Cidades

Pecados do Plano Piloto


Correio ouviu especialistas e líderes comunitários para traçar uma radiografia das principais agressões à qualidade de vida da capital. Proposta do governo para conter distorções ao plano original da cidade é unir vários órgãos em torno da Secretaria de Ordem Pública

postado em 01/03/2009 07:00
A capital planejada para ser um exemplo de organização e qualidade de vida enfrenta hoje problemas típicos de grandes ; e caóticos ; centros urbanos. O Plano Piloto e seu traçado idealizado pelo urbanista Lucio Costa sofrem agressões diárias que ameaçam a classificação da cidade como patrimônio da humanidade e incomodam os moradores das asas Sul e Norte. Com a ajuda de líderes comunitários, especialistas e entidades de defesa do tombamento, o Correio fez uma lista dos problemas mais graves do Plano. As reclamações vão desde barulho excessivo nos bares até o fluxo de ambulantes e a presença de camelôs nas entrequadras. Diante das irregularidades, o governo promete intensificar a fiscalização e colocar a cidade nos eixos antes da comemoração dos 50 anos de Brasília, em abril de 2010. [VIDEO1] Um dos problemas mais antigos e mais graves são os puxadinhos e as invasões de área pública nas quadras comerciais. Em junho do ano passado, a aprovou a Lei Complementar 766/08, que estabelece os limites e as regras para a extensão do comércio nas laterais e nos fundos. Pela legislação, os comerciantes podem ocupar até 6 metros nos fundos das lojas, mas quase nove meses depois da aprovação, a lei ainda não foi regulamentada. A promete concluir a regulamentação até o fim de março. O superintendente do , Alfredo Gastal, classifica os puxadinhos como um dos pecados mais graves contra o tombamento. Ele conta que está preocupado com a proteção do título de patrimônio histórico de Brasília por conta das recorrentes agressões contra o Plano Piloto. ;O que estamos vendo é um somatório de pequenos e grandes problemas que, juntos, podem comprometer o tombamento. A população tem orgulho desse título e todos são responsáveis por preservá-lo;, comenta Gastal. O excesso de carros em circulação nas asas Sul e Norte é motivo constante de reclamação. Além dos engarrafamentos, a frota inchada causa falta de vagas tanto nas áreas comerciais como nas residenciais. Quem chega em casa ao fim de um dia de trabalho muitas vezes não consegue achar lugar para estacionar o carro. Diante da crescente demanda por veículos, aumentou também o número de oficinas em funcionamento na Asa Norte. Muitas desenvolvem atividades irregulares para o setor, como lanternagem e pintura, e prejudicam o comércio da região. A administradora de Brasília, Ivelise Longhi, explica que entre as prioridades para 2009 estão a revitalização da W3 Sul, a recuperação de praças públicas e a reforma de parquinhos e quadras de esporte. ;Estamos investindo muito para preparar a cidade para a comemoração dos 50 anos da cidade e para a Copa do Mundo;, explica Ivelise.
Aposta na integração
Para acabar com o festival de irregularidades no Plano Piloto, o governo aposta na integração de vários órgãos. O GDF criou até uma pasta que vai cuidar especialmente da fiscalização das atividades urbanas no Distrito Federal. A Secretaria de Ordem Pública, Social e de Controle Interno vai agir em parceria com as administrações regionais e com as empresas públicas para tirar das ruas quem age em desacordo com a lei. O secretário de , Roberto Giffoni, explica que o objetivo da integração no GDF é ampliar o alcance das ações. ;Vamos disciplinar a atuação dos flanelinhas, coibir o uso de estacionamentos públicos para atividades comerciais e acabar com o lixo espalhado pelas ruas. A cidade caminha para a comemoração dos 50 anos e precisa estar completamente ordenada do ponto de vista urbanístico;, justifica Giffoni. Uma das medidas que demonstram a importância da parceria entre setores do governo é o trabalho de combate aos lava a jato irregulares. As equipes de fiscalização coibiam as atividades, multavam os lavadores, mas, poucas horas depois, as kombis e carros que oferecem os serviços estavam de volta às ruas. ;Fizemos um trabalho integrado com a e com a para conseguirmos cortar a água e a energia dos lavadores. Só assim, pudemos reduzir bastante o número de lava a jatos nas quadras;, conta a administradora de Brasília, Ivelise Longhi. Ela reconhece que o problema persiste, apesar dos esforços. ;Vamos ampliar a fiscalização para retirar das ruas os lava a jatos, que cometem um crime ambiental ao captar água irregularmente;, finaliza Ivelise.
