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A escala brasileira de insegurança alimentar entre 2004 e 2023

As escolhas de redução da fome estão acertadas, mas é preciso o compromisso contínuo do governo federal, dos outros entes federativos, dos outros poderes para garantir que ninguém sofra com insegurança alimentar grave

Os novos números do IBGE apontam 8,7 milhões de pessoas em insegurança alimentar grave -  (crédito: Maurenilson Freire)
Os novos números do IBGE apontam 8,7 milhões de pessoas em insegurança alimentar grave - (crédito: Maurenilson Freire)

A fome, como disse Josué de Castro, é resultado de escolhas políticas que perpetuam desigualdades. Os recentes resultados divulgados pelo IBGE apontando que os indicadores de segurança alimentar voltaram a melhorar no Brasil no mesmo momento em que as políticas sociais voltaram a ser prioridade confirmam essa tese.

Para entender os resultados que o IBGE trouxe ao aplicar a Escala Brasileira de Medida Domiciliar de Insegurança Alimentar (Ebia) em sua Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - Contínua (Pnad-C), é preciso antes olhar como esse indicador se comportou ao longo de seus quase 20 anos de coletas.

A primeira aplicação do questionário ocorreu em 2004, pelo próprio IBGE, no segundo ano do primeiro mandato do presidente Lula, que tinha o programa Fome Zero como agregador de uma série de iniciativas, como o Programa Bolsa Família e o Programa de Aquisição de Alimentos da agricultura familiar.

Naquele ano, a pesquisa mostrou que cerca de 35% dos domicílios brasileiros tinham algum tipo de insegurança alimentar. E que, em 6,5% do total de domicílios brasileiros, havia a situação de insegurança alimentar grave — aquela em que adultos e crianças, sem ter o suficiente para se alimentar, sofriam com a fome.

A segunda aplicação da pesquisa, em 2009, já trouxe resultados melhores. Porém, foi em 2013, quando as ações de combate à fome estavam maduras e sendo aplicadas há vários anos, que o Brasil atingiu os melhores indicadores. A parcela total de domicílios em insegurança alimentar caiu para 22,6%. E a parcela de domicílios em que havia fome caiu para menos da metade do aferido na década anterior: 3,2%. O Brasil foi apontado como referência, por diversos organismos internacionais, no campo da segurança alimentar.

Esse foi o melhor resultado obtido até hoje. E, infelizmente, não foi duradouro. Em 2018, ainda no governo Michel Temer, a insegurança alimentar voltou a crescer — atingindo de 36,7% dos lares. E a fome chegou a 4,6% dos domicílios, segundo a última sondagem que o IBGE fez utilizando a escala Ebia naquela década.

Durante o governo Bolsonaro, houve intensificação dos retrocessos em políticas públicas, foram extintas instituições importantes, a exemplo do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), e, logo depois, a pandemia agravou a situação de fome no país. Além disso, houve a suspensão da realização da Ebia.

Ante o apagão de informações, duas pesquisas foram aplicadas pela Rede Penssan — que agrega especialistas e instituições acadêmicas de todo o Brasil — nos anos de 2020 e 2022. Nos dois inquéritos, que também utilizaram a escala Ebia, foram registrados os efeitos das opções políticas de não priorizar o combate à fome — majorados pela pandemia da covid-19. A pesquisa de 2020 apontou que a insegurança alimentar chegava a mais da metade dos lares, 55,2%, e a fome, a 9% dos domicílios. Em 2022, a insegurança alimentar subiu para 58,7% dos lares, e a fome, a 15,5% de todos os domicílios. A manchete de que 33 milhões de pessoas passavam fome foi anunciada pelos principais veículos do país, em junho de 2022.

Em 2023, o IBGE, em parceria com o governo federal, retomou a pesquisa, e a Ebia foi novamente utilizada no suplemento de segurança alimentar, agora da Pnad-C. Os dados são melhores que 2018 e os mais próximos de 2013 na série iniciada em 2004. Revelam, portanto, que se rompeu a tendência de aumento dos níveis de insegurança alimentar e que houve uma redução expressiva da fome.

Quando saímos de um percentual de 15,5% de domicílios em insegurança alimentar grave no início de 2022 (Rede Penssan) para um percentual de 4,1% no último trimestre de 2023 (IBGE), é possível deduzir que aproximadamente 20 milhões de pessoas deixaram de passar fome no período entre as duas pesquisas. Isso porque as instituições usaram a mesma metodologia, mudando apenas o número de perguntas do questionário utilizado, mas fazendo as mesmas oito questões do bloco principal da Ebia. Mesmo com uma pequena variação marginal entre os resultados, é possível compreender a alteração dos indicadores de insegurança alimentar.

Os novos números do IBGE apontam 8,7 milhões de pessoas em insegurança alimentar grave. Ainda há muito a se fazer, mas, olhando a trajetória da Ebia, a redução do número de pessoas passando fome, num período tão curto, é histórica, e só foi possível porque houve a priorização da agenda de combate à fome com a retomada de um conjunto de programas, hoje reunidos no Brasil Sem Fome, e a adoção de uma política econômica que gera crescimento com redução de desigualdades.

As escolhas de redução da fome estão acertadas, mas é preciso o compromisso contínuo do governo federal, dos outros entes federativos, dos outros poderes para garantir que, nesse imenso e rico país, ninguém sofra com insegurança alimentar grave. Essa é a maior prioridade e urgência desse governo, que já deu provas que está reconstruindo um país livre da fome.

VALÉRIA BURITY

Secretária nacional da Secretaria Extraordinária de Combate à Pobreza e à Fome do MDS

 


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postado em 02/05/2024 06:00
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