recuperar quando descobri o diagnóstico. Os maiores medos que eu tive foram de minha família ficar sabendo, de morrer e da discriminação."
O relato de Amanda também reflete a desigualdade de gênero que marca a sociedade. "Muitas mulheres não têm poder de negociação no sexo, não conseguem exigir camisinha e não têm acesso à informação sobre PrEP, por exemplo", salienta Vinícius Borges.
A epidemia de HIV em mulheres, por não apresentar números alarmantes na maior parte dos lugares, acaba sendo invisibilizada em algumas situações. Segundo a médica com mestrado em saúde pública e doutorado em epidemiologia Maria Inês Dourado, muitas mulheres acabam descobrindo o HIV apenas no pré-natal, já que a cada visita são feitos testes de ISTs, enquanto outras descobrem em exames de rotina.
"O que o Ministério da Saúde recomenda é que qualquer pessoa com vida sexual ativa faça pelo menos um exame de rotina por ano, incluindo HIV e outras ISTs", salienta a médica. "Para a populações com risco acrescido, como mulheres em determinadas situações, esse rastreio deve ser feito a cada seis meses, principalmente em consultas ginecológicas", acrescenta.
A desigualdade racial também marca a epidemia. Mais de seis em cada 10 novos casos notificados em 2023 (63,2%) ocorreram em pessoas negras, sendo 49,7% em pardas e 13,5% em pretas. Entre as categorias de exposição, os homens que fazem sexo com homens (HSH) continuam sendo os mais afetados, representando 53,6% das novas infecções. O fator socioeconômico também aparece como determinante: 55% das pessoas diagnosticadas tinham ensino médio incompleto ou menos.
Os dados de prevalência por grupos específicos reforçam a dimensão das vulnerabilidades. Enquanto na população geral a taxa de infecção é de 0,4%, ela salta para 5,3% entre mulheres profissionais do sexo e para 6,9% entre usuários de drogas. Entre HSH, a prevalência chega a 18,4%, e entre travestis e mulheres trans atinge o patamar alarmante de 36,7%, o que reforça a urgência de ampliar testagens, campanhas educativas e a oferta de métodos de prevenção.
Juventude em foco
Entre os jovens, a epidemia cresce, marcada pela descontinuidade do uso de Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) e pela maior vulnerabilidade. A não adesão ao medicamento oral que reduz significativamente o risco de contrair o vírus é mais expressiva entre pessoas negras e pardas, o que evidencia desigualdades estruturais. Além disso, serviços de saúde, muitas vezes, são de difícil acesso, atravessados por estigma, discriminação, homofobia e transfobia.
No atendimento a adolescentes de 15 a 19 anos, as equipes de saúde enfrentam um dilema entre a necessidade de envolver familiares no processo e, ao mesmo tempo, a urgência de proteger jovens em contextos de rejeição ou violência doméstica. Para lidar com isso, foi estabelecido um protocolo que garante segurança jurídica e cuidado integral, com respaldo do Juizado da Infância e da Adolescência. A medida permite que, em situações de risco, não seja exigida a autorização de responsáveis, evitando expor o adolescente a mais sofrimento. Essa flexibilização reconhece a vulnerabilidade particular de jovens que já enfrentam preconceito, como é o caso das meninas trans.
Apesar desse cenário de desafios, a experiência da médica com mestrado em saúde pública e doutorado em epidemiologia Maria Inês Dourado ao longo dos anos tem revelado um outro lado: a presença de familiares que se mostram dispostos a apoiar. "Trazer um familiar que agride ou rejeita o jovem só pioraria a situação. Nesses casos, não exigimos. Mas, ao longo desses oito, nove anos, temos tido experiências muito positivas: mães, avós, irmãs que acompanham, querem saber e estão prontas para assinar o termo de consentimento junto com o adolescente."
Prevenção além do preservativo
A PrEP e a PEP (Profilaxia Pós-Exposição de Risco), tratamento de urgência com medicamentos que deve ser iniciado em até 72 horas após uma possível exposição ao HIV, revolucionaram a forma como os especialistas falam de prevenção. Eles saíram de um discurso centrado apenas no medo da transmissão para outro, de autonomia e cuidado, pois a PrEP, em especial, tem ajudado milhares de pessoas a viver sua sexualidade com mais liberdade e segurança. "Hoje, nós falamos em comprimidos únicos ao dia, baixa toxicidade e expectativa de vida praticamente igual à população geral. Além disso, surgem novas tecnologias, como os injetáveis de longa duração, que dão mais autonomia e liberdade para as pessoas que vivem com HIV", afirma o infectologista Vinícius Borges.
Maria Inês acredita que o preventivo de longa duração é justamente a tendência para os próximos anos. "Temos excelentes antirretrovirais já em estudo, como o cabotegravir, aplicado a cada dois meses e, em breve, a cada quatro; o lenacapavir, que pode ser a cada seis meses ou até anualmente; e até pesquisas de comprimidos mensais. Isso facilita a adesão dos jovens, porque tomar um comprimido todo dia nem sempre é fácil de incorporar à rotina. Além disso, a vida sexual é dinâmica: às vezes, você precisa da PrEP por um ano, depois não, e pode voltar a precisar mais tarde. Esse é o chamado 'uso efetivo da PrEP'."