Luiz Carlos da Costa - Crédito: CADU GOMES/CB/DA PRESS
Alvo de vândalos
Um dos mais importantes e tradicionais cinemas de Brasília sofre a ação dos vândalos. Mas as paredes do Cine Brasília, na 106/107 Sul, não são as únicas vítimas dos pichadores que desfiguram a paisagem da capital federal. Prédios residenciais, os fundos das lojas e também as fachadas do comércio são constantemente marcados pela tinta dos sprays. Morador da 106 Sul, o aposentado Maurílio Nunes Bandeira, 76 anos, se revolta ao falar das pichações nas paredes do Cine Brasília. ;Já cheguei até a ficar em pé em frente ao cinema, de campana, para tentar flagrar os criminosos que sujam as paredes. Depois, minha família me convenceu de que era perigoso;, conta Maurílio. ;Deviam colocar esses vândalos para limpar a sujeira que fazem;, reclama.
Lixo acumulado na 705 Sul - Crédito: MARCELO FERREIRA/CB/DA PRESS
W3 às moscas
O comerciante Luiz Carlos da Costa, 40 anos trabalha em uma loja de instrumentos musicais na 511 Sul. O dia-a-dia de Luiz na W3 é bastante solitário: os estabelecimentos vizinhos estão todos fechados e com as portas pichadas. Com o fluxo de clientes em baixa na avenida, o movimento na loja está cada dia menor. ;A W3 está abandonada;, decreta o comerciante. ;A gente trabalha sempre com medo de assalto. Como a movimentação é pequena, os ladrões aproveitam para agir.; A W3 Sul tem cerca de mil estabelecimentos comerciais ao longo dos 5,3km de extensão. A avenida, que já foi point da cidade nos anos 60, hoje amarga o esquecimento. Na 705 sul, por exemplo, a calçada virou depósito de lixo. O projeto de revitalização foi elaborado em 2002, mas até hoje não saiu do papel. ;Com pequenas medidas, vamos mudar a cara da W3. Estamos discutindo linhas de crédito ou isenções de imposto para quem fizer melhorias nas fachadas;, conta a administradora de Brasília, Ivelise Longhi. Outra medida para dar nova vida à W3 é a construção do veículo leve sobre trilhos (VLT).
Construção irregular na 214 Sul - Crédito: CADU GOMES/CB/DA PRESS
Puxadinhos sem padrão
Para o superintendente do Iphan, Alfredo Gastal, os puxadinhos nas comerciais do Plano representam uma das mais graves agressões ao tombamento. Hoje, não há padrão de edificação e cada comerciante constrói como quer. Sem regras, formam-se becos nos fundos da loja, que muitas vezes viram abrigos para mendigos e bandidos. Na 214 Sul, os puxadinhos não têm uniformidade. A Lei nº 766/08, que determina os limites para a construção de puxadinhos, foi aprovada ano passado, mas não saiu do papel. ;A falta de regulamentação representa a manutenção do caos nas comerciais. Estabelecemos o limite de 6m para as ocupações no fundo e agora isso virou motivo de reclamação;, diz Gastal. A Seduma informou que falta definir o preço a ser cobrado pela ocupação da área pública e que a regulamentação da lei fica pronta em março.
