Brasil

Detenção de jovens não é social, nem educativa

Apesar das medidas previstas no ECA, reintegração de adolescentes em conflito com lei ainda é falha

postado em 09/07/2008 09:57

Roberto* tem 15 anos, aparência de 11 e uma pesada e assustadora história de vida. O jeitinho de menino contrasta com o vocabulário de malandro, usado para contar casos de prisões, homicídios e uso de drogas com a voz ainda infantil. Para quem não acredita, ele mostra as marcas. A mais recente fica abaixo do peito. É do início deste ano, quando levou um tiro. ;Era para ter morrido. Aliás, eu quase morri. Passei mais de um mês no hospital;, diz, com uma ponta de orgulho.

O menino, morador do Entorno do Distrito Federal, é o retrato da falência da aplicação das medidas socioeducativas no país. Dezoito anos após a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), especialistas apontam que o capítulo referente à prática de ato infracional é pouco compreendido pela sociedade e até mesmo pelo Judiciário e o que menos saiu do papel.

;O atendimento prestado ao adolescente infrator é inadequado. A falta de investimento nessa área, não raras vezes, leva à repetição do delito;, diz Paulo Afonso Garrido de Paula, procurador de Justiça de São Paulo e professor de direito da criança e do adolescente na Pontifícia Universidade Católica do estado (PUC-SP). Roberto é um exemplo disso. O menino, que nem se lembra de quando começou a se envolver em delitos, foi pego pela polícia no ano passado. Estava acompanhado de um outro adolescente, armado. ;O revólver não estava comigo, mas fui levado assim mesmo. Deitaram a gente no chão e encheram de soco e pontapé;, conta Roberto que, naquele dia, pretendia se vingar de uma gangue rival.

Roberto conta que passou pela delegacia e foi levado para o Centro de Atendimento Juvenil Especializado (Caje), apesar de o ECA determinar que ;em nenhuma hipótese será aplicada a internação, havendo outra medida adequada;. A família só tomou conhecimento da reclusão porque foi avisada pelo pai do outro adolescente. Do período de restrição de liberdade, a pior lembrança é a sensação de estar encarcerado. ;Ficar trancado é horrível. E os monitores ainda davam uns tocos na gente.; Três meses depois, ele estava de volta às ruas, sem ter participado de nenhuma atividade pedagógica de reinserção social. Continua desafiando e sendo desafiado por gangues. E não demonstra preocupação com o futuro: ;Não tenho medo de nada, muito menos de morrer;.

O educador Cesare de la Rocca, coordenador do Projeto Axé, em Salvador, esclarece que é necessário, sim, punir infratores, sejam eles adolescentes ou adultos. Mas lembra que, no caso dos menores de 18 anos, a ;privação de liberdade tem de ser sobretudo de resgate;. ;E, muitas vezes, as unidades viram prisões. O conteúdo artístico e pedagógico não é suficiente para esse fim;, declara.

Garrido de Paula lembra que, ao contrário do que alegam os defensores da redução da maioridade penal, o ECA não é complacente com os adolescentes em conflito com a lei. ;A partir dos 12 anos, a pessoa já passa a ser responsabilizada por seus atos. O que distingue a pena, em relação a um adulto, é a intensidade.; Em Portugal, por exemplo, a responsabilização só ocorre após os 16. E um jovem só se torna maior de idade do ponto de vista penal aos 21.

Prevenção
Para o procurador, sem programas que promovam a autonomia socioeconômica, nenhuma tentativa de reinserção terá capacidade de realmente transformar o pequeno infrator. ;O investimento maciço deve ser feito nas medidas preventivas, especialmente, em educação;, diz. ;Costuma-se atribuir ao sistema socioeducativo a responsabilidade de, sozinho, recuperar o adolescente. Mas o que precisa mudar não é somente ele, mas o local de onde veio. É preciso um conjunto mais complexo de políticas públicas;, concorda Fábio Silvestre, coordenador do Programa de Implementação do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República.

