Cartilagem do nariz recupera o joelho

Material descartado em cirurgias de desvio de septo nasal é transformado em tecido resistente, anti-inflamatório e capaz de recuperar estragos causados pela osteoartrite. Técnica criada por cientistas da Suíça tem resultados promissores em dois voluntários

» Vilhena Soares
postado em 12/09/2021 19:29
 (crédito: Christian Flierl/University of Basel)
(crédito: Christian Flierl/University of Basel)

A cartilagem retirada do nariz durante cirurgias de correção do desvio de septo pode ser usada para tratar a osteoartrite. Pesquisadores suíços conseguiram transformar o material descartado no procedimento cirúrgico rotineiro em um tecido mais resistente, anti-inflamatório e com potencial para recuperar danos da cartilagem do joelho. A tecnologia médica foi testada em animais e em dois voluntários, com resultados positivos. Segundo os criadores, ela pode abrir portas para o desenvolvimento de mais terapias inovadoras para outros tipos de artrite.

No artigo sobre o trabalho, divulgado na revista especializada Science Translational Medicine, os autores explicam que a osteoartrite está associada à degradação da cartilagem, o que pode causar dor intensa e reduzir a mobilidade. Atualmente, estão disponíveis terapias paliativas da inflamação, prescritas até que se torne inevitável a substituição da articulação do joelho por um implante protético. “As próteses articulares têm durabilidade limitada, o que torna o tratamento problemático, principalmente em pacientes mais jovens”, completa, em comunicado, Ivan Martin, pesquisador do Departamento de Biomedicina da Universidade de Basel e principal autor do projeto.

Para ajudar esses pacientes, o cientista e sua equipe apostaram em uma nova maneira de reparar a cartilagem articular: a criação de um tecido mais resistente. Em parceria com um grupo de cirurgiões ortopédicos do hospital suíço, eles usaram como matéria-prima uma amostra de cartilagem nasal retirada de um paciente submetido a uma cirurgia de correção do desvio de septo. Em laboratório, a equipe separou apenas as células da cartilagem que a interessavam — consideradas as moléculas mais potentes — e as colocou em um ambiente químico propício para se multiplicarem. O material deu origem a um tecido forte o suficiente para ser implantado cirurgicamente na articulação de joelhos humanos.

Além de substituir a cartilagem desgastada, era preciso que ele resistisse à inflamação na região em que seria aplicado, conta Martin. “Ao contrário das lesões traumáticas, como os incidentes esportivos, o ambiente do tecido no joelho com osteoartrite é caracterizado por reações inflamatórias persistentes. Por isso, tivemos que testar se a substituição da cartilagem suportaria esses fatores”, detalha.

Inicialmente, o tecido de cartilagem humana foi testado em uma série de pequenos animais (ratos e porcos-da-índia) com osteoartrite. Os cientistas observaram que o material se saiu bem em situações de alto estresse (inflamatório e mecânico). Em uma segunda etapa, eles usaram cartilagem nasal de ovelhas para desenvolver o mesmo tecido, que provou ser extremamente resistente e neutralizou as reações inflamatórias nos ovinos. “Ao contrário do tecido da cartilagem comum presente nas articulações, essas células da cartilagem nasal têm uma capacidade regenerativa e adaptativa (plasticidade) bem maior. Isso explica esses resultados positivos (nos dois testes)”, explica Martin.

Na última etapa, os cientistas testaram a nova cartilagem em dois pacientes jovens com osteoartrite severa, condição em que a prótese da articulação do joelho já é recomendada. Os resultados obtidos foram tão animadores que o uso do dispositivo foi dispensado, relata o pesquisador suíço. “Após a implantação da cartilagem projetada a partir das células da cartilagem nasal dos próprios pacientes, os dois indivíduos relataram redução da dor e aumento da qualidade de vida.”

Mais terapias
Em um dos voluntários, imagens de ressonância magnética indicaram que os ossos na articulação do joelho estavam mais separados do que antes, o que sinaliza a recuperação da articulação. “Nossos resultados nos permitiram estabelecer a base biológica para uma nova terapia, e estamos cautelosamente otimistas”, conta Martin. “Pretendemos desenvolver o mesmo método para tratar outros tipos de osteoartrite e beneficiar um número ainda maior de pacientes.”