Entulho irregular na 110 Sul - Crédito: CADU GOMES/CB/DA PRESS
Entulho irregular
Criadas para recolher lixo de obras e das áreas comerciais, as caçambas de entulho, quando colocadas em locais irregulares, atrapalham o trânsito. É comum encontrar contêineres tomando espaço dos estacionamentos. O advogado Demerval Pádua, 50, mora na 209 Sul e fica incomodado com as caçambas em cima do gramado ou das calçadas. ;Brasília é arborizada, um lugar agradável para fazer caminhadas, mas sempre que saio para andar, me deparo com esses contêineres;, reclama. Na quinta, o Correio encontrou três estruturas de ferro lotadas de entulho no gramado da 110 Sul. O Serviço de Limpeza Urbana e a Administração de Brasília têm um projeto de coleta seletiva para reduzir o volume de lixo em caçambas nas comerciais. A Seduma também trabalha no Código de Posturas do DF, que vai disciplinar onde podem ser colocados os contêineres.
Pilotis fechados por grades - Crédito: CADU GOMES/CB/DA PRESS
Pilotis encarcerados
Uma das maiores inovações do plano de Lucio Costa foram os pilotis sob os prédios residenciais. A ideia era criar uma cidade sem impedimentos ao fluxo de pedestres. Mas um dos pilares do plano urbanístico da capital é totalmente ignorado nas asas Sul e Norte. Os espaços entre pilotis de blocos estão sendo cercados no Plano Piloto, assim como no Sudoeste e no Cruzeiro. Em alguns edifícios, o cercamento é discreto. Pequenas áreas são isoladas por grades para a colocação de bicicletas ou outros objetos. Mas há prédios com grandes áreas reservadas a residências para porteiros e até estacionamentos. ;Outro jeito que encontraram para bloquear o acesso aos pilotis é a criação de grandes jardins que bloqueiam a passagem. Isso também é uma agressão ao tombamento;, diz a presidente do Conselho Comunitário da Asa Sul, Heliete Bastos.
Ambulantes em frente ao Banco do Brasil da 504 Norte - Crédito: CADU GOMES/CB/DA PRESS
Camelôs e ambulantes
As entrequadras planejadas do Plano Piloto viraram alvo de vendedores ambulantes que circulam pelas asas Norte e Sul oferecendo produtos, na maioria das vezes falsificados. Os mais ousados chegam a armar barracas com estrutura de ferro entre as lojas do Plano. A presidente do Conselho Comunitário da Asa Norte, Leomízia Pereira, 58 anos, reclama do fluxo de vendedores irregulares. ;Muitos deles vendem comidas, mas nós não sabemos a procedência dos alimentos. Eles estão nas portas de faculdades, escolas e igrejas;, diz. Na 504 Norte, por exemplo, onde há uma concentração de bancos, os camelôs vendem DVDs piratas e carregadores de celulares. Outro problema levantado pela presidente do Conselho são os produtos piratas vendidos nas ruas. ;É preciso haver fiscalização mais rigorosa;, sugere. O secretário de Ordem Pública, Social e de Controle Interno do DF, Roberto Giffoni, diz que a fiscalização será rígida com comerciantes que agem fora das leis e também de ambulantes e camelôs que vendem produtos irregularmente. ;O mais importante é passar para a sociedade a mensagem de que a lei vale para todos e vai ser aplicada com rigor;, afirma.
Adriano Souza Lima em frente a carro estacionado irregularmente na 107 Norte - Crédito: MONIQUE RENNE/CB/DA PRESS
Vagas de menos
O fim de um dia de trabalho não é mais sinônimo de descanso para o empresário Adriano de Sousa Lima, 40 anos. Morador da SQN 107, ele tem dificuldades para chegar em casa todas as noites. E os obstáculos que Paulo enfrenta não têm relação com engarrafamentos ou compromissos pessoais. O grande problema do empresário é a falta de vagas nas proximidades do seu prédio. Na entrada da quadra, carros parados em fila dupla ou estacionados em torno da banca de revistas quase bloqueiam a passagem dos moradores. Ao longo do meio-fio, veículos ignoram as placas que proíbem o estacionamento e se amontoam na via pública. ;É sempre uma dor de cabeça parar o carro quando chego em casa. Já fui multado duas vezes na minha própria quadra;, lamenta Adriano. O gerente de Fiscalização do Departamento de Trânsito, Silvaim Fonseca, explica que o Detran já intensificou o controle de irregularidades no Plano Piloto, mas destaca que é a superlotação dessas regiões é difícil de ser controlada. ;Já temos uma frota de mais de um milhão de veículos, o que complica o trânsito. O que o Detran pode fazer é multar quem estaciona irregularmente ou para em vagas de idosos ou deficientes ou faz fila dupla;, destaca Silvaim.
