Transmissão de dados com gelatina natural

Cientistas brasileiros criam fibra óptica a partir do ágar-ágar, um produto extraído de algas marinhas e explorado nas cozinhas. Por ser biodegradável e comestível, a solução também poderá ser usada em intervenções médicas invasivas, como a endoscopia

Vilhena Soares
postado em 07/08/2020 12:20

As fibras ópticas são recursos muito utilizados na engenharia e na eletrônica e têm papel importante em uma série de tarefas, principalmente na troca de dados. Cientistas brasileiros desenvolveram uma nova versão dessa tecnologia que tem como matéria-prima um produto natural e comestível: as algas marinhas. Os investigadores produziram as fibras, que geralmente são feitas de plástico ou de vidro, com o ágar, gelatina extraída das algas e muito usada na cozinha profissional. Segundo eles, o produto poderá ser explorado principalmente na área médica, em tarefas como a radioterapia e a entrega localizada de medicamentos.

Os criadores do projeto são cientistas da Universidade de Campinas (Unicamp), em São Paulo. O grupo tem trabalhado no desenvolvimento de fibras ópticas especiais de vidro e polímero, destinadas principalmente a aplicações em sensoriamento físico e químico. Faltavam, porém, projetos voltados para aplicações médicas. A equipe brasileira acaba de apresentar essa solução na revista especializada Scientific Reports.

“Embora existam trabalhos no exterior relacionados à fabricação de fibras ópticas biocompatíveis — feitas de seda e hidrogéis, por exemplo —, poucas pesquisas abordam a produção de dispositivos para transmissão de luz à base de materiais comestíveis e biodegradáveis, o que viabilizaria a sua aplicação no interior do corpo humano”, explica ao Correio Eric Fujiwara, professor da Escola de Engenharia Mecânica da Unicamp e um dos autores do trabalho. “Assim, desenvolvemos, em cooperação com a Universidade de Gunma, no Japão, a primeira fibra óptica microestruturada, biodegradável e comestível do mundo utilizando ágar como matéria-prima”, completa.

O ágar, também chamado de ágar-ágar, é composto por uma mistura de dois polissacarídeos: agarose e agaropectina. No processo de produção da fibra óptica, os cientistas despejaram a matéria-prima natural em um molde com seis hastes internas, posicionadas ao redor de um eixo principal. O gel distribuiu-se para preencher o espaço disponível. Após o resfriamento, as hastes foram removidas, formando, assim, buracos de ar. “Nossa fibra óptica é um cilindro de ágar com diâmetro externo de 2,5mm e um arranjo interno regular de seis furos cilíndricos de 0,5mm em torno de um núcleo sólido. A luz é confinada devido à diferença entre os índices de refração do núcleo de ágar e os furos”, detalha Fujiwara.

Os pesquisadores testaram a fibra em diferentes meios — água, etanol e acetona — e concluíram que ela é sensível aos diferentes contextos. “O fato de o gel sofrer alterações estruturais em resposta a variações de temperatura, umidade e pH torna a fibra adequada para a detecção óptica”, enfatiza Fujiwara.

Monitoramento

Além da detecção óptica, os pesquisadores explicam que a nova tecnologia poderá facilitar procedimentos médicos variados. “A fibra de ágar poderia ser utilizada como um endoscópio ou para fotoestimulação em optogenética sem a necessidade de remover o dispositivo de dentro do corpo humano após o uso, uma vez que ele seria completamente absorvido com o tempo, reduzindo as intervenções cirúrgicas e os riscos envolvidos” exemplifica o cientista. “Devido à alta sensibilidade, a fibra de ágar poderia ser utilizada também como sensor bioquímico de baixo custo, auxiliando no monitoramento e no tratamento de doenças, por exemplo”, completa.

Outra aplicação promissora da tecnologia é o uso simultâneo como sensor óptico e meio de crescimento para micro-organismos. “Nesse caso, essa fibra poderia ser usada como um recipiente para uma amostra descartável. As células imobilizadas no dispositivo seriam detectadas opticamente, e o sinal seria analisado usando uma câmera ou espectrômetro”, explica Fujiwara.

