Brasil

Censura: a tesoura enfrenta a guitarra

Terceira parte de série sobre a censura musical mostra que, além da MPB, o rock nacional dos anos 1980 também esteve sob a mira da repressão. Discos de bandas como Camisa de Vênus chegaram a ser recolhidos em camburões

postado em 27/04/2010 07:00
Entre as prateleiras de uma loja de discos, em 1986, o baiano Marcelo Nova assistiu a uma cena com um quê cinematográfico. ;Era como se eu estivesse num filme do Fellini;, lembra o roqueiro de 58 anos. Enquanto dedilhava as capas de lançamentos no balcão da Hi-Fi ; rede de novidades musicais cravada na Rua Augusta ;, três homens identificados como oficiais da Polícia Federal surpreenderam os vendedores com uma ordem da censura: todas as cópias do álbum mais recente do Camisa de Vênus teriam que ser apreendidas. ;Eu vi meus discos serem levados no camburão. Parecia uma loucura, mas era verdade;, conta o autor de Eu não matei Joana D;Arc.

Marcelo Nova (à esquerda) e Raul Seixas tiveram canções vetadas pela Polícia Federal. Acima, o processo de Bete morreu e Passatempo, do Camisa de Vênus.O cantor já esperava a reação agressiva: irritado com vários vetos às canções do quinteto punk, ele resolveu não enviar o álbum Viva à apreciação dos censores. Ainda assim, não conseguiu evitar o sentimento de choque. Em pleno governo José Sarney, a patrulha do Estado continuava afiada. A terceira reportagem da série do Correio sobre a censura à música brasileira mostra que, no início da Nova República, letras de canções ainda eram picotadas por técnicos da PF, que limavam referências a sexo e violência e questionavam intenções supostamente subversivas do pop brasileiro. Nos anos 1980, o rock foi perseguido, excluído das rádios e, em casos mais extremos, recolhido das lojas.

Documentos oficiais comprovam que os aparatos de censura resistiram o quanto puderam ; até meados de 1987. Ainda no período acinzentado entre 1985 e 1987, gravações da banda brasiliense Plebe Rude e do carioca Fausto Fawcett foram proibidas de entrar na programação das rádios. Com maior ou menor rigor, o controle da cultura durou até a Constituição de 1988. A cortina de chumbo, no entanto, começava a abrir frestas. Em 27 processos de músicas analisados pelo Correio, são recorrentes os casos de negociações e até enfrentamento explícito entre advogados de gravadoras e técnicos da PF.

Em 1986, quando o álbum do Camisa de Vênus foi recolhido, apreensões de discos não estavam mais na ordem do dia: eram ecos de um tempo de tolerância quase nula ; mas que, na contramão dos avanços políticos, ainda afetavam a criação cultural. Entre as faixas de Viva estava Bete morreu, proibida em 1983. Para a Divisão de Censura de Diversões Públicas, a canção usava ;termos grosseiros; para contar a história do assassinato de uma mulher. No parecer dos censores, analisado pela reportagem, a palavra ;tesão; aparece sublinhada. Para garantir a liberação da letra, Marcelo aceitou alterar as palavras mais polêmicas: ;gostosa; foi substituída pelo inofensivo ;cheirosa; e ;tesão; virou ;atenção;. O ;álbum maldito; fez sucesso: vendeu 180 mil unidades.

Batalha criativa
Ainda que as intenções da censura soassem cristalinas para os compositores, os argumentos para a proibição das músicas era mantido em segredo. A maioria dos artistas entrevistados para esta reportagem desconhecia o conteúdo dos documentos assinados por censores, que defendem os supostos motivos por trás dos vetos. ;Nunca fiquei sabendo das justificativas. Não havia critério. Acho até que, num determinado momento, eles censuravam tudo o que eu escrevia. A gravadora mandava seis, sete músicas para a censura e, dessas, cinco eram vetadas;, explica Marcelo.

Se as letras assumidamente agressivas do Camisa de Vênus (que, para amenizar controvérsias, era conhecido nas rádios apenas como Camisa) eram alvo berrante, elas representam a parte mais explícita numa longa lista de versos condenados por uma repressão já vacilante. Sem discriminação, nos anos 1980 os vetos silenciaram o pop festivo da Blitz e de Eduardo Dussek, a indignação pós-punk da Legião Urbana, as ironias do Ultraje a Rigor, as molecagens de Rita Lee.

