Combater incêndios é uma corrida contra o tempo. E, em meio às chamas que consomem uma construção, os bombeiros nem sempre conseguem identificar o exato momento em que elas deixam de ser ruins para se tornarem mortais. Um dos fenômenos-chave dessa transição é o flashover, quando os materiais presentes no ambiente atingido pelo fogo se inflamam simultaneamente e há uma súbita mudança de um incêndio progressivo para um generalizado. Cientistas do National Institute of Standards and Technology (NIST), nos Estados Unidos, apostam no uso da inteligência artificial (IA) para acusar esse instante tão estratégico.
Chamada de P-Flash, a ferramenta tem obtido resultados promissores tanto em simulações quanto em incêndios reais. Ela previu corretamente os flashovers um minuto antes para cerca de 86% dos incêndios simulados, por exemplo. O tempo pode ser precioso para salvar vidas, inclusive a de bombeiros. Isso porque o fenômeno é uma das principais causas de morte desses profissionais. Há indicadores a serem observados por eles, como as chamas rolando pelo teto. Esses sinais, porém, podem ser facilmente perdidos quando a visibilidade do local vai sendo comprometida pela fumaça.
Já há modelos de computador que preveem o flashover com base na temperatura do ambiente, mas eles dependem de fluxos constantes de dados, condição obtida em um laboratório, mas nem sempre durante um incêndio. Outra limitação atual é que os detectores de calor disponíveis operam com temperaturas de até 150ºC, muito abaixo dos 600ºC em que um flashover normalmente começa a acontecer.
O P-Flash foi projetado para considerar dados de temperatura dos detectores de calor instalados em edifícios comerciais e residenciais mesmo depois que eles começam a falhar. Para preencher a lacuna criada pela perda de dados, os pesquisadores do NIST aplicaram uma forma de IA conhecida como aprendizado de máquina. Com ela, os algoritmos descobrem padrões em grandes conjuntos de dados e criam modelos com base em suas descobertas. Esses modelos podem ser úteis para prever resultados diversos, como quanto tempo passará até que uma sala seja tomada pelas chamas.
“Você perde os dados, mas tem a tendência de até onde o detector de calor falha e tem outros detectores. Com o aprendizado de máquina, é possível usar esses dados como um ponto de partida para extrapolar se o flashover está começando a acontecer ou já aconteceu”, explica, em comunicado, Thomas Cleary, engenheiro químico do NIST e coautor do estudo, apresentado recentemente na revista Proceedings of the AAAI Conference on Artificial Intelligence.
Edifício virtual
Para construir o P-Flash, os cientistas alimentaram os algoritmos com dados de temperatura fornecidos por detectores de calor em um incêndio em uma casa de três quartos e um andar — o tipo mais comum de residência na maioria das cidades dos EUA. A construção, porém, não era física. Isso porque os algoritmos de aprendizado de máquina exigem grandes quantidades de informações para trabalhar, e a realização de centenas de testes de incêndio reais em grande escala não era viável.
A equipe queimou o edifício virtual repetidas vezes usando o Modelo Consolidado de Transporte de Fogo e Fumaça do NIST, um programa de modelagem de incêndio validado por experimentos reais de fogo, segundo Thomas Cleary. Em uma primeira etapa, foram executadas 5.041 simulações, com variações leves, mas críticas entre cada uma. Por exemplo: diferentes peças de mobília inflamaram a cada teste. Além disso, janelas e portas dos quartos foram configuradas aleatoriamente para estarem abertas ou fechadas. E a porta da frente, que sempre começava fechada, se abriu, em alguns momentos, para representar os ocupantes em evacuação.
Os detectores de calor colocados nas salas produziram dados de temperatura até serem inevitavelmente desativados pelo calor intenso. Depois disso, os pesquisadores dividiram os registros de temperatura simulados, permitindo que o algoritmo aprendesse com um conjunto de 4.033 experimentos, mantendo os outros fora de vista. Após ajustes no modelo, a equipe concluiu que ele previu corretamente os flashovers um minuto antes para cerca de 86% dos incêndios simulados.
Outro aspecto que chamou a atenção foi que, mesmo quando errou o alvo, o P-Flash o fez principalmente produzindo falsos positivos — o que é melhor do que a alternativa de fornecer aos bombeiros uma falsa sensação de segurança, avaliam os criadores da solução tecnológica. “Você sempre quer estar do lado seguro. Embora possamos aceitar um pequeno número de falsos positivos, nosso desenvolvimento de modelo valoriza a minimização ou, melhor ainda, a eliminação de falsos negativos”, avalia o engenheiro mecânico Wai Cheong Tam.
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Testes também com casos reais
Mesmo com os resultados promissores nas simulações de incêndio, a equipe do National Institute of Standards and Technology (NIST) não ficou completamente convencida do desempenho do P-Flash. “Uma questão muito importante permaneceu: ‘Nosso modelo poderia ser considerado confiável se apenas o treinássemos usando dados sintéticos?’”, relata o engenheiro mecânico Wai Cheong Tam.
A equipe teve a oportunidade de trabalhar com informações reais analisando um estudo recente financiado pelo National Institute of Justice. O Underwriters Laboratories (UL) realizou 13 experimentos de incêndio em uma casa estilo rancho com características parecidas às da simulada no treinamento do P-Flash. As fontes de ignição e de ventilação também variaram a cada incêndio.
Dessa vez, os resultados do modelo de predição foram um pouco diferentes. Tentando prever flashovers com até 30 segundos de antecedência, ele teve um bom desempenho quando os incêndios começaram em áreas abertas, como a cozinha ou a sala de estar. Porém, quando o início do fogo era em um quarto a portas fechadas, o modelo quase nunca sabia quando o flashover era iminente.
Uma possível explicação para a queda acentuada na precisão é o fenômeno chamado efeito de fechamento. Quando o fogo queima em espaços pequenos e fechados, o calor tem pouca capacidade de se dissipar. Então, a temperatura sobe rapidamente. Segundo Wai Cheong Tam, a maioria das simulações foi feita em espaços abertos. Dessa forma, no mundo real, as temperaturas dispararam quase duas vezes mais rápido.
Os cientistas avaliam que o ponto fraco da ferramenta abre espaço para aperfeiçoamentos. A próxima tarefa do grupo é representar o efeito de fechamento nas simulações. Vencido esse obstáculo, eles imaginam que o sistema poderá ser incorporado a dispositivos portáteis capazes de se comunicar, através da nuvem, com os detectores instalados em edifícios. Assim, segundo Tam, os bombeiros não só seriam capazes de dizer aos colegas quando é hora de escapar, como também saberiam quais os pontos de perigo no prédio antes de entrarem nele.
Para Christopher Brown, pesquisador do NIST e bombeiro voluntário, esse tipo de informação será crucial no combate aos incêndios. “Não acho que o serviço de bombeiros tenha muitas ferramentas em termos de tecnologia que prevejam o flashover no local. Nossa maior ferramenta é apenas a observação, e isso pode ser muito enganador. As coisas parecem de uma maneira por fora e, quando você entra, podem ser bem diferentes”, relata, em comunicado.