A PrEP é para todas as pessoas acima de 15 anos, com mais de 35kg, que desejam se proteger da infecção pelo vírus HIV nas relações sexuais. No entanto, segundo Vinícius, ela é mais indicada para quem se expõe a situações de maior risco, como múltiplos parceiros, sexo anal ou vaginal sem camisinha, parceiro vivendo com HIV que não está em tratamento, ou histórico de ISTs de repetição.
Para Vinícius Borges e a médica infectologista Maria Felipe Medeiros, mais do que critérios técnicos, se a pessoa sente que a PrEP vai trazer tranquilidade e segurança para sua vida sexual, ela já é uma candidata. "Quem precisa usar PrEP é quem acha que está vulnerável ao HIV, independentemente do número de relações, de com quem se relaciona ou de onde. É você olhar para a sua vida e entender se pode se expor ao HIV", afirma Maria Felipe. "Toda pessoa com vida sexual ativa pode se expor, mesmo utilizando preservativo. Por isso, todas as pessoas com vida sexual ativa deveriam pensar na prevenção do HIV e de outras ISTs."
Além disso, as pessoas devem se aconselhar com profissionais de saúde, como médicos, enfermeiros e até via teleatendimento, para decidir se precisam ou não da PrEP em determinado momento. De acordo com Maria Inês, há quem precise da PrEP diária, outros preferem sob demanda, dependendo de como organizam sua vida sexual.
O biotecnologista Pedro Andrade (nome fictício), 29, faz uso de PrEP, mas não de forma regular. Em um relacionamento estável, ele utiliza apenas quando ele e o namorado abrem o relacionamento e têm relações sexuais com terceiros. Para ele, o medicamento nunca acarretou efeitos colaterais, então a experiência foi mais tranquila.
O primeiro contato de Pedro com a PrEP foi em 2019, no ambulatório do Hospital Universitário de Brasília (HUB). De acordo com ele, descobriu que o SUS tinha começado a distribuir o medicamento por meio de conversas com outros homens gays e foi atrás de pontos de distribuição. Para ele, a conversa sobre o preventivo ainda é muito nichada à comunidade LGBTQIAPN . "Ainda hoje, eu me deparo com muita desinformação e ignorância sobre pessoas soropositivas e também sobre os métodos de prevenção. Muitos sequer sabem que um medicamento como a PrEP existe e que é distribuído gratuitamente pelo SUS."
Na telas
Clube de Compras Dallas
O drama biográfico, de 2013, fala sobre Ron Woodroof, um eletricista texano que, em 1985, é diagnosticado com aids e recebe apenas 30 dias de vida. Inconformado com os tratamentos disponíveis, ele começa a contrabandear medicamentos não aprovados nos EUA. Com a ajuda de uma médica e uma paciente travesti, ele cria o Clube de Compras Dallas, que fornece acesso a esses remédios a outros pacientes. O filme aborda a aids de forma visceral, mostrando o preconceito da época e a luta de Ron contra a indústria farmacêutica e o governo para garantir o acesso a tratamentos alternativos. A jornada de Ron o transforma de um homem homofóbico em um ativista na luta pela vida de seus colegas de clube.
Filadélfia
Lançado em 1993, o filme acompanha Andrew Beckett (Tom Hanks), um renomado advogado que trabalha em um escritório na cidade que dá nome ao filme, mas é demitido quando as pessoas descobrem que ele é portador do vírus da aids. A trama, marcada por preconceitos, desenrola-se durante o julgamento do protagonista, que contratou um advogado negro e homofóbico para o defender.
Máscaras de oxigênio não cairão automaticamente
A série de drama, de 2025, passa-se na década de 1980, que ficou marcada como um dos períodos mais sombrios do mundo por conta da epidemia de HIV. O enredo conta com um grupo de comissários de bordo que se arriscam ao transportar remédios do exterior para a doença ilicitamente, pois o medicamento para controlar o avanço da aids ainda não era autorizado no Brasil. A série é baseada em uma história real e pode ser vista na Max.
Indetectável = intransmissível
Quando uma pessoa vivendo com HIV faz o tratamento e mantém a carga viral indetectável, ela não transmite o vírus sexualmente. No entanto, mesmo com vários estudos que comprovam isso, ainda há desconhecimento e preconceito. “É mais fácil acreditar no medo do que na ciência, e quebrar esse tabu exige informação constante e comunicação acessível”, diz Vinicius Borges.
Desinformação e saúde pública
Embora o Brasil seja referência mundial, há desigualdade na implementação de medicamentos, muitas dúvidas relacionadas à prevenção, falta de serviços estruturados, profissionais capacitados e campanhas de informação. Exatamente para enfrentar isso, surgem possibilidades como telemedicina e autotestagem, que rompem barreiras geográficas e sociais.
A prevenção combinada, com anel vaginal, uso de lubrificantes e preservativos, também é amplamente necessária na luta contra o HIV. Inclusive, em 2024, o SUS passou a distribuir camisinhas mais finas e com textura, em uma tentativa de aproximar o cuidado da realidade dos jovens e de reduzir a resistência de quem afirma não gostar de usar preservativo.
A falta de informação clara, acessível e livre de preconceitos também é um desafio. Alguns questionamentos presentes em consultas, campanhas e estatísticas, como "fazer muito sexo na juventude pode prejudicar a vida sexual mais tarde?", podem parecer banais, mas refletem o nível de desinformação da sociedade.
Além de a educação sexual não ser muito presente na escola, de a desinformação nas redes sociais estar cada vez mais presente na vida dos jovens e de a cultura do prazer sem cuidado estar cada vez mais disseminada, muitos jovens não se veem representados nas campanhas e não sabem que são vulneráveis. Atualmente, por exemplo, a expressão "sexo seguro" caiu em desuso, mas os cuidados na hora de relações sexuais ainda são necessários.
"A ideia de sexo seguro baseada apenas em preservativo ou em esperar mais tempo para se relacionar já não funciona para esse público. Quem busca a PrEP quer se sentir seguro com a própria PrEP. Então, falamos da proteção contra a infecção com essa tecnologia", destaca a médica Maria Inês Dourado. "Hoje, com a PrEP, que tem eficácia de 98%, estamos diante de um novo paradigma."
O conhecimento deve ser buscado em informações qualificadas, como as do Ministério da Saúde, que oferece orientações oficiais. No entanto, mesmo com os avanços no tratamento do HIV, o MS, responsável por orientar o programa PrEP-SUS, não atinge totalmente adolescentes, jovens e populações vulneráveis, como de baixa renda e com menor escolaridade.
Iniciativas que acolhem
A coordenadora da ONG Instituição Vida Positiva, Vicky Tavares, 76, por exemplo, considera o tratamento do HIV em Brasília "bem satisfatório", pois o SUS atende as consultas e a distribuição de remédios, mas acredita que a disseminação de informação deixa a desejar. "Precisamos de veiculação em TV aberta, rádios e jornais, para que toda a sociedade tenha acesso", afirma. "A sociedade civil, quando munida de informação, informa."
Mesmo com a qualidade do tratamento, o estigma ainda é muito forte e afeta a saúde mental das pessoas que vivem com HIV. Segundo Vicky, muitas vezes o preconceito faz com que os pacientes parem o tratamento, o que pode levar ao óbito. O infectologista Vinicius Borges acrescenta que a adesão ao tratamento é contínua, como em outras doenças crônicas, mas o vírus carrega um peso simbólico enorme. "Viver com HIV significa lidar com o tratamento, mas também com camadas sociais e emocionais que não se comparam a outras doenças."
Christiano Ramos, da ONG Amigos da Vida, destaca o avanço na posologia dos medicamentos, mas afirma que os soropositivos continuam sendo submetidos ao preconceito que permeia o convívio social de pessoas como ele, que vivem com o HIV. Para o ativista, as maiores lacunas são a falta de campanhas sistemáticas de combate ao preconceito e à discriminação das pessoas soropositivas no seu dia a dia. "É importante que a sociedade saiba que viver com o HIV/aids é possível em toda sua plenitude e que o único inimigo dessa patologia é a discriminação."
As ONGs também são fundamentais para a luta contra o vírus. Mayco da Silva, 42, é cozinheiro e recebeu o diagnóstico há poucos meses, pois contraiu o vírus no fim de 2024. Ao receber a notícia, sentiu que o mundo tinha desabado, foi um baque enorme, principalmente pelo medo de morrer. Antes de adquirir informações sobre a doença, ele se afundou em drogas e bebida por achar que ia morrer de qualquer forma, então tinha que aproveitar ao máximo.
No entanto, ele conheceu a Fraternidade Assistencial Lucas Evangelista (Fale), que tem o objetivo de oferecer abrigo gratuito, em regime permanente, a pessoas soropositivas e em vulnerabilidade social e seus familiares, fornecendo moradia, alimentação, medicamentos, vestuário e cestas básicas para pessoas que não residem na instituição, e recebeu todo o apoio necessário.
"A Fale foi a salvação da minha vida, porque a desinformação e a falta de tratamento adequado significam morte certa, e eu não tinha nenhuma informação sobre a doença, isso é muito ruim", conta Mayco. Além da instituição, ele recebeu forças de seus familiares, que o ajudaram a superar a notícia e encarar o tratamento, que permite que ele viva saudavelmente e seja indetectável. "Meu maior desafio hoje é nos relacionamentos, porque muitas pessoas ainda têm medo de se envolver, acreditando que podem contrair HIV de alguém em tratamento. Essa desinformação continua sendo a maior barreira."
*As entrevistas com especialistas foram realizadas durante o evento HIV Leaders, promovido pela GSK Brasil
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