Os pioneiros do rock não foram poupados. Em 1980, quando a letra de Muleque sacana (de Rita e Mu) foi banida da tevê e das rádios por conta do retrato ;malicioso; de um ;garotão boa-vida;, Raul Seixas recebeu conselhos de um técnico do Conselho Superior de Censura, que não escondeu o desapontamento com o conteúdo de Rock das aranhas, coescrita por Cláudio Roberto. ;Por ser Raul Seixas quem é, torna-se difícil aceitá-lo em apelação tão abjeta e lastimável. Enfim, tamanha indigência Raul jamais se deveria permitir. Como, no entanto, ele se permitiu, vamos respeitar-lhe o direito, a liberdade de fazer até lixo desse nível. No entanto, preservemos igualmente o direito de quem não quiser ouvi-lo;, avalia. A música sobre ;a briga imaginária entre duas aranhas e uma cobra; foi liberada, mas não para as rádios nem para a televisão.

;Não havia critério. Acho até que, num determinado momento, eles censuravam tudo o que eu escrevia. A gravadora mandava seis, sete músicas para a censura e, dessas, cinco eram vetadas;
Marcelo Nova, vocalista da banda baiana Camisa de Vênus

Um veto para Cazuza

;Contém insinuações de uso de tóxicos, reforçadas pelas expressões usuais do vocabulário do viciado como ;viagens tão óbvias; (viagem: alucinação produzida pelo LSD), que no texto apresentam conotação inadequada para a veiculação irrestrita.;

Processo de Blues do iniciante, de Cazuza e Frejat, vetada para as rádios em 22 de novembro de 1983


Os motivos dos censores

Vem cá, mulher, deixa de manha
Minha cobra quer comer sua aranha...
;Ouvindo o Rock das aranhas e me detendo em sua letra, confesso que me surpreendi pelo insólito que significa a grosseria. Em minhas muitas pesquisas dentro da canção popular nunca encontrei nada semelhante em intenção explícita tão pornográfica. Mesmo em músicas de carnaval, mesmo em música sertaneja, tanto uma quanto outra sabidamente voltada para o sentido duplo.;
Processo de Rock das aranhas, de Raul Seixas e Cláudio Roberto, vetada para as rádios em 31 de julho de 1980

z z z

O que nós temos pra diversão
Guardas, freiras, mendigos no chão...
;Em Rotina, caracteriza-se a ofensa a agente de autoridade e representante de religião. Entendemos que a letra contém situações contrárias à boa educação do povo, além de especificamente ferir outros itens legais.;

Processo de Rotina, do Camisa de Vênus, vetada em 30 de março de 1983

Terceira parte de série sobre a censura musical mostra que, além da MPB, o rock nacional dos anos 1980 também esteve sob a mira da repressão. Discos de bandas como Camisa de Vênus chegaram a ser recolhidos em camburõesOs remendos de Dussek

;A censura era esperta para algumas coisas e totalmente burra para outras;, observa ao Correio o carioca Eduardo Dussek. O exemplo mais claro dessa cegueira oficial está no caso da canção Barrados no baile, de 1982. As aventuras de um casal de protagonistas que tomava ;bolinhas pra não dormir; provocaram mal-estar nos escritórios da Polícia Federal. ;Negociamos uma saída e substituímos o trecho por ;aplicados para não dormir;;, lembra o autor de Que rei sou eu? ;Mas a mudança deixava a música muito mais pesada, porque sugeria que eles nitidamente se aplicaram de uma droga, fosse por via intravenosa, ou por via nasal. O casal continuou como os mesmos cocainômanos que eu e o Luis Carlos Góes queríamos descrever;, conta. O ;remendo; foi feito com bom humor. As cobranças da censura não surpreendiam Dussek. ;Corria-se sempre o risco, já que tudo podia ser censurado. A não ser que você falasse de exaltação à pátria ou fizesse um sambinha mela-cueca. A música falava de gente drogada e decadente. Era muito passível de ser censurada naquele regime ridículo e trágico.;

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