Mesmo sem saber o que significa ECA, Márcio* , 17 anos, morador de Céu Azul, no Entorno, também defende mudanças no meio em que vive. O jovem participou do roubo de R$ 600 de uma padaria ; ele não estava armado, mas fingia portar um revólver por baixo do casaco ; em abril passado. ;A polícia pegou a gente, algemou e ficou dando murro. E uns policiais diziam que queriam matar nós (sic);, conta. Ele passou 45 dias na unidade de cumprimento de medidas socioeducativas de Luziânia (GO). Diz que foi bem tratado, mas reclama que, no dia-a-dia, falta a ele oportunidade de se desenvolver.

Márcio está na 7; série de uma escola que periga desabar. ;É um barraco improvisado;, diz. ;Aqui não tem asfalto, não tem nada para fazer, não tem quadra de esporte. Eu sou doido pra fazer um curso de música, mas também não tem;, conta. Há um mês, a mãe do rapaz morreu, vítima de câncer. Trinta dias antes do assalto, ficou órfão de pai, que sofreu traumatismo craniano ao cair de uma moto. ;Acho que fiz aquilo de raiva. É sofrimento demais. Só de morar nesse lugar, já dá sofrimento;, diz.

Pelo Estatuto, ele não precisava ter sido internado. Poderia ser inserido em algum programa de reparação de danos, já que provocou crime contra o patrimônio ; motivo pelo qual 80% dos jovens entram em conflito com a lei. Mas, de acordo com especialistas, a liberdade assistida ainda é tabu, mesmo entre juízes. ;Nesse ponto, é possível constatar como o processo da desigualdade se reflete no âmbito do discurso. O pai não quer que o filho estude com um aluno que cumpre liberdade assistida. Trabalhei numa escola onde, mesmo sendo caso de segredo de Justiça, um adolescente que cumpria medida em liberdade só podia entrar quando os outros iam embora;, exemplifica o sociólogo Daniel Cara.

De acordo com Fábio Silvestre, a gestão municipalizada ; e descentralizada ; das medidas em meio aberto poderá ajudar a solucionar o problema. A idéia é que, em cidades com mais de 100 mil habitantes, as prefeituras se encarreguem de aplicar as ações. O Plano Individual de Atividade, preenchido quando o adolescente é encaminhado, estabelece medidas como a matrícula na escola para aqueles que estão fora do sistema educacional ou o tratamento químico para usuários de drogas. Também há possibilidade de ser inserido em programas de transferência de renda e profissionalização.

Para cada adolescente atendido por município, o governo federal faz o repasse de R$ 100. A partir deste mês, 232 cidades serão beneficiadas. Cento e oitenta e dois municípios estão em fase de implementação e 454 já estão com o processo concluído. ;Ainda é um número baixo;, reconhece Silvestre. ;Dezoito anos depois do ECA, ainda existe a lógica do controle e da exclusão;, lamenta. Ele ressalta a importância do cumprimento das medidas em meio aberto: ;Sempre é melhor porque responsabiliza de forma mais rápida, envolve os familiares e a comunidade. Além disso, garante que o adolescente aprenda os valores da sociedade onde vive;, defende.

MENORES ENCARCERADOS
A internação deveria ser a última opção de aplicação de medidas socioeducativas, de acordo com a Convenção sobre os Direitos da Criança e com o Estatuto da Criança e do Adolescente. No Brasil, porém, mais de 15 mil jovens encontram-se em privação de liberdade ; de 2002 a 2006, o número de internações aumentou 28%.

685
adolescentes estavam internados em cadeias, em 2006

3.396
é o déficit de vagas nas unidades de internação de adolescentes em conflito com a lei

60%
dos internos são negros e 80% pertencem a famílias com renda de até dois salários mínimos

90%
dos internos têm o ensino fundamental incompleto e 51% não freqüentam escola

71%
das unidades de internação têm ambiente físico inadequado, 52% não possuem ambulatório de saúde e 40% não oferecem atendimento educacional adequado

53%
das unidades não realizam nenhum tipo de apoio ao egresso

* Nomes fictícios, em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente.

Fontes: Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi) e Secretaria Especial de Direitos Humanos (Sedh)

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