postado em 10/08/2009 08:42
A história chegou assim à redação: ;O taxista mais antigo de Brasília em atividade continua rodando. E faz ponto no aeroporto. Segundo o filho dele, o pai tem ótimas histórias para contar desde a época da construção da cidade. Ele foi comerciante, antes de ser taxista;. Taís Braga, coordenadora de reportagem, sempre empolgada com todas as coisas que lhe caem à mão e conhecedora das coisas de gente, me disse: ;É a sua cara. Vai lá e faz uma linda matéria...;. Pensei: ;Histórias de taxistas devem ser muito parecidas com as de pescadores. Ambas são de uma imaginação sem tamanho. Há um tanto ou todo o tanto de lorota;.Partimos para a QF 14, no Riacho Fundo I. Final de tarde da última sexta-feira. Lá, um homem de calça social, camisa de manga curta, também social, e sapatos escuros engraxados com esmero, espera a visita de pessoas que nunca vira até então. Sem problemas. Afinal, carregar gente desconhecida todos os dias e conviver com o inusitado é o seu ofício. O homem bem vestido, com jeito de lorde, andar sem pressa, olhos atentos, vem até porta. Nos convida pra entrar. Acabara de chegar do trabalho. Detalhe: havia começado às 3h da madrugada. Sim, ele acorda, religiosamente, às 2h, toma seu café e parte para mais um dia de longa jornada. É assim há mais de 50 anos.
Era ele, o taxista que havíamos ido encontrar. E lá estava o homem, José Martins Ferreira. Impecável, sereno, atento e gentil, ao alto dos seus 81 anos e sete meses de vida. O táxi, um Santana prata, JGF 5606, ano 2003, cuidadosamente parado na garagem da casa de esquina. Ao lado dele, Orondina Fernandes Ferreira, 73, mulher e companheira de mais da metade de um século.
A conversa, em volta de uma mesa branca de plástico, colocada na varanda, vai começar. E logo se percebe que, muito diferente das histórias de pescadores, aquele é um testemunho de vida. Mais que isso. É a celebração de um homem ao melhor que ele construiu nesta mesma vida: a família e o trabalho sem cessar. José, jeito manso de mineirinho, mas goiano de Corumbaíba, é o personagem principal dessa odisseia.
Era 1957, quando esse homem, aos 29 anos, segundo ano ginasial, recém-casado com sua Orondina, dois filhos pequenos (Ricardo e Reinaldo), desembarcou numa tal de Cidade Livre. O princípio de tudo. ;Vim fazer um futuro;, ele diz, sobre a chegada ao Distrito Federal. Lá em Goiás, José ouvia, pelo rádio a pilha, que aqui se ergueria uma cidade que transformaria o país. ;Era a notícia dia e noite que a gente ouvia;, lembra.
José não perdeu tempo. Arrumou o pouco que tinha, juntou as economias e partiu. Na Cidade Livre, montou, com a cara e a coragem, um pequeno comércio, na Avenida Central. ;Vendia de um tudo, de panela a açúcar e farinha;, ele conta. O estabelecimento ganhou nome: Casa Central. O negócio ia de vento em popa. ;A gente guardava o dinheiro (os réis) numa lata, dessas grandes. Meu filho mais novo, o Reinaldo (4 anos na época), ficava em pé na lata. E, com os pezinhos, empurrava o dinheiro pro fundo. Ele achava que assim ia caber mais. Aquela lata era o nosso banco;, recorda-se Orondina, com os olhos distantes, como se visse a cena novamente.
Correu o ano de 1957. A Casa Central começou a vender menos. Motivo? A Cidade Livre se encheu de outros comércios. ;Era gente grande. O nosso não resistiu à concorrência;, lamenta o chefe da família Ferreira. Mas era preciso tocar a vida. Encontrar outra forma para sustentar a mulher e os dois filhos. Afinal, José escutara no rádio que a nova capital, que se erguia em meio a tanta terra e poeira vermelha, seria o lugar dos sonhos e da esperança. O futuro que ele tanto esperava.
Yoná Magalhães
Chegou 1958. Com o resto das economias, José decidiu que compraria um carro usado. Foi até Araguari, em Minas Gerais, e fez negócio com um antigo conhecido. O velho Figueiró lhe vendeu um Ford 47. José decidiu, aos 30 anos, que seria chofer de táxi. Escolheu um ponto estratégico: o aeroporto, todo de madeira, que seria inaugurado dali a menos de dois anos.
E começa aqui a segunda e última profissão do homem que acreditou em sonhos. Todos os dias, lá estava ele, no mesmo ponto, carregando e trazendo gente. Eram engenheiros, políticos, forasteiros, estrangeiros, gente anônima. ;Não existia a permissão (até porque ainda não tinha órgão que regulamentasse a profissão) nem taxímetro. O preço era combinado na hora e eram apenas dois trajetos: do aeroporto à Cidade Livre ou para o Hotel Nacional, que começava a ser construído.; E conta mais: ;Como tinha pouco táxi, era comum quatro ou cinco passageiros dividirem o mesmo carro. Cada um pagava a sua parte;.