Filipe Tôrres, membro do Instituto de Engenheiros Eletricistas e Eletrônicos (IEEE) e especialista em engenharia biomédica e engenharia eletrônica da Universidade de Brasília (UnB), avalia que o estudo traz dados extremamente positivos, obtidos por meio de uma técnica que vem sendo explorada cada vez mais na biotecnologia. “Nós chamamos esse tipo de procedimento de cirurgias regenerativas. Elas são feitas com produtos biológicos criados em laboratório e têm um objetivo específico, como é o caso dessa cartilagem”, explica. “Os resultados foram muito bacanas porque, além de criar um material resistente, os cientistas observaram um poder anti-inflamatório, que é essencial para combater enfermidades como a osteoartrite.”

Outro ponto positivo apontado pelo especialista brasileiro é a possibilidade de transformar um material que seria descartado em moléculas eficientes. Tôrres também acredita que a tecnologia poderá ajudar no desenvolvimento de terapias voltadas para outros tipos de artrite. “As chances desses resultados ricos se repetirem em testes com outras variações dessa enfermidade é imenso, e vale a pena investir nisso”, diz. “Temos muitas pesquisas sendo feitas nessa área. Muitos avanços médicos devem surgir desse nicho de desenvolvimento de tecidos humanos mais eficientes.”

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    . Foto: Christian Flierl/University of B
  • Após a terapia experimental, a prescrição para o uso de prótese foi retirada
    Após a terapia experimental, a prescrição para o uso de prótese foi retirada Foto: Christian Flierl/University of Basel

Palavra de especialista

Chance de aposentar as próteses

“A osteoartrite é um problema de saúde que afeta a realização de atividades simples, como levantar e andar, reduzindo consideravelmente a qualidade de vida. É muito positivo ver que o corpo não criou rejeição ao uso desse novo tecido, um problema que é difícil de contornar nesse tipo de procedimento. Isso, provavelmente, se deve ao uso da cartilagem do próprio paciente em todo o processo. Outra vantagem é que não geramos prejuízos ao retirar essa matéria-prima do nariz, algo que já é feito de forma rotineira pelos médicos. Por último e mais importante, temos a possibilidade de eliminar o uso de próteses. Isso é algo muito bom, principalmente no caso de pacientes idosos que não podem se submeter a esse procedimento devido à idade avançada.”

Thaís Dias Rego, biomédica e professora da Universidade Católica de Brasília (UCB)

Injeção de micropartículas adiposas nas articulações

 (crédito: Kessler Foundation/Divulgação)
crédito: Kessler Foundation/Divulgação

Pesquisadores dos Estados Unidos também recorreram a avanços tecnológicos para a criação de uma terapia mais eficaz contra a osteoartrite do joelho. Por meio da nanotecnologia, os investigadores desenvolveram um tecido adiposo microfragmentado e injetaram o material em indivíduos com problemas nas articulações. Os resultados animadores obtidos com a técnica foram detalhados na última edição da revista Biologic Orthopedics Journal.

A equipe conta que o projeto surgiu com base em uma série de pesquisas voltadas para o uso de novos produtos biológicos injetáveis como terapias alternativas a abordagens tradicionais, como os remédios e as cirurgias. “Queríamos criar um material capaz de proteger um órgão danificado e também regenerá-lo”, afirmam no artigo.

Dessa forma, produziram, em laboratório, células de tecido adiposo com base em células-tronco humanas, que podem ser facilmente manipuladas. Depois, os cientistas usaram métodos nanotecnológicos para gerar micropartículas do produto, para que ele pudesse ser inserido em seringas. Os especialistas aplicaram o material em 110 pacientes com osteoartrite que não haviam sido submetidos a cirurgias e não usavam próteses do joelho.

Novos testes

Avaliações médicas foram feitas em três fases: três, seis e 12 meses após o tratamento experimental. Em todas elas, houve registro de avanços clínicos. “Os voluntários relataram menos dor no joelho, função melhorada e maior qualidade de vida em até 12 meses após o tratamento”, relata, em comunicado, Nathan Hogaboom, autor principal do estudo e codiretor do Laboratório Derfner-Lieberman da Fundação Científica Kessler de Pesquisa em Reabilitação Regenerativa.

Os cientistas adiantam que um número maior de pacientes precisa ser avaliado, e por um tempo mais longo de acompanhamento. Com os resultados atuais, a avaliação é de que nova tecnologia tem dados animadores, que poderão fazer a diferença no futuro. “Com o envelhecimento da população e uma epidemia de obesidade em curso, é vital poder oferecer um tratamento que melhore os sintomas da osteoartrite”, enfatiza Hogaboom.

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