Brasil

O toque de Midani

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postado em 03/10/2008 09:08

Dez minutos no cinema mudaram a vida de André Midani, confeiteiro que trabalhava das 5h às 19h e num dia cinzento de 1952 resolveu entrar numa sala parisiense, atraído pelo título do documentário que abria a sessão, Jammin; the blues. Filmado em preto-e-branco, o curta-metragem mostrava uma jam session com planos emocionantes, claros e escuros sofisticados, a fumaça do cigarro do saxofonista Lester Young cortando a tela verticalmente. E ele ali, grudado na poltrona, os olhos cheios d;água. Enfeitiçado, voltou ao cinema para mais algumas sessões e saiu com a decisão tomada: o trabalho na confeitaria acabaria o quanto antes. Na segunda-feira seguinte, lá estava o jovem Midani procurando emprego de vendedor de discos.

Trecho do documentário Jammin; the blues Entrevista com Andre Midani A vaga que ele conseguiu foi como "apontador de estoque" da gravadora Decca em Paris, de onde sairia três anos depois, rumo à América do Sul, com medo de ser convocado para a Guerra da Argélia. Quando chegou ao Rio de Janeiro, de navio, em 5 de dezembro de 1955, André Calixte Haidar Midani tinha 23 anos, dinheiro para três semanas e quase nenhum conhecimento da língua portuguesa. Com as Páginas amarelas em mãos, ligou para a gravadora que primeiro lhe chamou a atenção, a Odeon. A telefonista, nervosa porque o interlocutor não falava português, imaginou que se tratava de um executivo estrangeiro e passou logo a ligação para a presidência. E assim, na sorte, ele conseguiu o primeiro emprego no mercado fonográfico brasileiro, do qual viria ser o principal executivo nas décadas seguintes. A trajetória é contada nas 296 páginas de Música, ídolos e poder ; Do vinil ao download, autobiografia que esse sírio nascido em Damasco e criado na França levou mais de um ano para escrever. "Descobri que eu tinha inventado um maravilhoso companheiro de todas as horas, para quem contava minhas histórias e que me escutava, às vezes com paciência, às vezes com irritação", diz ele sobre o livro, que poderia até ter sido lançado como auto-ajuda ("tudo na vida é possível quando se tem a sorte de achar a vocação muito cedo"), mas vai bem além disso. Traz as memórias do menino que viu de perto a Segunda Guerra Mundial e do homem de negócios que, como dizia Washington Olivetto, "trabalhava como formiga e se distraía como cigarra". Homem do disco Não à toa, o escritor Otto Lara Resende referia-se a Midani como "André, o do disco". Afinal, quando Dorival Caymmi recomendou um jovem baiano recém-chegado ao Rio, era Midani quem estava com Aloysio de Oliveira (então diretor artístico da Odeon) para ouvir João Gilberto cantar ; e contratá-lo imediatamente. Também foi ele que insistiu no lançamento de Chega de saudade, apesar de o gerente de vendas da Odeon em São Paulo ter jogado o disco de acetato no chão e proclamado a célebre frase: "Isso é música de veado" Passados 10 anos, André Midani dirigia a Companhia Brasileira de Discos, filial da Philips (hoje, Universal Music), quando pegou a segunda onda da MPB, inclusive a Tropicália. Apostou tanto na ousadia de Mutantes, Rita Lee, Jorge Ben, Erasmo Carlos, Caetano e Gil como em Chico Buarque, Elis Regina e Maria Bethânia. Na década de 1980, lá estava ele, dessa vez à frente da Warner, investindo todas as fichas no novo rock brasileiro: Lulu Santos, Titãs, Barão Vermelho, Kid Abelha e Ultraje a Rigor. Vinte e cinco anos depois, Arnaldo Antunes lembra a forte impressão causada por aquele "senhor elegante, falando baixinho com sotaque francês e extrema jovialidade", que se divertia com os Titãs como se fizesse parte do grupo e ao mesmo tempo agia com austeridade nas decisões profissionais. "Com a entrada em peso dos ;tecnocratas; no comando das multinacionais, dá para entender por que pessoas como ele faziam tanta falta no panorama das gravadoras a partir dos anos 1990. Pessoas que cuidassem da música com a mesma paixão com que a produzíamos", comenta o compositor. Música, ídolos e poder traz histórias reveladoras dos bastidores da música e mostra que nem tudo foram flores na vida do "Chefe Patropi", como o chamava Jorge Ben. Dirigentes de gravadoras nem sempre foram vistos com bons olhos ; Glauber Rocha chegou a escrever artigo com o título André Midani, o agente da CIA ;, mas o fracasso das multinacionais nos últimos anos prova que Midani foi um dos diretores mais criativos da indústria fonográfica brasileira. Sem fofocas "Nasci com o vinil e morri com o download", exagera ele, que conta boas histórias no livro, mas com um bocado de precaução. Fofocas, só uma aqui, outra ali. E apenas de artistas estrangeiros, como Rod Stewart, que quebrou a suíte presidencial do hotel Copacabana Palace e passou a noite cheirando cocaína na mesa de uma boate carioca, ou Prince, que pediu ao executivo o telefone de uma garota que estava em página dupla da Playboy. Para quem não espera casos picantes, vale o passeio pela história interessantíssima do confeiteiro que resolveu trabalhar com música depois de assistir a um filme na juventude. Filme, aliás, que ele quis rever durante mais de 30 anos. Só conseguiu na década de 1980, depois de colocar em contato a direção da MTV norte-americana com Roberto Civita, da Editora Abril ; o que resultaria na implantação da MTV no Brasil (sim, também há o toque de Midas do executivo ali). Gratos, os americanos disseram que ele podia pedir o presente que quisesse. A escolha foi fácil: uma cópia de Jammin; the blues. "Fiquei muito emocionado ao constatar que o olhar e o ouvido do jovem Midani não tinham se equivocado ao reconhecer o sinal que a vida lhe mandava na época", ele conta no livro. Detalhe: só então, Midani descobriu que o documentário era dirigido por Norman Granz, fundador da Verve e da Pablo Records. MÚSICA, ÍDOLOS E PODER ; DO VINIL AO DOWNLOAD Livro de André Midani. Editora Nova Fronteira. 296 páginas. R$ 39,90.

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