Brasil

"É preciso empoderar a mulher violentada", diz a juíza Gláucia Foley

Aproximar o Judiciário à população tem sido o norte da juíza. Tanto que o Programa de Justiça Comunitária, coordenado e idealizado por ela, já agraciou o Tribunal de Justiça do Distrito Federal com o Prêmio Innovare

Margareth Lourenço - Especial para o Correio, Leonardo Cavalcanti, Ana Dubeux
postado em 08/03/2017 06:00
Inquietude ela trouxe de berço. O pai acreditava que quando fosse mais velha, ;sossegaria;. Aos 48 anos, à frente do Juizado Especial Criminal de Taguatinga, ela não para no afã de buscar soluções mais apaziguadoras. Recentemente, causou polêmica ao mandar arquivar um processo de porte de drogas, por entender como inconstitucional o artigo 28 da Lei de Tóxicos, que penaliza consumidores de drogas.
A juíza afirma que o direito penal nem sempre é o único recurso para a solução de conflitos. Enaltece a Lei Maria da Penha, mas diz que além de punir o homem que comprovadamente agrediu, é preciso empoderar a mulher. É preciso também restaurar a responsabilidade do agressor, porque apenas punir não responsabiliza ninguém.
O punido é um ser passivo, diz a juíza, e se ele não refletir sobre aquilo, não se corresponsabilizar, vai continuar agindo da mesma forma com outras mulheres.
Fale do projeto Justiça Comunitária, reconhecido e premiado.
Quando assumi como juíza, em 1998, fiquei frustrada porque vim da advocacia popular. Pensei em desistir, mas surgiu a oportunidade de instituirmos o juizado itinerante. Com um ônibus, percorríamos locais onde a população não tinha acesso à Justiça.

Que tipo de demanda atendiam?
Questões de vizinhança, de direito do consumidor. Percebi que o deficit das comunidades não era apenas de acesso à Justiça, mas de falta de informação, de diálogo, de mobilização. Conseguimos resolver 80% dos casos, mas, para mim, isso não bastava porque era preciso que as pessoas aprendessem a também participar da gestão de seus problemas. Era preciso a mediação, não apenas a conciliação, mas que pudesse ser transformadora e feita por integrantes da própria comunidade. A mediação comunitária foi um conceito inovador.

E esse trabalho continua?
Sim, completa 17 anos em outubro. Essa experiência amplia a Justiça, não só aquela que se faz com a espada, como no símbolo da deusa Themis. Sem desmerecer o símbolo, a espada corta. Separa o certo do errado, culpado ou inocente. É um legado da humanidade e importante, mas é preciso ampliar. A espada, a meu ver, só deveria ocorrer quando esgotadas as possibilidades de o ser humano interagir com outro.

E isso se aplica à violência contra a mulher?
Há uma vertente mais ortodoxa dentro do universo do feminismo que enaltece demasiadamente a punição, a criminalização, apostando que o código penal é que vai resolver a violência contra mulher.

Qual seria a outra forma?
É preciso punir o homem que comprovadamente agrediu a mulher, mas também é preciso empoderar essa mulher porque nessa relação de violência costuma haver um ciclo de dependência. Muitas vezes, ela acaba voltando para o agressor e as pessoas não entendem o motivo. Isso porque não compreendem o quão complexa é a opressão contra a mulher. O quão patriarcal a sociedade é, praticando a violência cotidianamente, com uma série de dependências dessa mulher, de ordem sexual, de ordem financeira, de ordem moral.

A senhora coloca bem que existe uma dificuldade de a mulher se libertar dessa forma de relação. Quanto ao homem, qual seria a punição, em que moldes?
Há duas maneiras de abordar o agressor. Há a forma restaurativa, sem deixar de responsabilizar pela sua agressão ,e existe a forma punitiva. Nessa, você não desperta a responsabilização de ninguém. O punido é um ser passivo. Ele não precisa refletir sobre aquilo, de se corresponsabilizar por suas ações.

Como fica o direito penal?
O direito penal é um mal necessário enquanto a gente viver em um mundo miserável como este. Só que ele não pode ser o único recurso e destinatário da esperança das pessoas de viverem em um mundo melhor. Não vamos viver em um mundo melhor só com direito penal. Temos que ampliar o repertório e impedir que as adversidades se transformem em violência.

Mas, para a sociedade, este não é um exemplo em razão da reflexão, de que se bater, vai preso?
Se a sociedade participar do processo de restauração, de reparação do dano e de responsabilização do agressor, ela vai se sentir muito mais participante do processo. Para mim, a justiça restaurativa é a justiça do futuro. Dentro do campo da violência contra a mulher, ainda não é possível adotar somente as práticas restaurativas e abrir mão do aspecto punitivo, sobretudo, porque existe um comportamento que precisa ser corrigido, não pode ser incentivado sem punição. Vivemos em uma sociedade estruturada para a reprodução da violência contra a mulher.