Bruno Luis Soares de Lima, professor no curso de engenharia elétrica da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo, destaca que o trabalho brasileiro é importante por mostrar uma série de aplicações para um produto muito usado na área de engenharia. Ele ressalta que a tecnologia pode render frutos principalmente na área médica. “A fibra óptica é muito usada na área de comunicação, pois ajuda na troca de informações, como na internet, e também na área de sensores e de iluminação, o que faz dela um recurso com grande mercado. Faz sentido investir nesse tipo de produto, mas acredito que a maior vantagem dessa tecnologia feita de ágar seria em procedimentos médicos, como exames”, afirma. “Em muitas tarefas realizadas dentro da área de saúde, é necessário iluminar o corpo. Tendo materiais que são biocompatíveis e que, se ficarem dentro do corpo por muito tempo, não gerariam prejuízos, essas tarefas poderiam ser feitas com muito mais segurança e eficácia”, explica.

 

“Poucas pesquisas abordam a produção de dispositivos para transmissão de luz à base de materiais comestíveis e biodegradáveis, o que viabilizaria a sua aplicação no interior do corpo humano”
Eric Fujiwara, professor da Escola de Engenharia Mecânica da Unicamp e um dos autores do trabalho

 

Mexendo com os neurônios
Ao receber a aplicação de uma proteína, os neurônios passam a reagir à luz. Dessa forma, cientistas podem intervir no comportamento de células cerebrais. Busca-se tratar doenças como Parkinson, depressão e epilepsia por meio dessa técnica, que também é explorada em estudos dos circuitos cerebrais.

 

 

 

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Baixo custo também é atrativo

 (crédito: Fred Tanneau/AFP - 12/4/17)
crédito: Fred Tanneau/AFP - 12/4/17


Além da multifuncionalidade das fibras ópticas de ágar-ágar, o custo baixo e a forma simples de produção podem contribuir para que a tecnologia possa ser usada comercialmente. “O processo de fabricação é simples e barato, uma vez que a fibra pode ser produzida utilizando ágar de uso culinário. Embora as pesquisas iniciais tenham sido realizadas em laboratório, acreditamos que, futuramente, o processo possa ser aperfeiçoado e adaptado para a fabricação em larga escala”, justifica Eric Fujiwara, professor da Escola de Engenharia Mecânica da Unicamp e um dos criadores da solução.

A equipe dará continuidade à pesquisa e fará mais testes com o objetivo de refinar ainda mais a nova fibra óptica. “Atualmente, trabalhamos no aprimoramento dessa tecnologia, visando a sua aplicação na área médica, bem como em sensoriamento bioquímico in vivo”, diz o cientista.

Bruno Lima, professor no curso de engenharia elétrica da Universidade Presbiteriana Mackenzie, também acredita que o custo baixo pode contribuir para a comercialização e a popularização do produto, assim como o fácil descarte. “As fibras tradicionais são feitas de plástico ou de vidro, materiais que levam muito tempo para se desintegrar na natureza, e isso implica em grandes problemas”, explica.

Outro ponto positivo da tecnologia, segundo o especialista, é a possibilidade de reduzir a dependência do uso de fibras ópticas vindas do exterior. “Temos muitas empresas de telecomunicações e eletrônica que se beneficiariam de um recurso criado no país, já que a maioria dos mecanismos usados por esses grupos não é feita aqui. Grande parte deles vem de fora. Isso é muito ruim, pois os produtos ficam mais caros. Seria muito interessante termos opções brasileiras e, dessa forma, reduzir a dependência de conglomerados internacionais nessa área.” (VS)

 

“Temos muitas empresas de telecomunicações e eletrônica que se beneficiariam de um recurso criado no país (…) Seria muito interessante (…) reduzir a dependência de conglomerados internacionais nessa área”
Bruno Luis Soares de Lima, professor no curso de engenharia elétrica da Universidade Presbiteriana Mackenzie

À base de citrato
Cientistas da Universidade de Penn State, nos Estados Unidos, trabalham no desenvolvimento de uma fibra óptica que pode ser usada em aplicações médicas e tem como matéria-prima o citrato, que é produzido pelo corpo humano. Inicialmente, o elemento foi agrupado, formando macromoléculas. “O uso dos polímeros à base de citrato vai nos permitir um ajuste ultrafino das diferenças de índice de refração entre o núcleo e as camadas de revestimento da fibra óptica”, explica, em comunicado, Dingying Shan, um dos criadores. Nesse caso, a fibra também é biodegradável e biocompatível, o que abre a possibilidade de uso em aplicações biomédicas. “Cria-se uma janela transparente para espiar um tecido turvo e pode possibilitar novas oportunidades para geração de imagens”, diz Shan.

 

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