A capital foi inaugurada com pompa e circunstância. Naquele 21 de abril de 1960, José nunca trabalhou tanto. Viu, de perto, o sonho de JK virar realidade. ;Foi uma festa linda;, ele diz. Em casa, junto com os dois filhos pequenos, Orondina acompanhava pelo rádio as notícias da cidade batizada de Brasília. No seu Ford 47, o taxista ouvia e via as histórias de uma gente em busca do mesmo futuro.
Os anos se passaram. Em 1964, já com a permissão em mãos, todo formalizado, José recebeu o Certificado de Honra ao Mérito ;pelos seus anos de bons serviços prestados à praça de Brasília e ao Sindicavir (o sindicato da categoria à época);. O goiano de Corumbaíba se sentia cada vez mais brasiliense. ;Fiquei muito satisfeito com essa homenagem;, ele fala. O certificado, hoje transformado em quadro, decora a parede da sua simpática casa de dois quartos. Mas já decorou as casas de Taguatinga, do Gama, de Ceilândia, Samambaia e do Guará, lugares onde já viveu até chegar ao Riacho Fundo.
Com o trabalho, vêm as lembranças. José conta, com orgulho, do dia em que carregou a atriz Yoná Magalhães, Ulisses Guimarães, Brizola e até Sílvio Santos, o Homem do Baú. ;Com a dona Yoná, eu não resisti. Disse que ela era uma artista especial e que admirava muito o seu trabalho. Ela ficou feliz, me deu um sorriso e pegou na minha mão, na despedida.; Pergunto se ela era realmente bonita. Ele, de olho espichado para sua Orondina, diz, baixinho: ;Era muito linda;.
Discrição
Ao longo dos seus 51 anos carregando e trazendo gente, ouvindo as mais diferentes e algumas impublicáveis histórias, José ensina o segredo para permanecer tanto tempo na praça: ;Saber tratar bem o passageiro e ser discreto. Fingir que não ouve e só responder se a pessoa perguntar. Nunca dar palpite na conversa alheia. E principalmente ser honesto;. O homem que fez do táxi uma profissão de vida está há 16 anos sem receber uma multa de trânsito. Mas reconhece que dirigir em Brasília está cada vez mais difícil e perigoso. ;Tem assalto a taxista todo dia (embora ele nunca tenha vivido tal experiência), os engarrafamentos deixam o povo nervoso demais, xingando tudo...;
Sentadinho na varanda da casa, ele dá uma dica para os novos companheiros de profissão: ;Quando for trabalhar, deixar os problemas de família em casa. Quando voltar pra casa, largar as dificuldades lá fora, atrás da porta da rua. Não se pode misturar as coisas. O passageiro não tem nada a ver com isso;. Orondina, a eterna companheira, escuta. Balança a cabeça, em concordância. E deixa escapar, em tom de admiração: ;A vida toda ele foi trabalhador. E tudo que fez foi pela família;.
A primeira e única vez em que José andou de avião foi em 1957, quando chegou a Brasília com a mulher e os filhos. ;A gente veio de Anápolis até aqui. Era um avião bem pequeno, com dois motores.; Nesses grandes, que vê todo dia subindo e descendo do estacionamento do aeroporto, nunca chegou perto. ;Acho uma beleza aquela coisa daquele tamanho subir.; Ele prefere a terra, o chão firme, o táxi, seus passageiros anônimos, sua vida simplesinha.
O taxista renovou sua carteira de motorista até 2011. Pretende trabalhar ainda por muito tempo. ;Me sinto muito disposto. Se eu ficar em casa, tenho medo de adoecer;, diz o homem de 81 anos e saúde de touro. ;Acordo às duas horas da madrugada, me arrumo, tomo minha vitamina (preparada, claro, por Orondina), vou pro aeroporto e fico lá. Na hora do almoço, volto, almoço (a comidinha gostosa feita até hoje pela mulher), descanso um pouco e retorno. Só chego em casa no fim da tarde. Faço isso de segunda a segunda, não tenho feriado nem fim de semana.; É a sua receita da produtiva longevidade. E sabedoria.
Não, a história de José não é lorota de pescador. É um belo exemplo de vida. A lição do homem que um dia partiu para o desconhecido ;atrás de um futuro;. Sem imaginar, ele escreveu uma saga, anonimamente. A saga dele mesmo.
O princípio do sonho
Como parte das obras de infraestrutura necessárias à construção de Brasília, foram abertas pela Novacap, no final de 1956, as principais avenidas do Núcleo Bandeirante, mais tarde conhecido como Cidade Livre. O loteamento estava destinado a ter uso exclusivamente comercial. Para incentivar a vinda de comerciantes para a região, a localidade também estava livre do pagamento de impostos. Daí a origem do nome Cidade Livre.