Mecânico pinta carro em oficina irregular na 712 Norte - Crédito: MARCELO FERREIRA/CB/DA PRESS
Oficinas indevidas
A cidade setorizada tem pelo menos uma segmentação comercial que não é bem vista pela população. Na Asa Norte, as quadras 700s se transformaram, informalmente, em setor de oficinas mecânicas. As lojas que oferecem o serviço de conserto de carros ocupam vagas públicas e provocam poluição. Dono de uma assistência técnica na 706 Norte, Alberto Mourão, 51, reclama do espaço tomado pelos carros que estão em reparo. ;Não há opção de estacionamentos. Sem falar nos veículos abandonados que ocupam as ruas;, afirma. Além da falta de espaço, Mourão aponta a sujeira do local e o barulho das máquinas de polimento. ;Essa situação é insalubre. Tem gente que passa mal por causa da nuvem de tinta que fica aqui. Isso não pode mais continuar desse jeito;, indigna-se. A administradora de Brasília, Ivelise Longhi, conta que o governo fará um levantamento com os donos de oficina para saber quantas pessoas trabalham no setor. ;Vamos ver a possibilidade de transferência para outras áreas. A atividade de oficina é permitida na Asa Norte, o que é proibido é o serviço de lanternagem e pintura. A fiscalização vai continuar a agir para saber se as regras estão sendo cumpridas;, garante.
Lava a jato na 205 Norte - Crédito: CADU GOMES/CB/DA PRESS
Lava a jatos na mira
A lavagem de carros motivou o surgimento de um mercado ilegal no Plano Piloto. Kombis e carros estacionados em área pública oferecem os serviços de lava a jato na entrada das quadras residenciais ou no comércio. Na 205 Norte, os lavadores ocuparam todo o estacionamento público. Na maioria das vezes, a água usada é captada irregularmente. A aposentada Ieda Medina, 52 anos, mora na 404 Norte e acompanha de perto o dia-a-dia do lava a jato vizinho. ;Fico revoltada porque o mundo enfrenta um problema de falta de água e a gente vê esse desperdício;, reclama Ieda. A Administração de Brasília fez uma parceria com a Companhia Energética de Brasília (CEB) e com a Companhia de Saneamento Ambiental do DF (Caesb) para coibir o uso irregular de água e energia. Quem é flagrado oferecendo os serviços também é multado.
Médico Ricardo Monteiro gastou R$ 50 mil para isolar a casa do barulho dos bares da 210 Norte - Crédito: CADU GOMES/CB/DA PRESS
Bares fora do tom
O barulho causado pelo vaivem de clientes nos bares da 210 Norte fez com que o médico Ricardo Monteiro (foto), 38 anos, investisse R$ 50 mil em um sistema de isolamento para o seu apartamento, no Bloco D da quadra. ;Eu moro no sexto andar e o barulho me incomoda. Imagino como deve ser para quem mora no primeiro andar;, comenta. Cirurgião do Hran, ele costuma dormir fora de casa em véspera de operações mais delicadas. ;Não posso dormir depois das 2h e fazer uma cirurgia no dia seguinte;, afirma. Quadras próximas à 210 Norte, como a 107 e a 110, também enfrentam o transtorno de bares cheios e barulhentos. As regiões vizinhas a bares movimentados sofrem com os ruídos que vêm desses estabelecimentos. Para especialistas, a solução seria criar áreas específicas para grandes bares, bem longe das zonas residenciais, como o Projeto Orla. Enquanto isso, a Administração de Brasília age para coibir os abusos. ;Não liberamos mais nenhum alvará para bares que não têm tratamento acústico para música ao vivo ou som mecânico;, explica a administradora, Ivelise Longhi.
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