E, nessa linha, me parece que é quase uma crítica à Lei Maria da Penha?
Não. Eu enalteço a Lei Maria da Penha. Antes dela, o cenário era de impunidade. Após a Lei 9099/95 (Juizados Especiais Criminais), os crimes chamados de menor potencial ofensivo, ou seja, quaisquer crimes cuja pena não ultrapasse o limite de dois anos de privação de liberdade, ainda que contra a mulher eram objeto de medidas despenalizadoras, conciliação; transação penal. Pois bem. Com a criação dos Juizados de violência contra a mulher, o número de casos, que antes não eram levados ao Judiciário, aumentou significativamente. Como todos nós sabemos, há relatos de vítimas que se sentiam coagidas a aceitar os acordos sugeridos pelo Ministério Público ou pelo juiz e, quando não havia acordo, o pagamento de cestas básicas eram a sanção aplicada ao agressor como transação penal. E, claro, esses desfechos não colaboravam para o adequado enfrentamento da violência contra a mulher. Com a edição da Lei Maria da Penha, a consciência das vítimas, da sociedade e do Sistema Judicial em relação à gravidade da realidade de violência contra a mulher aumentou significativamente.

O que mudou?
A Lei Maria da Penha rompeu com uma justiça que operava, no campo da violência contra a mulher, pela omissão e ineficiência. Isso porque a lei proibiu a aplicação dos institutos despenalizadores. Em 2012, a ação relativa à lesão corporal leve contra a mulher, antes condicionada à representação da vítima, passou a ser incondicionada.
Ainda que haja uma reconhecidda desigualdade de poder entre homem e mulher em uma relação desigual e de violência estrutural não estou certa de acertamos em substituir o ;patriarca da família;, no caso o homem violento, ao ;patriarca Estado;, impedindo que a mulher participe mais das decisões. Nem sempre o processo penal será, necessariamente, a melhor solução para todos os casos. E, dessa decisão, a mulher não pode ser excluída.
Mesmo porque, a privação da liberdade, em geral, descarta as possibilidades da necessária responsabilização do agressor. Ou seja, no afã de se afastar, por razões legítimas, os institutos da despenalização, a tendência do sistema foi a de reverenciar em demasia, a meu ver, o punitivismo.

E é possível?
Sim, é possível o processo penal caminhar junto com instrumentos que atendam aos objetivos de proteção integral da Lei Maria da Penha. Basta que se adote a suspensão condicional do processo nos casos cabíveis. Com o processo suspenso, mas não extinto, as vítimas terão mais controle e participação no processo. Evitaremos prescrições e possiblitaremos oportunidade de formação de grupos de reflexão para agressoresos alpem de coletivos para proteção e empoderamento das vítimas. Se privilegiarmos somente a punição como castigo, sem o processo reflexivo e responsabilizante do agressor, permaneceremos enxugando gelo, acreditando que o direito penal, esse paradigma estatal violento, nos libertará de uma sociedade violenta.

A justiça brasileira melhorou desde a época do ônibus ou falta muito para ser justa?
Há um dado do IBGE da década de 1990, informa que 67% das pessoas não acessavam o sistema formal quando tinham um direito violado. Outro dado, agora do Ipea de 2010, aponta que esse percentual caiu apenas para 63%. Praticamente não mudou nada, mesmo com a criação dos juizados especiais e de uma defensoria pública mais estruturada.

Mas houve mudanças significativas?
Sim, estamos mais ágeis. A criação do Conselho Nacional de Justiça e da Secretaria de Reforma do Judiciário arejou o Judiciário, mas o acesso continua estreito. Temos em torno de 106 milhões de processos e, considerando que cada um envolve pelo menos duas pessoas, todo brasileiro tem um processo judicial.
[SAIBAMAIS]
E no caso das drogas, está pouco definida a punição?
O uso de droga é uma questão de saúde pública, e não, de direito penal, que se justifica quando alguém pratica uma conduta que viola um terceiro ou um bem. Para mim, chegam casos que já foram catalogados como consumo, o tráfico vai para a vara criminal. Têm vários decidindo assim, sem punição, em São Paulo, entendendo que não é crime. A minha decisão não tem nada de inovadora.

Mas causou polêmica.
Vocês deram polêmica a ela. Alguns desembargadores consultados disseram que eu estava julgando contra a lei, ou que se houvesse um recurso do Ministério Público a decisão seria reformada, como já aconteceu.

Voltando às mulheres, o que é preciso avançar nas suas lutas?
Falta uma identidade do feminino. Precisamos entender que a gente vive relações machistas, porque vivemos em uma estrutura machista. Precisamos compartilhar mais a experiência do ser mulher. A questão de disputar espaços de poderes que são essencialmente masculinos hoje está mais equilibrado no ponto de vista numérico, mas nos deixou distantes de compartilhar a condição de mulher.

Compartilhar em que sentido?
As mulheres conversarem mais entre si e partilharem as suas dificuldades quando oprimidas. Acho que precisamos fortalecer essa identidade de construir um feminino que seja de luta, político e de disputar o poder. Mas precisamos também transformar o poder, porque esse poder da forma que está estruturado, masculino, não me interessa. Temos que ocupar esses espaços e fazer espaços de trocas.

Temos a impressão de que aumentou a violência contra a mulher. É correto ou havia subnotificação?
Eu acho que ninguém sabe responder isso ainda, por isso sempre se pergunta se aumentou a violência ou as mulheres estão denunciando mais, estão mais empoderadas. Nesse sentido, bem-vinda à Maria da Penha. Mas também precisamos de mudanças cultuirais. Se a criança faz uma coisa errada e o pai ou a mãe só pune, achando que esse vai ser exemplar para o irmão mais novo, a gente cresce só com o repertório punitivo. Não dá. A gente é muito mais interessante do que isso. Tem que mudar o mundo, sim, para a gente mudar a Justiça vai ter que mudar o mundo, mudar culturalmente as pessoas. Embora isso seja pretensioso.

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação